- Siga para o oeste. Nós cuidaremos do resto.
Ele precisava acreditar no que Skoll lhe dizia, assim como acreditara em Liandan, assim como devia crer nele mesmo. Havia conseguido uma montaria, um garanhão cujo pertencera a Vidar, mas agora ele está morto, pensou, e Hel já sabe da minha presença. Naquele instante cavalgava o mais rápido que sua montaria lhe permitia, dentro de poucos instantes alcançaria seu objetivo, ou ao menos assim esperava. Estava sozinho novamente, mas não porque os lobos o houvessem abandonado, mas por pensar que aquele não era o lugar deles.
- Agradeço pela ajuda, mas não é aqui onde devem estar. – Dissera enquanto selava o cavalo, as espadas do deus carbonizado se encontravam presas a sua cintura, descobrira que o calor proporcionado pelas chamas de Skoll não o afetava, talvez por ser parte do senhor do fogo.
Ulric sentiu no ar a agitação de Hati, Impaciente... Não costuma ser a melhor das qualidade. Eram as mesmas palavras que a senhora de Helgardh usara com ele, agora ele entedia bem o peso da impaciência. O lobo branco rosnou se pondo a frente dos irmãos.
- Mesmo depois de termos te salvado é assim que nos trata?! – grunhiu. As presas expostas denunciavam seu humor. Durante alguns segundos, Ulric ficou a fitar o gigante branco, a expressão séria foi quebrada apenas por um suspiro.
- Escute. – Pediu. - não desprezo à ajuda que me foi oferecida, mas serão mais úteis no campo de batalha, não ao meu lado. – Voltou-se então para o garanhão, já selado e pronto para partir. – Seria um grande problema se as forças de Loki, ou mesmo dos filhos de Thor me considerassem um inimigo e me atacassem. – Um sorriso surgiu no canto de seus lábios.
Incomodado, Hati pareceu aceitar o que lhe era proposto, assentiu por fim, o que tranquilizou Ulric. Que eu possa ser suficiente para isso. Pensou em completar o pensamento com “deus”, mas achava irônico demais, depois de tudo que passara, pedir auxilio a um deus, mesmo sabendo que, de acordo com Hel, todas as entidades imagináveis existiam em seus mundos particulares, sendo ligados a outros através da crença.
E agora lá estava ele, em marcha, e aos poucos surgiu o local onde Heimdall se encontrava. Com as pernas cruzadas e olhos fechados, era obvio o fato de estar em profunda meditação, mas uma redoma de ar cortante cercava em um raio de seis metros o deus guardião de Bifrost, surpreendendo Ulric. Repentinamente, o garanhão freou empinando-se nas patas traseiras enquanto relinchava. Foi preciso força nas mãos, e inclinar-se rapidamente para frente, a fim de que não caísse.
Os lábios do rapaz correram até a orelha do cavalo, sussurrou palavras para que ele se acalmar, aos poucos o animal aquietou-se. Bom garoto. Ulric observou o local, procurou encontrar algum ponto fraco na barreira, entretanto quanto mais olhava, percebia que não havia fraqueza. Desmontou e agarrou uma pedra qualquer para arremessa-la contra a redoma, a pedra se despedaçou ao atingir a cúpula.
- Ninguém disse que seria fácil. – suspirou enquanto massageava as têmporas. – É melhor você ir, rapaz. – Ulric deu um tapa na parte traseira do animal, incentivando-o a partir, o que ele fez após um relincho em forma de protesto.
Concentre-se. Outro suspiro, e sentou-se de pernas cruzadas, os olhos fechados, a expressão calma em seu rosto e logo veio à solução. A sua frente abriu-se a passagem necessária, mas a imagem que a entrada para a prisão emanava, era diferente da que Ulric vira do lado de fora. Heimdall não parecia calmo, ou em meditação. Fagulhas e mais fagulhas voavam pelo ambiente enquanto ele buscava defender-se dos golpes de Loki, ou ataca-lo enquanto o outro se defendia. Parecia uma luta acirrada, onde era impossível dizer quem sairia vitorioso.
