Liandan

  • Finalizada
  • Kiia
  • Capitulos 12
  • Gêneros Ação

Tempo estimado de leitura: 4 horas

    16
    Capítulos:

    Capítulo 8

    Aposta VII

    Álcool, Drogas, Linguagem Imprópria, Mutilação, Nudez, Violência

    Thrud, a valquíria mais violenta adentrava as presas o grande salão do castelo principal. O mundo estava mergulhado no mais completo caos, e não conseguia entender o por quê disso. Após a morte de seu pai, deus do trovão, a mulher recebera a honra de comandar mais da metade das valquírias restantes. O Ragnarok havia sido severo tanto para os filhos de Odin, quanto para as crias de Loki. Mesmo Hel, aquela que sempre fora considerada neutra, ganhara sua parcela de trabalho ao receber inúmeras almas para sua coleção.

    Quando tudo teve fim, há dezoito anos, Thrud, pela primeira vez sentiu medo, nunca enfrentara inimigos tão poderosos, jamais pensou que sobreviveria a tal sangrenta batalha, mas por fim escapou da morte. A ideia de uma vida pacata lhe entediava, tinha o temperamento forte como o pai, talvez até mais. Por isso, sabia que seu corpo inteiro vibrava pela emoção de uma nova batalha tão alucinante como a dos anos anteriores. No seu intimo esperava ansiosa por um novo Ragnarok. Quando mais nova, Thrud era inconsequente, jamais acatava ordens, sempre achando graça em todos aqueles que julgava serem inferiores, mas após a morte de Sif e Thor, a Valquíria sentiu-se culpada. Talvez se estivesse ao lado dos pais naquele momento, poderia ter ajudado. Concluiu portanto, que a melhor maneira de se redimir seria apoiar o reinado dos irmãos, obedecendo as ordens que lhe eram impostas ainda que não gostasse disso.

    - Relatório meus senhores. – ajoelhando-se, já vestida com a armadura de guerra, a valquíria preparou-se para reportar os preparativos do combate aos meios-irmãos.

    - Prossiga. – Pediu Magni. Os olhos eram fixos em seu reino. Não parecia ter sequer notado a presença da jovem.

    O deus, cujo nome significa força encarava de forma indecifrável a paisagem que se estendia até Bifrost. Estava naquela sacada há horas, pensava Modi. Talvez meditando sobre estratégias de guerra, concluiu.

    - Loki finalmente mostrou-se a nós. Está em Midgard, e ao que indica Heimdall também se encontra em mesmo reino. Nossas tropas estão prontas. Não sabemos ainda como Heimdall voltou ou de que lado está nesta guerra, mas observando o fato de que jamais gostou de Loki, creio que estará ao nosso lado. – a cabeça baixa, corpo curvado em sinal de respeito assim como a voz.

    - Sim. Heimdall sempre foi fiel a Odin, lutou a seu favor até o último instante. Foi uma perda lamentável. – concordou Modi acariciando a barba por fazer. – Jamais encontramos guardião mais honrado para Bifrost. Até mesmo reconstruir a ponte levou mais tempo do que o esperado.

    - De fato. – Magni permitiu-se fitar finalmente a meia-irmã, mas os olhos ficaram sobre o corpo feminino por pouco tempo. – Desta vez as Nornas estavam certas. Alertaram-nos, e assim nos preparamos como foi feito para o Ragnarok. Agora é a nossa vez de liderar esta guerra. Vamos irmão, Vidar, nosso tio está a nossa espera no piso inferior do castelo. Valquíria, parta com suas guerreiras. Em breve nos encontraremos para comemorar nossa vitória.

    - Os planos de ataques já foram revisados, mas não confie somente nisto. Loki é traiçoeiro, não segue regras, faz qualquer coisa para alcançar seus objetos. – reforçou Modi. Os olhos estreitos estavam desconfiados, tinha algo para dizer antes de partir, mas preferiu esperar pela saída de Thrud, quando esta ocorreu, chamou pelo irmão, que já vestido com sua armadura, para que se preparasse para seguir rumo à guerra.

