Liatris

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    16
    Capítulos:

    Capítulo 1

    Prefácio

    Álcool, Bissexualidade, Drogas, Homossexualidade, Linguagem Imprópria, Nudez, Sexo, Violência

    Cinco e meia da manhã. Estava no seu sono mais profundo ? há séculos não dormia tão bem ?, envolto por três ou mais cobertores, afinal, era inverno, e o frio da madrugada era congelante. A porta se abriu num estrondo e uma figura monstruosa se projetou do lado de fora do quarto.

    - ACORDA, VAGABUNDO! ? disse a velha senhora, descabelada. Lentamente, tomando conta de si e da situação, olhou para a porta. Respirou fundo. Virou-se.

    - Cala a boca, mocréia, me deixa. ? ele disse, fechando os olhos, que logo se arregalaram com a tampa de panela voando em direção à sua cabeça.

    Inspirou... expirou... e sentou-se na cama. Iria ser um longo dia.

    -

    - Até mais tarde, velha. ? ele despediu-se da senhora, fechando a porta. Morava no final de uma rua, que também era um centro comercial. O Sol brilhava intensamente e nenhuma nuvem se encontrava no céu. Os raios solares invadiram os olhos de Takahashi, clareando-os, mas atrapalhando sua visão. Colocou a mão acima dos olhos. Partiu.

    Para chegar à escola, ele atravessava um bairro famoso, nomeado Aurora. O bairro era muito cobiçado, afinal, não era lugar de ?gente pobre?. Normalmente seus moradores eram soberbos, orgulhosos e, sim, muito mal-educados. Takahashi odiava o lugar. Não por morar em um bairro menos privilegiado, mas por abominar este tipo de comportamento. Felizmente, à sua esquerda, o maravilhoso oceano e suas gaivotas cumprimentavam-no. Adornado com sua cara fechada, ele dava longos e pesados passos.

    -

    Chegou na entrada da escola. Uma pequena trilha feita de pedras liderava à escada que conduzia ao interior do prédio. Em volta dela, um belo jardim que, ao se encontrar com as laterais do colégio, terminava-se em um gramado, no qual fora construída uma quadra poliesportiva. Atrás do prédio, uma grande fonte arredondada feita de mármore, cujo centro era ocupado por um belo anjo feito do mesmo material. Essa fonte, geralmente, era ocupado por alunos na hora do intervalo, e felizmente era muito bem conservada ? caso contrário, as punições eram notáveis. Em volta da fonte, imensas árvores. E ainda havia um pequeno pomar no colégio que, curiosamente, ficava de frente para a janela da sala de Takahashi, aonde ele costumava sentar-se perto.

    Abriu a porta da sala. Como chegou mais cedo, não havia ninguém na sala, o que o deixou levemente confortado. Sentou-se na última cadeira da primeira fileira, que encontrava-se perto da janela que mostrava-lhe o pequeno pomar. Encostou o cotovelo na mesa e apoiou o rosto na mão. Observou o pomar.

    Não demorou muito e os outros estudantes chegaram, reclamando das férias que haviam acabado. Nenhuma pessoa nova. Novamente, ninguém o cumprimentou nem sentou perto dele. Havia sempre uma cadeira desocupada ao lado do rapaz. Takahashi nunca havia falado com ninguém daquele colégio, mesmo estando ali por quatro anos. Não desde que, aos treze anos, envolveu-se numa discussão e quebrou uma parede. A partir desse peculiar evento, as pessoas começaram a temê-lo e distanciar-se, exceto pelas garotas fúteis que tentavam desesperadamente seduzi-lo.

    A brisa fria aliviava o calor e balançava os negros cabelos do rapaz.

    Não demorou muito e o professor chegou, cuspindo um bom dia tão falso quanto seu sorriso, denotando sua frustração com a vida e o emprego. Como uma máquina, explicava as regras e projetos do colégio.

    Bateram na porta, levemente.

    - Entre. ? disse o professor.

    A porta se abriu, lentamente, seguida por uma voz tímida e rouca:

    - Com licença, senhor, digo, professor. Eu me atrasei um pouco, será que eu posso entrar, por favor?

    Takahashi nunca havia ouvido aquela voz. Sinônimo de gente nova. Não que isso importasse. Então ele entrou, com a permissão do professor.

    Era um menino branquíssimo, não muito baixo. Carregava nas costas uma mochila verde-escura e sem graça. Estava vestido com uma calça preta comum, sapatos violetas e uma blusa preta que era escondida pelo casaco enorme ? tanto que suas mãos não apareciam. Mas duas coisas nele chamavam a atenção: seus olhos eram de uma cor incomum. Violeta. Intensamente violeta. E sim, seu gorro, que escondia totalmente seu cabelo. Era um gorro preto, com olhos, e orelhas de gato, nada discreto.

    O professor, ao olhar por mais alguns segundos para aquele gorro esquisito, caiu na risada. Logo, a sala inteira estava rindo, inclusive Takahashi.