Ulric levantou-se e adentrou. A passagem atrás de si foi fechada, mas nada parecia ter acontecido, não havia vento cortante os cercando, apenas a natureza destroçada pela batalha. Os deuses pareciam tão focados na peleja que sequer pareceram notar a presença do rapaz, e por isso passou pela cabeça do jovem que deveria deixar do jeito que estava. Loki é o causador do Ragnarok, se eu conseguir acabar com esta batalha poderei acabar com os planos de Hel.
A ideia lhe agradava, mas antes que pudesse colocar algo em prática, Loki e Heimdall se afastaram após um chocar de espadas violentas. O grandalhão apoiou a lâmina no chão com ambas às mãos feridas pelas inúmeras batalhas, a segurar o cabo. O deus do fogo levou sua lâmina fina, avermelhada, ao ombro direito. Apesar de seu tempo prisioneira na forma de um bokken, a espada de Loki não se assemelhava a nenhum armamento oriental, era como as armas brancas europeias, mas o ferro vermelho parecia crepitar, um calor rugia prisioneiro dentro da lâmina.
- Dizem que vaso ruim nunca quebra. – Gargalhou o maior dos três. A mão pesada percorreu a testa suja de fuligem e suor, como se fosse apenas um trabalhador em câmeras com carvão e fornos, talvez um anão ferreiro. – Veio vingar aquela humana? – Ele está debochando de mim. Compreendeu.
Ulric manteve-se em silêncio, quieto, porém atento, se fosse necessário sacaria as espadas para o combate. Loki, porém, era mais impassível, mantinha os olhos castanhos fixos no deus rival. Sequer parecia notar a presença do rapaz, repentinamente, o semblante de Heimdall alterou-se para algo sério, Loki avançava em sua direção a fim de desferir um golpe, e o guardião preparava-se para revidar. Naquele instante, Ulric percebeu que a batalha ia além do imaginado. Os olhos dourados de Heimdall eram conhecidos por assistir o futuro, enquanto não atoa Loki era associado à magia, ilusões e principalmente trapaças. Era um jogo onde um tentava prever, defender-se e revidar o golpe inimigo ao mesmo tempo.
Não sabia dizer exatamente quando, ou como, mas quando deu por si, estava entre os dois deuses, defendendo ambos os golpes com as espadas gêmeas de Vidar. A pressão exercida pelos lados, era grande demais, não fazia ideia do quanto eles eram fortes, mas eles por sua vez pareciam deslocados, não esperavam aquela atitude vinda de Ulric. De todos, Heimdall, aquele que se orgulhava de sua visão, parecia o mais chocado, não acreditava que não conseguisse prever os movimentos do rapaz, ainda que ele só estivesse se defendendo.
- Fedelho... –sibilou Loki, uma máscara de fúria começava a surgir. – Irá se arrepender por esta interrupção.
Os deuses se afastaram com um salto para trás, atentos começaram a rodear Ulric que continuava em posse das espadas, sentia que havia se metido em algo que não deveria. Antes que pudesse dizer algo, Loki foi o primeiro a avançar. O ataque a príncipio vinha por baixo, pulou então para o lado para procurar defender-se do outro, este foi mais difícil, foi necessária às duas mãos para segurar a investida. O deus do fogo tentou novamente, desta vez um pelas costas, Ulric abaixou-se enquanto saltava com um rolamento para a direita, Heimdall defendeu-se de Loki com o braço, a espada era pesada demais para ser erguida tão rapidamente.
Ulric assistiu Heimdall revidar, mas de algum modo, Loki conseguiu desviar indo ao seu encontro, não esperava por aquele movimento, e ainda procurava entender como havia acontecido enquanto buscava defender-se. Um segundo de devaneio pode custar a minha vida.
Conforme a luta seguia, Ulric ia se acostumando ao ritmo pesado dos dois, cujo mal o deixavam respirar. Inicialmente, pensou que não conseguiria acompanhar o ritmo dos deuses, mas logo observou surpreso que possuía vantagem contra eles. Enquanto Loki se equivalia de suas ilusões e Heimdall de seu poder de prever o movimento do oponente, Ulric percebeu que nada daquilo funcionava com ele. Não sabia exatamente como, ou por quê, talvez fosse obra de Liandan, mas algo lhe dizia que ia além.