    - Magni, antes de partirmos, ouça-me. Estamos nos precipitando. Temo que desta vez Hel não esteja neutra como antes, e mesmo que esteja desta vez é diferente, sinto isso. – Apressou-se a dizer, seu irmão era tão impulsivo quanto o próprio deus do trovão. – Nem mesmo as Nornas conseguem nos aconselhar perante o futuro que estar por vir, é tudo tão incerto. Olhe para a humanidade! Eles simplesmente começaram a se destruir de uma hora para outra, como animais confusos fugindo do perigo!

    Magni, apenas ouvia calado. Não era idiota como presumia o mais novo, era obvio que já havia percebido o que ocorria. Mais do ninguém temia, temia não conseguir honrar seu pai, sua mãe e o pai de todos, Odin. Bravos seres que se sacrificaram no campo de batalha. Estava aflito, mais do que no primeiro Ragnarok. Não, aquele não era o Ragnarok, as Nornas o chamavam de Liandan, e por alguma razão, elas pareciam apavoradas perante o nome. Quando foram consultadas pela última vez, pareciam agitadas, nervosas, e por fim, apenas murmuravam coisas sem sentido. E agora, os humanos destruíam uns aos outros sem nenhum motivo aparente. O caos reinava absoluto, e Magni sentia seus ombros pesarem. Pediu mentalmente a ajuda de Odin, e com um pesado suspiro, ignorou Modi seguindo assim para o local de encontro com o tio.

    - Escute-me imbecil. – brandiu o mais novo, mas já era tarde. Magni havia partido. Não podia deixar seu irmão sozinho, não agora. Somente juntos poderiam utilizar Mjolnir, o martelo que Thor lhes deixara de herança. Sendo este, talvez a única salvação da humanidade.

    ...

    Naquele momento Ulric pensou em desistir. Talvez estivesse cometendo um grande erro, talvez tudo aquilo não valesse a pena. E a cada passo que dava tornava-se mais convicto disso, era como se fosse perdendo a vontade de sequer existir, como se aceitasse tudo que estava acontecendo como algo inevitável. À medida que avançava, o frio se tornava insuportável, sentia dor ao se mover. Os ossos do corpo não suportavam a temperatura. Era como se tudo contribuísse para ele desistir, encolher-se e dormir, abraçar o vento cortante que ali existia, mas não podia desistir, retrucava mentalmente toda vez que lhe surgia àquela ideia absurda de jogar tudo para o alto, mas devia admitir que estava se tornando algo mais difícil.

    Talvez se Loki ainda estive protegendo-o como fizera no Canadá de outro mundo, talvez não fraquejasse tanto naquele momento, afinal não se recordava de sentir absurdo frio, tanto era verdade que não morrera congelado apesar das roupas inapropriadas que usava no dia. Como desejou ter o poder para aquecer-se. Com certeza se Loki ainda estivesse preso em seu mundo mental, poderia executar magias, mesmo sem a permissão deste, seriam magias básicas, mas ao menos conseguiria manter-se vivo.

    Estranhamente, apesar de tudo, a morte não chegava a Ulric, apenas o cansaço e a dor. Perguntava-se então se a morte seria mais acolhedora com ele, mas era uma pergunta muito idiota a se fazer, portanto apenas seguia em frente arrastando as pernas túnel a baixo.

    Por fim, o cenário começou a mudar. Durante o percurso, apenas via terra e predas congelada. Conforme a temperatura diminuía, neve surgia e uma estranha ventania vinha junto, mas agora, Ulric deparava-se com um imenso campanário de crânios, uma das possíveis regiões de Helgardh, a Casa das Névoas e também morada de Hel. Estalactites eram vistas no que seria o teto, e uma forte névoa tomava a entrada do vasto salão, dificultando assim a visão. Estranhamente, a forte brisa não existia ali, apenas o frio continuava a machuca-lo. Era tão estranho ainda estar vivo... Talvez fosse impossível morrer em um reino da morte.

    Era difícil respirar, e até mesmo enxergar o que estava à frente. Mas que diabos de lugar! Perguntava-se como Hel conseguia viver em tão terrível local, será que Loki pensava nisso também? Afinal, a deusa era sua filha, mas Ulric duvidava que o deus do fogo preocupava-se com isso.

