Um sino que se ouve ao longe e uma luz em penumbra dão o tom de agressividade. Há um silêncio momentâneo, interrompido por sons de espancamentos e gritos de um menino carregado de dor. Os gritos tornam-se mais intensos e o espancamento aparentemente mais agressivo cessa paulatinamente. Surge cambaleando Agamenon trajando um calção e o peito nu. Expressão de pânico no rosto. Choro contido. Caminha lentamente ao centro do palco e, sem resistência, cai como se perdesse os sentidos. Permanece imóvel por alguns segundos. Agamenon levanta-se e caminha lentamente para a boca de cena. Luz na boca de cena.
AGAMENON (agressivo) ? Eu não sou bicha! (voz de choro) ? Mentira! É tudo mentira! (melífluo) ? Eu não sou bicha... Bicha é a mãe de quem me chama.
Ouvem-se barulhos de ferrolho e batidas na porta da cela. Agamenon corre para uma das coxias e retorna com uma marmita sem comida. Dentro da marmita uma carta rasgada em quatro partes. Luz em Minerva. Enquanto Minerva declama o conteúdo da carta Agamenon acompanha em silêncio na leitura.
MINERVA (declamando a carta) ? São Paulo, 18 de março de 1985. Querido e amado espero que esta lhe encontre com muita saúde. Estou morrendo de saudades. Aconteceram muitas coisas durante estes dias; algumas boas e outras desagradáveis. Mas vou começar esta carta com uma ótima notícia. Você será pai; estou grávida! Minha barriga ainda está pequena; quase não aparece. Sempre sonhei com um barrigão imenso para aquecer a nossa cria que está aqui dentro de mim. Mas nem tudo é felicidade e tão cedo poderemos nos encontrar. Aconteceu uma tragédia. O doutor Tarses conseguiu o que mais queria. Estava bêbado; chegou quebrando tudo o que encontrava pela frente. Não tive chances. Ele era muito mais forte do que eu. O desgraçado me agarrou, rasgou as minhas roupas e me pegou a força. Pensei até que iria perder o nosso filho, mas está tudo bem com ele. De vez em quando ele dá uns pontapés; desconfio até que temos um jogadorzinho do Corinthians louco pra marcar vários gols: na vida! Pena que a vida não é do jeito que gostaríamos que fosse. Voltando a barbaridade do crápula do doutorzinho de merda, enquanto ele ofegava e invadia o meu corpo sem nenhuma piedade, fingi m romance, uma paixão por ele; tive de relaxar e aceitar aquele nojo de homem sobre mim para que não machucasse o nosso bebê. Mas o desgraçado não incomodará mais ninguém. Está debaixo da terra comendo formigas. Morreu! O advogado tarado morreu. Esperei que dormisse após o seu gozo com cheiro de morte. O filho da puta roncava como um daqueles porcos da pocilga que tem na sua Unidade. Peguei uma faca de cozinha e dei umas dez facadas nos culhões do infeliz. Como gemia em morte... (em êxtase) - Era delicioso ver aquele verme agonizando e o sangue jorrava num chafariz que lavava o tapete com o vermelho da vingança. O doutor Tarses aclamava por ajuda e eu neguei sorrindo. Confesso que foi horrível ver aquelas tripas ensanguentadas e belo ver o capeta se curvar em dores e lágrimas. O doutor Tarses morreu. Eu matei o doutor Tarses e tive o maior prazer em confessar o meu doce crime. Fui presa e me mandaram pra U.E. 16 na Vila Maria, aqui em São Paulo. Estou feliz. Nunca mais aquele diabo tentará incomodar alguém. O assassino foi assassinado por mim. Tornei-me uma assassina também. Fui torturada só pra confessar o que já tinha confessado. Estou feliz por aquele infeliz estar debaixo da terra. Vinguei pela nossa mãe. Vinguei por você. Vinguei por mim. Quanto a minha saúde, não anda muito bem. Passo a maioria dos meus dias na cama. O próprio médico foi cruel e disse que eu tenho pouco tempo de vida. Até hoje não encontraram um doador compatível para o meu transplante. Rezo muito, todos os dias, pedindo pra Deus, se é que este cara existe mesmo, me levar somente depois que o nosso pedacinho de carinho nascer. Mas não sei se vou resistir por muito tempo. O médico disse que, por enquanto, está tudo bem com o nosso menino e que há grandes possibilidades de nascer normal; uma criança sem defeitos, mesmo sendo filho de dois irmãos. (breve pausa) - Tenho sofrido, sentindo muito a sua falta. Agora, estando também internada, entendo o quanto você sofre numa Unidade da Febem. O meu sofrimento só não é maior porque estou doente, mas vejo muitas meninas novas aqui na Unidade pastarem nas mãos dos vigilantes e de outros menores. Muitas são violentadas e outras, se tornam líderes, depois que viram ?machões?. Quanto mais ?machos? mais são respeitadas. Fiz algumas amizades nesse inferno e Cris, a minha melhor amiga, está planejando uma fuga pra se caso eu melhorar de saúde. Daremos um jeito de chegar até aí na U.E. 4. Cris também tem um irmão que está no Lar 9, aí na Unidade de Batatais. O nome do irmão dela é Geovane. Será que você o conhece? Meu irmão... Termino esta dolorida carta na esperança de brevemente poder revê-lo novamente. Estou cuidando direitinho do nosso bebê e assim que nascer, se é que vai nascer, prometo mandar alguns retratos pra você. (breve pausa) ? Da pessoa que mais ama você neste e em outros mundos, sua fêmea: Minerva.