O deus que representava o mal parou ofegante, o inimigo fez o mesmo, ao passo que o Knox aproveitou para analisar a situação. Estranho, observou, não pareço tão exausto quanto eles. Deveria derrota-los, mas mesmo com aqueles fatos ainda não enxergava exatamente como faria aquilo, possuía vantagens, mas não era mais forte, seu corpo era fraco o suficiente para receber um golpe e falecer, entretanto não conseguia fazer o mesmo com os inimigos cansados, e mesmo que conseguisse, não poderia, pois a morte de Loki ou Heimdall resultaria em algo novo... Algo jamais presenciado, e era desse novo que Ulric tinha medo.
O grandalhão cuspiu no chão, estendeu sua espada de Loki a Ulric. Odiava um tanto quanto o outro, compartilhavam a mesma essência, por isso não suportava a suas existências, eram opostos e como tais viviam para se enfrentar.
- Está perdendo seu tempo, garoto. – gargalhou Heimdall tentando demonstrar que de um jeito, ou de outro ainda possuía controle sobre a situação. – Somos deuses, você não passa de um pedaço de carne, por que acha que conseguirá nos vencer?
Era verdade. Ulric sabia disso. Já havia se passado muito tempo, ao menos era a impressão que tinha. Talvez Hel já houvesse conseguido alcançar seu objetivo maligno e toda sua luta seria em vão. Sequer havia feito algum estrago em um dos adversários, mas ainda possuía sua língua.
- Tem razão, talvez esteja. – Você enlouqueceu de vez. – Mas para deuses, vocês são muito fracos. – Vou morrer. – A impressão que tenho, é de que batalhamos há dias, mas olhem para mim, não estou cansado ao ponto de pingar suor, enquanto que ao olhar para vocês parecem que mal conseguem carregar um cachorro de madame. – O sorriso brincou em seus lábios, uma curva de puro deboche. Com certeza irei morrer. – Não me mataram quando tinham forças para tal, por que pensa que conseguiria fazer isso agora que está pior do que bagaço? – Foi a sua vez de gargalhar. Riu alto, de forma irritante e o mais debochado que conseguiu. Heimdall poderia ser inteligente, assim como os textos diziam, mas aquele ponto, deveria estar irritado por não conseguir prever os movimentos do inimigo e mesmo por ser confrontado por uma criança.
Ulric pode ver a face do homem com olhos de águia enrubescer de raiva. Ele mordeu a isca. A espada se fixou em sua direção, os punhos bem fechados, e os dentes trincavam denunciavam sua sentença. Se tudo saísse como o planejado, talvez conseguisse vencer o jogo, mas precisava que Loki não...
- Quieto. – Grunhiu o gigante de fogo ríspido.
Interferisse.
Heimdall grunhiu de volta, como um animal que indicava que não aceitava ordens de seres inferiores, mas se calou quando observou que o olhar de Loki era voltado para Ulric.
- Criança estúpida. – Começou a caminhar, os passos firmes, porém suaves. – Pensas que estas a lidar com um de seus subordinados? Quanta petulância. – A expressão facial era seca, impassível de emoções. – Estes que vos fala é Loki, senhor do fogo, deus da mentira e trapaça. Como pode ter pensado que ludibriaria alguém em minha presença? – A essa altura não estava a mais do que dois passos, por isso parou para fitar o corpo humano que o hospedara durante os longos anos que se passaram, vários sentimentos poderiam ter passado por sua mente naquele instante, mas o único que lhe veio foi nojo, nojo por se ver aprisionado, fraco e dependente, mas agora que não era mais nada daquilo, usufruía de seu poder e como tal, destruiria aquele corpo com suas próprias mãos.
Ulric permaneceu quieto, fitando o outro com a mesma intensidade, até que um golpe lançou-se em sua direção. A lâmina incandescente de Loki quase o atingiu na barriga, mas por reflexo defendeu com uma das espadas de Vidar. O gigante recolheu a espada e avançou novamente com Ulric a bloquear os ataques seguidos, que viam um atrás do outro. A batalha que se seguia, era feroz, nem mesmo Heimdall atrevia-se a interferir, tentou enxergar quem sairia vitorioso, mas quando se tratava do garoto, simplesmente não conseguia enxergar exatamente o que aconteceria.