    Mesmo sem ver o caminho que trilhava, seguiu em frente, chutando vez ou outra um crânio. Felizmente, sua audição ainda funcionava com precisão, e logo escutou um ruído estridente, como o latido de um cão. O som fez Ulric estremecer. Parecia uma lâmina afiada. Começava a pensar que o frio não era nada comparado a aquele som.

    - Quem ousa invadir a Casa das Névoas? – após um minuto de silêncio, outro latido veio acompanhado da pergunta. A voz era tão forte que fez as estalactites despencarem chão a baixo. Ulric apressou-se a cobrir-se com o casaco que usava enquanto se encolhia, mas no final, nenhum caiu sobre seu corpo. – Responda, humano! – rosnou novamente.

    Estava dormente, não conseguia mexer o corpo, parecia bem mais confortável permanecer naquela posição, apenas tremia de frio, os dentes batiam fortemente. Porém precisava responder, tinha sensação de que se não fizesse rápido, o animal não continuaria ser tão paciente quanto estava sendo.

    - Sou Ulric Knox, Loki me enviou aqui para falar com sua filha, Hel, senhora de Helgardh. – com a voz trémula, por fim conseguiu proferir algo.

    Mais estalactites caíram. Dessa vez duas, ou três despencaram sobre Ulric machucando um pouco suas costas. O cachorro gargalhava perante a resposta.

    - Qual a graça? – indagou mais para si do que para o bicho que se aproximava a passos rápidos e pesados.

    - Loki não é bem vindo aqui. – retrucou o gigante. – Mandou você aqui, pequeno, apenas para a morte.

    Agora era possível ver o rosto do animal. Era negro como a escuridão, mas estranhamente as pontas do pelo eram prateadas. Os olhos brancos como as patas. E uma aura assassina que fazia qualquer um ter medo. No pescoço do cachorro de aparência selvagem, havia uma grande coleira de metal com espinhos de ferro. A cauda parecia se dividir em duas, e os grandes olhos pareciam sorrir ao prever o futuro de Ulric.

    - Garm. – murmurou o pequeno humano enquanto levantava-se com dificuldade. A presença do cão parecia ser a causa de todo o frio, como se ele estivesse frente à fonte. Mas Loki havia lhe dito como vencer o guardião de Helgardh.

    Garm era o guardião da entrada de Helgardh, no Ragnarok havia enfrentado Tyr, aquele que Fenrir arrancara o braço após ser traído pelos deuses.

    O cão novamente riu, mas não houve queda de gelo desta vez.

    - O gigante de gelo lhe disse até mesmo quem sou? Mas isso não importa. Se sabe realmente quem sou, sabe bem o que tem que fazer para passar por mim.

    O cão preparou-se para avançar com o focinho, os dentes afiados saltavam da boca em direção a Ulric. Já de pé, ele esperava pelo momento certo. Temia que seu corpo não o obedecesse na hora correta, mas continuou a esperar. Quando foi o momento certo, agarrou-se nos pelos de Garm, que ergueu a cabeça impaciente. O pelo parecia queimar lhe a mão de tão gelado que era, mas escalou o mais rápido que pode, até os olhos do animal, onde com uma faca, perfurou o orbe esquerdo do pobre gigante que berrou de dor. Enquanto movia-se, o cachorro tentava de todas as formas se livrar do fedelho humano, mas a determinação de Ulric parecia ter despertado, afinal ele não queria cair, não queria perder, mas Garm também não.

    O cão em meio a sua agonia, começou a sacudir-se, era impossível permanecer agarrado aos pelos de Garm, e assim o garoto foi ao chão. Usando um rolamento, conseguiu cair sem se machucar, tentou correr para não ser pisoteado, passou por baixo, e desta vez pulou para se segurar na calda do canino. O cão parecia muito preocupado com a dor que sentia, afinal, o olho expelia sangue como em um rio.

    - Humano idiota! – grunhiu angustiado. – volte aqui!

    A fraqueza de Garm era seu péssimo tato e olfato devido ao frio causado em parte, por ele próprio. Sua visão e força poderiam ser suas qualidades, mas Ulric iria acabar com os olhos do cão de gelo.

    - Não precisa ser assim! – gritou o Knox em resposta. – Apenas me leve até Hel!

