Autômato - Bricolagem

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    14
    Capítulos:

    Capítulo 1

    Autômato

    Mutilação, Violência

    Memórias:

    As minhas memórias me acompanham, e me dizem o que sinto... Queria ser às vezes justamente o que aqueles sentidos me remetem. A bengala do meu patrão coxo e idiota, O crucifixo de meu irmão choroso ao leito de meu pai, A gravata vermelha que o garçom usa quando me serve na noite e... Sim... Os sapatos dela... Queria ser os saltos-altos da moça que toda manhã atravessa o meu caminho, quando estou a ir para o trabalho e me perco em seu olhar...

    Vigília:

    ...Ah... A insônia... Por que ela de novo? Será que não me cansei o suficiente durante o dia? Não, com certeza a resposta é simples, há algo que não pude fazer e que deveria... Não me resta mais tempo... Só tenho pesadelos... As noticias me afligem cada vez mais e mesmo a minha boca é amarga a mim... Nem eu mesmo poderia beijá-la... Só tenho a mim, e mesmo assim... Eu me odeio.

    Nascimento:

    Já me acostumei com os meus terríveis pesadelos, eles já me parecem menos tortuosos que minha vida. Não preciso nem acordar, sou mais feliz aqui... Com meus pesadelos massacrantes, atemorizantes e anômalos... Já posso ser mais feliz dormindo que vivo.

    Cotidiano:

    ...A...vi..da..nã.....o.....tem...ma..i..s........gr....a.....ça.......s.ó.........ten...h....o......que.....fa...z..e..r.......a......s.........c.....o...i...s.a....s..s......e...m.....s.e..ntido algum nem parece que estou vivo.

    Axioma:

    ?No ano de 2000, a 20 de novembro, às oito horas da noite, em conseqüência da predileção que tem pelas partidas de mau gosto, e ainda para completar a soma de diversas épocas, a Natureza fez-me nascer com uma pincelada objetiva. A despeito da importância desse fato, não conservo dele nenhuma recordação pessoal; mas minha avó disse-me que logo que me foi conferido espírito humano soltei um grito. Quero crer que foi um grito de indignação e protesto.?1

    O meu caminho diário é angustiante e pode até se dizer que um calvário. Será que quando aquele homem, que supostamente morreu para nos salvar, se apregoou naquela dita bendita cruz ele livrou-nos não só da casa dos mortos, mas também a transportou ao nosso cotidiano?

    Não sei, mas o que pensar... ?Sou um doente, assim como toda minha classe de ser humano à míngua, vivo maquinalmente, me submeto à força das coisas que criaram para mim. Detesto-me; e nunca me pergunto por que vivo e quem tem necessidade da minha existência. Não vivo a não ser por medo da morte...?2

    Todos os dias da minha vida. Observo os rostos misteriosos sem que estes me notem, no caminho do trabalho, as faces místicas das pessoas me adentram o cérebro e se apagam. Alguns rostos fazem o tempo passar mais devagar como da mulher de olhos sérios que procurou as janelas da minha alma.

    Pareceu-me que a vida passou mais devagar, as cores tornaram-se mais pálidas em torno de seu movimento, a cada passo seu... Sentia meu pulso... Era como se eu o escutasse, os sentidos pareciam ter se aguçado e, seu perfume me envolveu, quando sua silhueta passou por minhas vistas o tempo voltou a correr.

    Minha mente tornou-se uma gigantesca rodovia, meus pensamentos eram como carros que corriam violentamente para todas as direções sem que a vista pudesse acompanhar e quando me decidia por seguir algum ele se chocava com outro e misturava-se com milhares de outros restando apenas milhões de ferros retorcidos.

    Este tipo de quimera me criava e me destruía todos os dias.

    Liberta-te:

    Sim, depois de tudo eu volto, depois da suposta alegria no fim da tarde, eu volto a minha cova de pesadelos agradáveis, depois de notar aquele homem que servia a nós com alegria e de nos transmiti-la com seus olhos afáveis, sorriso largo e o uniforme do dever.

    Talvez, esse ser que me transmita alegria e vivacidade pense a mesma coisa que penso ao ver os rostos vazios das mesas ao redor... Sem expressão, procurando um ungüento para o dia, um paliativo às suas dores... Um afago na prisão... E ele de sorriso infalível no rosto nos doa a panacéia que precisamos.

