|
Tempo estimado de leitura: 33 minutos
14 |
Nevava, o que era engraçado, porque nunca tinha nevado antes. Pelo menos, não por ali. Ela notara que alguns flocos eram alaranjados, e tinham formas gozadas. Dezembro era um ótimo mês, e a garota tinha quase certeza que nascera nele. ?? Pelo menos da primeira vez?? pensou alto, figuradamente falando, porque ela apenas murmurou. Quando falou, sentiu o ar, quase quente, sair de sua boca. Acontece que ela já sabia que estava muito, muito longe de casa. Quando acordou pela manhã, ao nascer do sol (sua hora favorita de acordar), viu que sua casa estava vazia. Não era bem uma casa, já que ela morava em uma linda caverna atrás da cachoeira (ficara linda porque fora decorada pela mesma menina com cobertores por ela tricotados, travesseiros por ela enchidos e pinturas de dedo por ela feitas), mas, geralmente havia sempre aquela senhora gentil, sentada na frente da ??entrada?? em uma velha cadeira de balanço.
Mas, ao acordar hoje mais cedo, não havia nenhum sinal da senhora. É certo que às vezes ela saía, mas, sempre deixava seu xale, em sinal de que voltaria. Dessa vez, apenas largara um papel de carta com ondas turquesa, onde em uma caligrafia bonita, escrevera:
Olhando o céu
Almejando o mar
O rosto inteiro a mergulhar
Olhando a lua
Como se sua
É uma noite muito bela
É uma noite estrelada
Na qual as flores cantam
Somente a madrugada.
Aquela menina pouco entendia sobre interpretação de poesia, mas, como nada lhe restara senão, sair da caverna, ela pegou os sapatos de fivela, que lhe ficavam um pouco folgados, calçou-os, e pôs-se para fora.
??O mundo é muito bonito?? ela pensara, ao pisar no chão, e andar até a saída da cachoeira. ?? Mas, também é muito frio ??. Saíra da água estando molhada desde os cabelos curtos e castanho-chocolate, ao vestido simples, o que não fazia dele feio, que vestia. Para sua surpresa, do lado de fora, havia um lindo espelho, de moldura azul dar cor do mar, com algumas nuvens retratadas. Molhada como estava, graças a cachoeira, se aproximou do vidro tremendo, e tocou-o com a mão direita. Foi nessa hora, que ela sentiu como se caísse, e ao abrir os olhos, viu os flocos alaranjados, juntamente com a neve. E é aí que começa nossa história, com ela muito, muito longe de casa. Não estava mais molhada, e o xale da senhora agora estava em seus ombros pequenos. Depois de alguns segundos, contemplando aquele lugar tão diferente, ela notou que a neve laranja caía em um lugar específico, formando um caminho até sabe-se onde. Meio agitada, meio confusa, tirou os sapatos (eles a atrapalhariam) e começou a correr na direção de cor anormal, sem nem notar que a água que antes lhe cobria já estava quase sumindo.
Corria tanto que já estava ofegante, mas, mesmo assim não queria parar. Os pés estavam gelados, mas, eles também não queriam parar. Os olhos batiam por todos os lados, contemplando aquela paisagem nova, cheia de montes de neve, às vezes de cores alternadas, como amarelo, azul ou verde, mas, ela estava maravilhada. Em certo momento, acabou por tropeçar em um galho de árvore, e imediatamente virou o rosto para a esquerda, para poder ver a planta dona do que a derrubara. O tronco era no mínimo gigante.
- Boa noite, minha criança. ? A velha árvore cumprimentou, piscando as pálpebras de madeira. ? Minhas sinceras desculpas por tê-la feito cair...
A menina, que antes se preparava para reclamar com o tronco, arregalou os olhos de surpresa, e fez uma reverência, tentando manter a classe, envergonhada.Um floco rosa caiu na ponta de seu nariz.
- Ora Jack, parece estar de bom humor hoje. ? O tronco disse, rindo com gosto enquanto uma brisa gelada passava.
??É muitíssimo estranho ver uma árvore rir?? Ela pensara, bocejado.
- Está cansada, criança? Por que não descansa um pouco? Pode se recostar em mim, se quiser. Aliais, - o tom de voz era gentil ? O meu nome é Antônio.
Antônio a árvore sorriu, e enquanto a menina se sentava encostada em seu tronco, ele perguntou devagar e curioso:
- E qual era mesmo o seu nome, querida?
A essa altura, ela estava tão sonolenta, e tão cansada, que apenas disse a primeira palavra que lhe veio à cabeça:
- Dezembro... ? disse, e ela logo estava dormindo.
Se um dia, você quiser falar com uma árvore, recomendo que tente nesse mês. Desde esse dia, todas as árvores adquiriram um gosto especial por Dezembro, a quem ainda pensam ser a nossa heroína (ela era uma?), até agora sem nome.
Folhas de vários tons de azul caíam por cima do xale da menina, ainda adormecida, cobrindo-a aos poucos. Depois de um tempo, ela mais parecia um monte de folhas esquecido. A única coisa que a diferenciava, é que em certo momento acabara deitando, e uma de suas mãos ainda era visível. Um rapaz de ar jovem passava apressado pela árvore: Tão apressado que não dera bom dia. Antônio era bom homem (homem?), mas, de todas as coisas que o irritavam, não dar um mero cumprimento era uma delas. Esticou uma de suas raízes até o pé do moço, e este, cego pelas preocupações, tropeçou desajeitadamente. Antônio murmurara um ??bom dia?? sombrio.