    O menino, constrangido, timidamente foi andando pela sala, arrastando sua mochila pesada pelo chão, até encontrar a mesa vazia, num local agradável, que, por coincidência, ficava ao lado de Takahashi. Este, mal-humorado, olhou para o menino com um visível desprezo, mas não deixou de surpreender-se com a coloração de seus olhos.

    - Oi! ? a voz rouca do menino atacou os ouvidos de Takahashi. ? Meu nome é Haru, e o seu?

    Takahashi tentou ignorá-lo, mas ele havia sido simpático demais para levar um coice. Então, sem nenhuma vontade de sorrir (ao contrário do menino, que deu um sorriso enorme), respondeu, olhando para o quadro negro, disfarçando uma possível atenção no que o professor dizia.

    - Takahashi.

    Haru inclinou levemente a cabeça e sorriu, revelando seus afiados caninos. Takahashi ignorou. Até a hora do intervalo, os dois permaneceram trocando rápidos e discretos olhares, que vez ou outra se cruzavam. Quando isso acontecia, Takahashi franzia o cenho e o outro desviava os olhos, envergonhado.

    O sinal bateu.

    -

    O jardim dos fundos era um local realmente confortável. A grama intensamente verde, ainda refrescava-se com o orvalho da manhã. Alguns pássaros cantarolavam entre as altas, imponentes e obscuras árvores que contrastavam o verde alegre do gramado. Os alunos, escandalosos, ocuparam em um piscar de olhos todos os bancos de mármore e os lugares disponíveis na fonte. Haru, devagar que era, contentou-se em sentar ao pé de uma árvore, encolhido e isolado, mas confortado. Não muito longe, Takahashi observava discretamente o menino. De pernas cruzadas, ele afrouxou levemente a gravata. A brisa, indiscreta, atravessou os dois, fazendo com que seus olhos se encontrassem novamente. Desta vez, não desviaram.

    O sinal bateu, os alunos retornaram.

    Ao chegarem na sala de aula, depararam-se com o diretor. Certos de que iriam levar uma bronca, surpreenderam-se com o sorriso e o ?bom dia? do indivíduo. Logo começou a elogiar qualquer um e soltar piadas antigas. Ele havia comparecido para divulgar a tradicional viagem do colégio, uma excursão às Falésias da Perdição. Por mais tenebroso que fosse o nome, era um lugar paradisíaco e fantástico.

    Os alunos entraram em histeria. Os veteranos sabiam bem sobre essa viagem ? sempre era a maior festa. Enquanto o diretor tentava ouvir sua própria voz e os alunos se desesperavam, Takahashi e Haru observavam o pomar, incomunicáveis.

    E depois do diretor ter dado o recado, assim se passaram horas. O sinal bateu novamente, o período havia terminado. Os alunos, aliviados, correram para fora da escola.

    Como se já não bastasse sua ingenuidade, Haru não era rápido. Ele colocou sua mochila nas costas e virou a esquina da escola, andando distraído, em direção ao seu bairro.

    Trovejou.

    Alguns metros á frente, dois marmanjos da sua classe estavam escorados na parede, encarando-o. Eles não gostaram do menino, porém ao descobrir que ele morava por aquelas bandas, deduziram que era rico e resolveram roubá-lo. Haru, distraído com as luzes da distante torre que agora se acendia, acabou esbarrando em um dos rapazes. O menino caiu de joelhos e, ao se levantar, educadamente, pediu desculpas. Os dois marmanjos deram largos passos à frente, empurrando o ingênuo Haru, que caiu sentado, sem entender muito o que estava acontecendo.

    Do outro lado da rua, Takahashi caminhava em passos rápidos, não queria pegar chuva. Até que entre os trovões e ventanias, ouviu uma voz familiar. Rouca. Estava tossindo, gemendo, pedindo desculpas, mas logo era calada por um pontapé.

    Seu coração acelerou. Ele não queria virar o rosto porque não seria agradável ver a cena que se projetava em sua mente, a qual ele temia ser verdade. Suas mãos congelaram. Ele deu um passo para trás. Virou o rosto e viu.

    Movido pela fúria, seguiu em longos e estrondosos passos até onde o ato de covardia se manifestava. Um dos marmanjos (o outro foi mais esperto, ao ver Takahashi, saiu correndo) socava o corpo desmaiado de Haru. Quando estava prestes a socar seu nariz, foi parado por uma mão gélida, inexplicavelmente forte. Soltou um palavrão e olhou para o rosto do rapaz. Takahashi.

    O agressor tremia de medo. Ele sabia por que Takahashi era temido no colégio. Ele tentou pedir desculpas, inventou qualquer coisa, mas não conseguia pronunciar uma palavra sequer de tão desesperado que estava. Sentiu seu braço torcendo lentamente. Ouviu cada osso de seu ombro, cotovelo e pulso esquerdos quebrando. Sua mão estava desfigurada. A dor era tamanha que seu grito entalou na garganta. Ele desmaiou, caindo sobre seu braço que já nem parecia mais parte de seu corpo.