Em um momento, Ulric perdeu o equilíbrio, Loki aproveitou-se para dar uma estocada em uma das pernas do rapaz a fim de deixa-lo manco, mas ele havia sido mais rápido, rolara para longe se erguendo rapidamente com ambas as espadas em mão. Felizmente os golpes ferozes do senhor do fogo não duraram muito, ainda se mostrava cansado, os cabelos castanhos empapados de suor, a respiração ofegante, tudo denunciava o esgotamento do deus, o que parecia apenas irritá-lo, pois Ulric mantinha-se inteiro.
Havia chegado a hora do contra-ataque, os golpes do Knox eram mais precisos, apesar de menos rápidos, e mais letais. Loki conseguia proteger-se contra a maioria, o único que não conseguira fora um que rasgara parte do tecido que cobria seu braço, mas ainda assim não houvera sangue derramado. Em uma das investidas, o menor desequilibrou-se, e quase caiu para frente, o deus aproveitando-se, esboçou um pequeno sorriso e preparou-se para atacar, mas antes que conseguisse, sentiu uma dor aguda próximo ao quadril. Algo havia perfurado em peso seu corpo, as mãos soltaram a espada, não sabia se era por surpresa por ter sido atingido, pelo cansado ou mesmo dor, mas sabia que havia perdido a batalha.
- Ele ainda não está morto, garoto. – Informou Heimdall. A expressão não era de incredulidade, felicidade ou mesmo raiva por seu rival ter sido atingido por outro. Era algo impossível de se descrever, talvez nem mesmo o próprio Heimdall soubesse dizer o que sentia naquele momento.
Ofegante, Ulric soltou as espadas quando Loki estava caído, as mãos foram aos joelhos e respirou o quanto pode antes de responder. Só agora sentia todo o cansaço de horas atrás.
- Eu sei. – Murmurou, mas sabia que o outro o escutara. – Mas não posso deixar que morra. Escute-me... – houve uma pausa, os músculos fadigados doíam como nunca na vida. – você deve entender que nenhum de vocês dois deve morrer se enfrentando, caso contrário a porra do mundo...
- Pensa que não sei? – Heimdall o interrompeu. A lâmina fincada no chão servia como apoio para o braço. – Garoto, durante séculos guardei Bifrost, jurei isso perante Odin, que Valhala o tenha. Sempre soube que esse dia chegaria, como guardião da passagem, eu tinha tempo para contemplar o futuro. Tentei avisar Odin sobre os planos de Hel, mas ele não me deu ouvidos confiando Liandan a ela. Hel deve ter lhe dito que ela é a única saber, mas não é verdade. Eu sempre soube.
- Sabia de tudo, e mesmo assim seguiu de acordo com a música da vadia?! – Vociferou. – Por que não fez algo para impedir?! Por que desistiu tão facilmente?!
O deus suspirou.
- Você não entende, não é garoto? Você não sabe o que é em todas as vidas ver sempre o mesmo filme, vivenciar a mesma cena sabendo que no fim sua batalha é em vão... – Houve uma pausa. – O Ragnarok não pode ser evitado. Jamais poderá e todos os mundos de alguma forma o conheceram, seja o nome que se de a isto. – A espada foi retirada da terra e brandida algumas vezes a frente, como se ele tentasse cortar o ar para avaliar o poder da espada. – Eu quero que este mundo acabe. – Sorriu, algo travesso brincava em seus lábios grossos. – E quero que termine da forma que mais gosto, batalhando com este desgraçado. – Direcionou um olhar para Loki, cujo se encontrava inconsciente largado ao chão. – Mas você acabou com esta diversão, por isso me contentarei com a parte humana do gigante.
Não houve tempo para pegar as espadas, o ataque foi rápido como o de um tigre, e antes que percebesse, estava no chão com o pé de Heimdall a esmagar a boca do estômago, o sorriso dele ainda brilhava. Sangue fugiu pela boca do garoto, não havia percebido que estava machucado internamente, não sentia mais dor, mesmo a dor dos músculos pareciam ter sumido.
- Que decepção. – Comentou pisando ainda mais forte. Mais sangue jorrou. – Pensava que por derrotar Vidar e Loki, seria um grande oponente após todo aquele discurso de mais cedo, mas pelo visto... Foi só impressão minha.
...