- Cuidado com essas raízes, Antônio. ? e sem dizer muito mais, foi andando.
Há muitas coisas que você não deve fazer com um tronco, e uma delas é não dar bom dia, mesmo depois de ele te fazer tropeçar em raízes. Lembre-se disso, se um dia for parar no mesmo lugar de ??Dezembro??.
- Nicolau, Volte aqui agora mesmo e me dê um galho bom dia! - Galho, se você não sabe, é uma ofensa muito, muito feia na língua das árvores, e pressentindo o perigo, o rapaz de nome Nicolau voltou imediatamente.
Com toda essa barulheira, é simplesmente impossível uma criança como aquela debaixo das folhas não acordar. Os primeiros sons viraram onomatopéias de seus sonhos, mas, os gritos eram demais: ela estava despertando, e se tem uma coisa que se iguala ao mau humor de fome, era ser acordada de maneira tão irritante.
- Para, para, para! ? Ela colocara a cabeça para fora do monte, colocando o xale sobre a cabeça, na sua violenta (era violenta?) demonstração de estresse. Nicolau arregalara os olhos, assim como Antônio, e satisfeita com o espanto causado, a menina deitara de novo, tentando ao máximo camuflar-se novamente.
- Que foi isso? ? o jovem comentou, ajeitando os óculos presos a sua cabeça. ? O senhor anda tendo mudas?
- Se estiver se referindo a ela... ? Antônio começou, mas, a menina levanta de vez.
Caminho até a frente de Nicolau, e com garra, atitude e talvez uma rebolada (mas só talvez), ela disse para o rapaz, em tom decisivo:
- Seus óculos são decididamente estranhos.
O jovem, que usava um paletó marrom, camisa branca com listras verticais um pouco mais escuras do que o branco, calça igualmente marrom e sapato social preto pareceu ligeiramente ofendido. Ele tinha cheiro de chocolate.
- Defina estranho.
- Diferente?
- Então não é estranho, é diferente. ? Nicolau a olhou bem de perto, e por fim, seus olhos castanhos se arregalaram, e ele a suspendeu no ar. ? Será que você...
- Que está fazendo, garoto?! Coloque-a no chão. ? Antônio disse, com leve alteração. ? Não é minha muda, mas, mesmo assim...
- O que é uma muda? ? a menina interrompera.
- Muda, minha querida, é de onde todas as garotinhas frágeis vem. ? uma voz feminina disse, embora a menina não soubesse onde.
- E as outras? De onde vem? ? ela perguntara, olhando em volta como podia agora, do chão.
- Vem de muitos, muitos lugares. Podem vir tanto da lama, quanto da neve. Tanto da lua, quanto do planeta-anão, que foi rejeitado pelos outros. Mas, é claro, elas são feitas como pequenas sementes, que na hora certa são implantadas nas barrigas de suas mães. Mas, você sabe, que não foi assim com você, não sabe?
Nessa hora, o peito dela doeu. Doeu como se sentisse toda a rejeição que alguém podia sentir, de uma vez só. Mas, espere... Ela havia sentido. Não ali, não naquele momento, mas, anteriormente... Em outra... Vida? Em momentos como esse, quando você precisa apertar o lábio e piscar para ser forte, nada lhe resta senão, sair de cena. Mas, é preciso saber como sair. Não pode simplesmente correr: é preciso ter classe. A velha senhora da caverna a ensinara a encontrar sua própria maneira de sair de cena, e essa era a dela: Bateu palmas barulhentas três vezes, e logo em seguida, tirou o chapéu imaginário da cabeça, balançou-o, e virando-se de costas, disse, antes de correr para longe, consultando seu inesperado relógio de bolso:
- Ah, vou perder o trem. ? e correu.
Se a voz, a árvore e o rapaz com cheiro de chocolate não estivessem tão atônitos, teriam batido palmas. Mas, Nicolau foi atrás dela, como um fan que sobe no palco, em busca da estrela principal daquela noite. O que eles ainda não sabiam (ou pelo menos Antônio não sabia, mas, é falta de educação dizer que só uma pessoa não sabe, por isso vamos lhe fazer essa gentileza), era que ela não era só uma estrela. De estrelas existem várias, desde pontinhos brilhantes sem muito significados, a constelações enormes, que até de guias serviam. Pensar em guias turísticos faz todo mundo se sentir melhor.
Quando finalmente parou de correr, Nicolau a ergueu por trás, e esta se debateu.
- Ah, Nico, me deixa, me deixa! ? ela batia pernas, e agitava tanto os cabelos de Nicolau, que eram castanho escuro, aos dela, castanho claro.
- Ei, ei, mas, por que esse estresse? Você não é um sonho ou uma muda, é? ? Nicolau questionara, virando-a para frente dele, e apoiando-a nos braços, para que a mesma pudesse encará-lo.
- ...! ? Ela podia ter sorrido, e dito que não era nada disso, muitíssimo obrigado, mas, logo, lembrou que não sabia. Simplesmente vivera na caverna, desde que... Aliais, desde quando estava ali mesmo? Ela não era um sonho, não podia ser um! ? Não. Eu não sou, muidíssimo obirigado. ? fizera a melhor cara que conseguira, mas, nem que estivesse com a melhor gravata (gravatas deixam todo mundo mais respeitável), nada faria aquelas últimas palavras mal-ditas soarem melhor.
Acontece, que sentir tanta coisa assim ao mesmo tempo, dá um sono incrível, e ela dormiu, sem muita cerimônia, com a cabeça no ombro de Nico.