    Takahashi olhou para Haru. Desconsertado, tomou o menino pelas costas e o levou pra casa.

    -

    Já havia anoitecido e chuva caía sobre a cidade quando os olhos do menino começavam a se abrir, devagar. Estava num lugar desconhecido, e, apesar de ter desmaiado, lembrava-se do ocorrido. Piscou os olhos e esfregou-os com o pulso direito. Sentou-se e passou a observar o quarto no qual repousava. Ao olhar através da janela, percebeu que a casa aonde estava hospedado situava-se numa zona comercial. Muitas luzes, pessoas, e mesmo com aquela chuva toda, a cidade não dormia. Pôs a mão sobre o vidro gelado, úmido. Aquilo era estranhamente bonito. Ele sorriu.

    Ouviu a porta bater ? alguém entrara no quarto.

    Haru teria planejado levantar-se antes que alguém entrasse ? afinal, queria ser ao menos apresentável para quem quer que tenha lhe salvado ?, porém isso não aconteceu. O belo rapaz fitava-o intensamente. Carregando uma grande caneca, dirigiu-se á cama onde Haru estava sentado e ofereceu, sentando também.

    - É chá. ? ele disse, inexpressivo.

    Haru estava chocado, não conseguia pronunciar uma palavra sequer. Estava na casa de Takahashi e ele estava lhe servindo chá.

    Depois de um curto período de tempo ? e silêncio ?, Haru tomou forças para se pronunciar.

    - Foi... você? ? ele disse, com sua voz trêmula e semblante impagável. Takahashi permaneceu em silêncio, mas deixava óbvio, de alguma forma, que havia sido ele. Talvez pelo seu olhar, que penetravam profundamente nos de Haru. Ele, constrangido, apertou o cobertor e abaixou a cabeça. Estava envergonhado e não tinha coragem nem de agradecer o rapaz, muito menos de aceitar o chá.

    Takahashi esticou-se para colocar a caneca no criado-mudo que ficava ao lado da cama, de forma que seu corpo aproximou-se ao de Haru, que corou.

    - Eu... hm... ? agora gaguejava ? ..obrigado... muito, muito obrigado... eu realmente não queria incomodar... mas aí...

    - Tudo bem. ? Takahashi respondeu antes que o menino pudesse terminar a explicação (que não era nem um pouco necessária nem interessante para o rapaz). ? Você dorme aqui esta noite.

    E ao terminar, levantou-se e se retirou do quarto. Antes de fechar a porta, olhou uma última vez para o menino que, sentado na cama, estava desconsertado. Escondeu um sorriso e dirigiu-se para a cozinha, aonde uma pilha de louças o esperava.

    Enquanto lavava as louças, sua mente divagava. Pairou suas mãos sobre uma panela qualquer, deixando-as molharem pela água incessante que corria da pia. Foi um dia e tanto.

    Uma mão quente e macia tomou a esponja do rapaz. Com um sorriso amigável (visivelmente disfarçando a dor que sentia), Haru pôs-se a lavar a louça. Não disse nada.

    Takahashi ficava olhando o menino, e por mais inexpressivo que fosse, mil pensamentos vinham-lhe à cabeça.

    -

    - Eu realmente não quero incomodar. ? Haru se curvou. ? Muito obrigado por tudo, ficarei devendo. Conte comigo para o que precisar.

    Ao levantar-se, a dor em sua perna o fez perder o equilíbrio e cambalear, e, quando olhou pra cima, percebeu o rosto de Takahashi bem próximo do seu. Ele sentia a respiração do rapaz. Haru corou.

    A mão pesada e gélida de Takahashi pousou sobre a bochecha direita do outro, acariciando-a. Haru, sem entender, apenas fitava os profundos olhos do rapaz, que retribuía-lhe o olhar. Aqueles olhos rubros diziam alguma coisa...

    O dedão de Takahashi acariciou a borboleta negra tatuada na bochecha de Haru.

    - O que é? ? sua voz grossa despertou o garoto do transe. Este, envergonhado, deu alguns passos pra trás e pôs as mãos sobre a bochecha que havia sido acariciada, escondendo a borboleta. Desviava o olhar e gaguejava:

    - Ah, isso... é marca de nascença.

    Takahashi tentou acreditar.

    Alguns segundos se passaram até que Haru, decidido, quebrou a mornidão dizendo em alto e bom tom:

    - MUITO BEEEEM, vou indo! Obrigado de novo e até amanhã!

    Blam! A porta fechou. Takahashi não escondeu a surpresa ao ouvir ?até amanhã?, afinal, o menino tinha acabado de apanhar na rua e, ainda sim, iria pro colégio no dia seguinte. Pelo vidro da porta, observava Haru andando rapidamente, ainda que cambaleando, pelas ruas não tão escuras, afinal, aquele bairro não dormia. Soltou uma breve risada e virou-se, andando em direção ao quarto.


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