    No entanto, eu volto para este lugar tão doce e desagradável, na verdade quantas vezes ?mergulho no sono com a esperança de nunca mais despertar; e, pela manhã, quando arregalo os olhos e torno a ver o sol, sinto-me profundamente infeliz. Ah! Se eu pudesse... Entregar-me ao tempo, a isto ou aquilo, ao insucesso de uma iniciativa qualquer, ao menos o fardo dos meus aborrecimentos não pesaria tanto... Sou um desgraçado! Sou o único culpado... É em mim que está a fonte de todos os meus males, como outrora... de toda felicidade.?3

    Vai! Liberta-te ser noturno que mora dentro das mais profundas das minhas entranhas... Tu que podes voar... Tu que podes viver, mesmo enquanto durmo.

    Florescer:

    Como as flores ligeiras das cerejeiras o desejo vem e parece durar tanto... Doce ilusão que amarga o final, quando tu cais e deixas as árvores secas sem teu róseo e alvo toque... Parece até que meu próprio irmão entre as lágrimas que ainda jorram da perda imatura de meu pai me estaca cruzes dentro do peito.

    ?O ser dentro de mim que consegue manter-se dentro dessa apaixonada linha, entre o sonho e a realidade me desmonta a pele...?4 Queria eu ser mais como ele e dançar entre as cruzes que meu irmão instalou... Queria eu ser este pássaro que alça vôo noturno e destrói todas as barreiras que o tentam impedir... Queria eu ser esse dono da noite.

    Demência:

    Miserável! Um homem miserável é o que ele pode ser... Ah! O desgraçado me força e eu tenho de ceder... Possuidor do poder que garante que outros suem por ele para que possam viver... Miserável! Criatura abominável! Poderia eu ir de encontro a isto?

    É... Parece que não... A luta é infrutífera... A vida... É feita... Talvez... Por outrem... Talvez seja mesmo assim. Este homem que nos domina. Esse é com certeza a pior chaga que o dito criador nos deixou... ?Fator universal do transformismo. Filho da teleológica matéria, Na superabundância ou na miséria, Verme - é o seu nome obscuro de batismo. Jamais emprega o acérrimo exorcismo Em sua diária ocupação funérea, E vive em contubérnio com a bactéria, Livre das roupas do antropomorfismo. Almoça a podridão das drupas agras, Janta hidrôpicos, rói vísceras magras e dos defuntos novos incha a mão... Ah! Para ele é que a carne podre fica, E no inventário da matéria rica cabe aos seus filhos a maior porção!?5

    Somos todos lama para um porco chafurdar... Só adianta nos resignarmos e esperar pela morte... Nós que tanto a tememos.

    Persona:

    Já não sou mais nenhum destes que já fui... Eu... Não sei mais... Se... Sou...

    Já não mostro mais os dentes a este aleijado burro.

    Já não sou mais as lágrimas por este nobre irmão.

    Já não sou mais os sorrisos deste amigo salvador.

    Já não sou mais o amor no olhar desta dama incógnita.

    Sou apenas esta face vazia... Que também haverá de se perder... Se rachar e desaparecer.

    Eu:

    Os desejos lutam por me salvar, mas não adianta... eu já estou meio morto. Os vermes imateriais já me corroem. Minha efígie mental é um cadáver cheio de minhocas. Minhas memórias estão morrendo. Sendo destruídas... e em breve ser que carrega meus desejos eu te destruirei.

    Flagelo:

    ...............................Morte..................................................................................................................Humano.............................................................................................................................................Vida........................................................................................................................................................Ex.............................................................................................................Humano............................................................................................................ . . .. .. ... ... .. .. . .

    Inépcia:

    "Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir.

    A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir.

    Por me deixar respirar por me deixar existir, Deus lhe pague.

    Pelo prazer de chorar e pelo estamos aí.

    Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir.

    Um crime pra comentar e um samba pra distrair, Deus lhe pague.

    Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui.

    O amor mau feito depressa, fazer a barba e partir.

    Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi, Deus lhe pague.

    Pela cachaça de graça que agente tem que engolir.

    Pela fumaça e a desgraça que agente tem que tossir.

    Pelos andaimes pingentes que agente tem que cair, Deus lhe pague.

    Por mais um dia e a agonia pra suportar e assistir.

    Pelo rangido dos dentes pela cidade a zunir.

    E pelo grito demente que nos ajuda a fugir, Deus lhe pague.

    Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir.

    E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir.

    E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir, Deus lhe pague."6

    1 - Fragmento das Memórias de Máximo Gorki.

    2 - Adaptação de trecho de "Vassa Geloznova" de Máximo Gorki.

    3 - Fragmento de "Os sofrimentos do jovem Werther" de Johann Wolfgang von Goethe.

    4 - Baseado do poema "Desejo-Tortura" de Guilherme Ramos.

    5 - Poema "Deus Verme" de Augusto dos Anjos.

    6 - Letra da música "Deus lhe pague" de Francisco Buarque de Hollanda.


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