Liandan havia ordenado que eles ajudassem Ulric, e fora o que eles fizeram, mesmo que o resultado disto não parecesse tão agradável. As tropas dos filhos de Thor aceitaram os lobos temporariamente, com a condição de que após a batalha fossem feitos prisioneiros. Hati fora o mais relutante em aceitar aquela condição, mas após muito reclamar, Skoll o convenceu de que seria o melhor a ser feito.
Parte das tropas de Loki, havia sido massacrada pelos próprios filhos de Fenrir, ainda que esse não parecesse satisfeito com a traição dos filhos. O uivo do pai soou irritado em meio ao campo de batalha, completo de remorso e desgosto. Skoll fora o primeiro a uivar em resposta, alegando que aquilo era a coisa certa a se fazer. Mas aquilo não bastava para o lobo negro, que ainda carregava o ódio por ter sido aprisionado por Odin em um lugar frio e desolado, onde nem mesmo Loki, seu pai, parecia se importar.
Fenrir avançou sobre a cria mais velha, Skoll, com uma mordida brusca no pescoço. Hati correu em defesa do irmão, Managarm veio em auxilio, mas Hati o expulsou mandando que cuida-se de outros assuntos, pois aquele era um assunto de família.
A batalha era violenta entre os gigantes, os guerreiros evitavam a proximidade, e muitos até mesmo pararam suas pelejas parar assistir a briga.
Fenrir, apesar dos anos preso e vivendo pacificamente nos aposentos de Hel, ainda se mostrava um lobo mais poderoso do que suas crias, por isso quando Hati veio interferir, uma patada em sua face bastou para afastá-lo. Skoll aproveitou-se para investir, agora, com o pescoço livre foi sua vez de exibir os dentes afiados e tentar perfurar o pescoço do pai. Mas era difícil. A pele era grossa e coberta por pelos negros, os dois se pareciam muito fisicamente, ainda que a expressão facial de Fenrir fosse sem dúvida mais cruel, carrancuda e repleta de cicatrizes. O ataque foi revidado rápido de mais, deu-se então início a uma luta entre machos por poder e respeito. Hati tentou voltar para a batalha, mas o mais velho o proibiu. Sua intenção não era matar o pai, mas sim faze-lo perceber que não houvera traição, exceto por parte de Hel, cuja incitara aquela guerra; porém, se fosse necessário... Skoll preferiu não completar esse pensamento.
Os dois se afastaram. O olhar de um era fixo no do outro, andavam em círculos rosnando, esperando o momento certo para atacar. E quando este veio, a carnificina teve inicio. Hati não sabia bem como se comportar, não queria que nenhum dos dois perdesse, sabia bem o que significava a derrota entre uma batalha de lobos... A morte.
...
Precisava sair dali. Todos estavam lutando tão bravamente... E ela ali estava, presa repleta de hematomas e feridas que talvez sequer sobrevivesse. Mas morrer não parece assim tão mal. Pensou.
- Silêncio. – Ordenou Hel. A voz seca e sem paciência. – Seus pensamentos gritam para mim.
A deusa afastou-se a passos lentos, arrastando a seda do vestido negro, a cauda possuía pequenos ossos humanos presos a linhas em um azul escuro que cintilavam e faziam a alegria dos corvos com o som da morte.
- Suas comunicações com o Knox me custaram caro. – massageou a têmpora e sentou-se em seu trono de esqueletos e aves negras. – Mas agora creio que aprendeu a lição. – um singelo curvar de lábios surgiu.
Hel ordenara que Yuki fosse ferida até que sequer conseguisse falar ou mesmo se movimentar, e ao que parecia, seus servos seguiram bem a ordem, pois a jovem com aparência de kitsune limitava-se a permanecer sentada, quieta, abraçando as próprias pernas, e sempre que lançava um pensamento positivo em relação a parte humana de Loki, Hel lhe dava uma bofetada na face.
- Mas até que a morte de Vidar não foi algo tão ruim. – cruzou as pernas, com a esquelética por cima da carnuda. O decote da saia do vestido permitia uma excelente visão de suas pernas. – Ele ia acabar atrapalhando meus planos. – Sua expressão tornou-se carrancuda, uma maçã enegrecida surgiu em suas mãos, completamente podre. A fitou por alguns minutos, os corvos se agitaram e ela arremessou o falso fruto para frente, os animais voaram na direção da maçã, brigaram entre si, por bicadas generosas.