Blecaute em Minerva.
AGAMENON (atônito) ? Meu Deus! Eu vou ser pai... Mas eu não posso ser pai; prefiro ser mãe. (coloca a mão sobre o ventre) ? Hércules! Nosso filho está aqui dentro... (cai em joelhos) ? Mamãe, eu vou ser mamãe! (exasperado) ? Mas eu não sei ser mãe! Eu nunca fui! Será que dói ter um filho? A Minerva, minha irmã, vai ter um. Será que ela vai sofrer? (numa euforia) - Meu filho... Como será que vai se chamar? Mauro? Maurício? Tarses? Não, não! Vai se chamar Hércules, igual ao pai. (breve pausa) ? Morreu! Bem feito doutor Tarses... Você está morto! (melífluo) ? Ele me fazia carinhos. Colocava em se colo... (volúpia) ? Me fazia coisas gostosas... (exasperado, aos berros) ? Assassino! (volta-se melífluo) ? Morreu!
Ouvem-se novo barulho d ferrolho e batidas na porta da cela. Agamenon apanha um bilhete na coxia e retorna imediatamente. Luz em Hércules. Enquanto Hércules declama o conteúdo do bilhete Agamenon acompanha em silêncio na leitura.
HÉRCULES ? Agamenon. Espero que tenha lido a carta que a sua irmã te mandou. O vigilante Notredame leu a carta, rasgou e jogou no lixo da lavagem que vai para a pocilga. Mas antes ele ligou para o diretor da Unidade. Ouvi que eles vão arrumar um jeito de foder a sua irmã lá na U.E. 16. Você deu muita sorte por eu ter visto o filho da puta jogar a carta no lixo. Escrevi este bilhete pra te avisar que vou pra São Paulo amanhã cedo. Resolvi que vou fazer o curso da Volks na U.E. 21. Sinto muito, mas não pude aguentar a sua traição. Um filho com aquela menina? Faça um bom proveito dela e espero que sejam felizes... Não se preocupe comigo. Os irmãos Mauro e Maurício me escreveram. Vou ser a ?mãezinha? deles. Cuidar das coisas deles. Sei que serão só meus; não vou precisar dividir os gêmeos com ninguém! Finalmente terei Mauro e Maurício novamente em meus braços. Amarei muito os dois que já estão me esperando. Sinto muito por tudo o que aconteceu, mas foi melhor assim. Meu Agamenon eterno; eu te amei de verdade. Sentirei muita falta de você, mas aquela menina venceu. Já sinto saudades do seu cheiro, do seu corpo e do seu abraço. Antes de terminar esta dolorida despedida, gostaria de coração desejar felicidades ao seu filho que vai nascer. Tchau Agamenon. Eu te amarei por quanto tempo eu viver. Alguém que te amou de verdade nesta vida: Hércules. Batatais, 21 de março de 1985.
Blecaute em Hércules. Pausa. Agamenon amassa o bilhete e cai de joelhos.
AGAMENON (aos prantos) ? Não Hércules! Você não pode fazer isso comigo! Eu amo você! Não vá embora, por favor... Não me abandone! (num choro desesperador) ? Não me abandone; eu te amo!
Agamenon levanta-se e caminha para o fundo do palco e apanha uma colher. Retorna para a boca de cena e se ajoelha. Estica o um dos braços apontando o punho para a plateia. Com a outra mão desfila vários golpes contra o pulso.
AGAMENON (num desespero) ? Amo você Hércules... Eternamente!
Como um faquir, Agamenon introduz lentamente a colher garganta abaixo. A luz cai em resistência. Desce a cortina.
Esta é uma Adaptação da Primeira Versão de Dezembro/1994