- Compreenda, não tenho nada contra você. – a mão morta, coberta pela manga comprida do vestido, alisou os cabelos. – Entretanto, não permitirei que estrague meus planos. – Alguns corvos permitiram a visão do que acontecia com a maçã, apenas o caroço negro ainda restava e repleto de vermes que se contorciam. – É por isso que gosto desses belos animais. – Sorriu. – Eles nunca abandonam o que começam.
...
Heimdall gargalhou deliciado com a vitória. Fora tão fácil matar o jovem Knox.
- Esperava mais de você, pirralho. – cuspiu. – Mas vejo que fiz mal em esperar.
O corpo se dissolveu a sua frente e os olhos se esbugalharam. Não, aquele não havia sido Ulric. Uma magia de ilusão, desgraçado. Mas já era tarde demais. Como um raio, o garoto surgiu por trás e enfincou a espada de Loki, aquela que crepitava, nas costas do deus. Em seu rosto apenas a incredulidade estava.
- Como...? – conseguiu murmurar antes de cair. A arma de Loki possuía uma característica interessante, ao adentrar o corpo da vítima, as chamas queimavam o corpo de dentro para fora, era mais uma sensação do que realidade, mas era igualmente doloroso.
Ulric não respondeu. Nem mesmo ele conseguiria explicar o que aconteceu, ainda não sabia bem como seus poderes funcionavam, apenas sabia que existiam. Enquanto Heimdall pisoteava seu estômago, em um momento, ao levantar o pé para preparar-se para uma pisoteada mais forte, ele rolou para o lado agarrando a espada de Loki, entrou em modo de ataque, mas o outro não veio ao seu encontro, estava ocupado demais pisando no nada. Não questionou a loucura do outro, apenas aproveitou-se para atacar. Veio por trás, quando Heimdall pareceu perceber que algo estava errado, já era tarde demais, a lâmina veio e perfurou a carne do inimigo que tombou. A respiração de Ulric normalizou, sentia-se estranhamente bem, a espada flamejante lhe dava a sensação de ser a extensão de seus braços, dando-lhe conforto, como se o completasse... Era a mesma sensação que possuía ao segurar o boken, o mesmo que dias atrás era aquela espada e estivera consigo desde que conseguia se lembrar. Uma das mãos tateou o corpo em busca de sangue, ou de escoriações, mas nada foi encontrado.
- Hehehe... – Caído, Heimdall riu enquanto uma poça de sangue se formava próximo à boca. – Loki sempre foi um cara duro de cair. – Fez uma pausa, tossiu um pouco e continuou. – Mas acho que sem você ele ficou incompleto, rapaz. – sorriu.
Ulric não compreendeu inicialmente o que ele quisera dizer com aquilo, mas se obrigou a não pensar no assunto, não sabia se os deuses sobreviveriam, mas havia impedido de se matarem, parte do Ragnarok havia sido evitado. Ainda que pensasse que Heimdall estava morrendo, sendo que seria melhor evitar a morte de um deles. Agora faltava Hel, os lobos deveriam cuidar de proteger os filhos de Thor, e confiava neles, talvez mais do que deveria.
Lançou um último olhar para Loki, estava quieto, não se movera depois do golpe, mas não imaginava que houvesse falecido, ainda assim estranhava o fato de permanecer ao chão. Involuntariamente, piscou, e quando os olhos se abriram, encontrava-se sozinho, no local onde meditara a fim de encontrar a entrada para a redoma de ar. Estava sentado com as pernas cruzadas, e o corpo de Heimdall na mesma posição, porém os olhos se encontravam abertos com as pupilas brancas e a uma baba escorria dos lábios entreabertos. Ainda estava vivo, mas parte da mente havia falecido naquela batalha.
Levantou-se, sentia-se bem, o corpo não se mostrava machucado ou cansado. Ao alto, pássaros negros o rodeavam, cantando sua canção de ódio, esperavam que Ulric saísse morto da batalha mental, mas não ocorrera o esperado. Hugin e Munin, aqueles que um dia haviam sido os olhos de Odin, deram um rasante, uma tentativa falha de acertar o rapaz.
- Hel! – Gritou aquele que possuía o corpo humano. – Sei que esta assistindo isso através das aves! – insistiu.
Os corvos continuaram a cerca-lo no céu, voando em círculos.
- Suba, saia de seu reino, dessas raízes congeladas e venha até mim!
Certa vez na presença dos filhos de Thor com a giganta Jarnsaxa, Magni lhe confessara que Hugin e Munin não os reconheciam como herdeiros do trono, por isso não obedeciam a suas ordens, mas ela soubera como fazer para os corvos da memória e do pensamento trabalharem para ela.
O céu quase imediatamente tornou-se negro, névoa tomou conta do lugar, assim como o cheiro da morte. E então ele a viu. Vestida inteiramente de cores escuras, a pele branca como gelo, enquanto que a outra metade cadavérica com restos podres da carne que poderia ter existido ali algum dia. Os cabelos cuidadosamente escovados, enquanto a parte do crânio exposta era coberta por uma máscara prateada com detalhes em vermelho. Ulric podia sentir a fúria que ela emanava apesar da fria expressão.
- Tens-me aqui, humano. – Anunciou sua chegada com uma voz espectral. – Hel, senhora de Helgardh.
- Onde está Yuki? – Aprendera a muito tempo que com a deusa deveria ser sempre direto, sem rodeios. Ela não costumava cair em joguetes.
Hel o olhou por segundos sem alterar sua expressão, por fim um pequeno, quase imperceptível sorriso brotou.
- Desistiu de sua pequena vadia para ficar com a outra? – Questionou. Provavelmente buscava irritar Ulric, descontrolando-o, mas não foi o que aconteceu, ele mantinha-se firme. Ela, porém, não pareceu se decepcionar com a mudez do inimigo e continuou. – Se quer algo de mim, deve me dar algo em troca. Hel jamais faz algo sem receber sua recompensa.
Foi à vez de Ulric manter-se quieto, fitou-a pensativo antes de pronunciar qualquer palavra.
- Lhe darei algo em troca, senhora da Casa das Névoas. – Garantiu assentindo. – Será paga com o preço do ferro.
Agilmente, sacou a lâmina que uma vez pertencera a Loki, em algum momento havia descartado as espadas gêmeas de Vidar para adquirir uma que melhor se adaptava ao seu gosto. Avançou rápido demais para os olhos humanos com a arma em punho, mas a deusa estava preparada, a fumaça que a circundava surgiu como uma barreira de proteção a sua frente, que defendeu o golpe que lhe foi desferido. Ulric afastou-se com um salto para trás, brandiu a espada a poucos metros de distância de Hel, e deste, fogo surgiu. Foi a vez das chamas lamberem a terra. O campo aos poucos era devorado pelo calor incessante, mas os dois não pareceram ser afetados.
- Poder incrível, não é mesmo, rapaz? – Indagou Hel particularmente para ninguém. – Parece conseguir dominar bem os poderes de meu pai.
Quando a névoa que a cercava abaixou, ela pode vê-lo envolvido por suas chamas escarlates.
- Mesmo a cura e desligamento de certas funções do corpo, que pareciam ser tão difíceis de serem dominadas, você conseguiu ter controle em tão pouco tempo. – Observou fingindo falsa admiração. – Mesmo Loki precisou de anos, mais do que gostaria para aperfeiçoar essas técnicas. – Sorriu deliciando-se com a lembrança da prisão, que certa vez Odin trancafiara o pai. Era um lugar solitário onde preso pelas tripas de um de seus filhos, ele era forçado a ficar nu, enquanto veneno pingava dos dentes de uma cobra diretamente em seus olhos.
Cura? Funções do cérebro? Agora ele compreendia o que ocorrera minutos atrás. Curar-se, desligar e ligar pequenos lugares do cérebro responsáveis por sentir a dor poderia ser considerado trapaça em uma luta? Ulric não se importou, apenas agradecia mentalmente por ter aquelas habilidades, ainda que não soubesse como ou quando ativa-las... Mas agora, algo o preocupava, se ele conseguia... Isso significa que Loki também conseguiria?
Desta vez foi Hel a avançar. Em suas mãos a névoa foi moldada em uma foice de dois gumes, uma na cabeça e a outra lâmina no pé da arma. Quando a foice tornou-se sólida, ela avançou. Ulric pensou que o fogo poderia detê-la mesmo que por poucos instantes, mas logo percebeu que os instantes que aquilo havia detido a deusa, foram aqueles em que ela tagarelava algo para ele, provavelmente fora o tempo necessário para calcular como atacaria.
Sem defesa, ela surgiu por trás cortando suas costas, o corte só não havia sido mais profundo porque Ulric conseguiu joga-la para as chamas com um brandir da espada. Ela defendeu-se novamente com as névoas que vieram obedientes ao seu encontro, e formaram um escudo. Vence-la, seria complicado. Pensou, mas Ulric nunca gostou de coisas fáceis, odiava entediar-se.
...
O uivo soou alto e estridente. Os dentes trincaram enquanto um rosnado fugia da garganta do outro. A guerra era cruel para todos. Separava famílias inteiras, amantes, e apenas trazia a desgraça. Durante anos a humanidade fora assolada por diversas rixas, muitas com resultados débeis e egoístas se pensarem nas mortes causadas, mas ainda assim os seres continuavam presos, presos a aquele eterno Ragnarok.
O maior, de pele mais escura avançou sobre a cria já banhada em sangue. Ambos estavam fracos, ofegantes e com sangue emaranhando os grossos pelos do pescoço e outras partes. Quanto Fenrir aproximou-se, Skoll arranhou o olho do pai com a pata dianteira direita, o outro recuou rosnando. Havia sido um golpe profundo, não o suficiente para vencer a peleja, mas o suficiente para deixar o filho de Loki desorientado. Vendo sua oportunidade, Skoll agiu. Abocanhou o pescoço, já ferido do pai, e usando toda a força que lhe restava, enquanto Fenrir gania, torceu o pescoço do lobo gigante mais velho.
Hati aproximou-se incrédulo com passos cuidadosos, o coração doía. Em um baque, o corpo de Fenrir caiu sem conseguir respirar, ainda vivia... Mas não por muito tempo. Skoll o fitou quieto. As orelhas brancas, felpudas de Hati se ergueram pouco crente no que o irmão planejava fazer. Deu dois passos a frente, no terceiro, hesitou. Observou com dor no olhar o momento exato em que Skoll matou Fenrir, aquele que uma vez havia sido o pai dos caçadores de Mani e Sigel.
...
Hel sorriu. Suas lâminas de névoa estavam banhadas com a maravilhosa cor da morte. Sangue.
Ulric respirava com dificuldades. Não conseguia fazer como antes, recuperar-se, ou não sentir a dor dilacerando dos golpes que levara. A deusa era escorregadia, não conseguia acerta-la, em contrapartida, ela desparecia e aparecia quando queria, acertando-o com um golpe certeiro.
Ouço algo está noite.
Repentinamente, Hel começou a cantarolar algo, ela parecia ter esquecido completamente da presença do adversário. Dançava feito uma boneca, ao passo que se divertia com risadas. A névoa se agitava ao seu redor, tornando-se mais violenta a medida que a canção se mostrava presente.
Seres negros vem me visitar
Mas quem será? Quem será?
Cuidado forasteiro, a dona morte ai vem, ai vem
Com suas vestes banhadas na mais profunda escuridão
Sim, isso mesmo, ela ai vem, ela ai vem
Nesta parte Hel deu um ródopio, como uma criança feliz que mostra aos pais o passo novo de balé que aprendeu; ou de acordo com o rapaz, uma boneca que deu defeito.
Ela vem para todos, forasteiro
Sim, isso mesmo, ela ai vem, ela ai vem
Não havia percebido quando, mas em algum momento uma voz masculina juntou-se a melodia. Ulric estava de pé, a lâmina cravada no coração da senhora dos mortos. Mas continuava a cantar, parava quando um jarro de sangue fugia de seus lábios, ou uma tosse lhe roubava o ar. Aos poucos sua voz feminina foi morrendo, apenas a masculina completava a canção.
Ela vem para todos
Sim, isso mesmo, acredite,
Não há como fugir, não há, não há
Pois um dia ela irá te pegar, e você não poderá escapar.
Fim Aposta IX