    Houve outro rugido, e por fim Ulric caiu da calda do animal. Suas mãos ardiam, não havia sido rápido o suficiente dessa vez, mas o cão sim, e antes que o humano pudesse fazer algo, Garm lhe deu um coice para longe, onde Ulric bateu as costas com toda a força possível em rochedos, caindo assim desacordado.

    O cão caminhou, então, até onde o garoto repousava com diversos ossos do corpo quebrados. Garm, com o olho ferido ficou encarando Ulric, rosnava de ódio por ter perdido um dos olhos. Pensou em devorá-lo, mas por mais que não quisesse admitir, o Knox havia lhe vencido. Demonstrara coragem o suficiente para ataca-lo, sendo essa uma das qualidades que mais apreciava na raça humana. Talvez, se não tivesse desacordado o jovem, ele teria lhe roubado o outro olho. Contrariado, o gigante pegou o humano pelos dentes e levou-o até seu destino.

    ...

    No fundo, Heimdall não queria nada daquilo, mas era algo que não podia lutar contra, era seu destino assim como o de Loki. Haviam sido criados para serem opostos predestinados a batalha. Desde que o gigante de gelo surgira no clã Aesir e suas travessuras, a princípio inocentes, tiveram inicio, os deuses bem sabiam da intriga entre os dois. Mesmo assim, Odin permitia a moradia do senhor do fogo junto com os demais.

    Em pleno campo de batalha, Heimdall assistia a aproximação dos soldados dos novos governantes de Asgard. Os gigantes de gelo, por sua vez, já se encontravam alinhados do lado oposto, apenas aguardavam a chegada de seu mestre. Eram criaturas monstruosas, que por onde caminhavam traziam o frio consigo. Alguns animais, como lobos uivavam de ansiedade ao lado dos monstros de Loki.

    - Parece que estou fadado à repetição. – comentou rodopiando a espada em mãos. – Fadado a apenas observar, mas cansei. Desta vez mato Loki primeiro. Aquela vadia... – lembrando-se de como sobrevivera, Heimdall sorriu divertindo-se. Havia ganhado uma nova oportunidade, e desta vez não iria falhar. – Ela pensou em tudo mesmo, não é? – gargalhou antes de soprar a corneta do Ragnarok... Ragnarok? Não... Aquilo não era nada. – E assim o verdadeiro fim do mundo se inicia. Que Liandan espalhe seu caos neste fatídico dia.

    ...

    Aos poucos Ulric abriu seus olhos. O corpo todo doía, não conseguia mexer-se, e por fim conclui que seus ossos estavam quebrados tamanha a dor que sentia. Mas apesar disto, perguntava-se como ainda estava vivo, Garm havia lhe poupado afinal?

    - Seja bem vindo, Ulric Knox.

    Uma voz fantasmagórica ecoou ao que pareceu ser na mente do rapaz. Mas logo observou que apenas estava com dor de cabeça. Os olhos azuis procuraram o responsável pelo cumprimento. Deparou-se com uma mulher de bela aparência nua. Ela banhava-se em algo semelhante a uma piscina redonda pequena. A visão de Ulric estava embaçada, não conseguia enxergar completamente o corpo feminino, mas algo chamou sua atenção. Quando esta se ergueu, a fim de dirigir-se a ele, notou como metade do corpo era deformado. Talvez morto, fosse à palavra que melhor se encaixasse.

    - Parece que Garm foi um pouco severo. – a voz ecoou novamente. – Mas não se preocupe, cuidarei disto.

    Uma fumaça arroxeada circundou o corpo da mulher que com as mãos, conduziu esta até a boca de Ulric. Ao engolir a fumaça, ele sentiu como se algo queimasse dentro de si, como se finalmente conseguisse sentir o próprio corpo além da dor.

    - Melhor? – ela sorriu, mas não um sorriso amigável.

    Houve um ataque de tose por parte do Knox, e seus olhos por fim se focaram na figura a sua frente. A mulher continuava nua, um lado era incrivelmente belo com seus cabelos ruivos e olhos claros, cada centímetro parecia perfeito. Mas ao visualizar o outro, apenas deparava-se com um corpo em decomposição de aparência pútrida, algumas regiões encontravam-se apenas com o esqueleto a mostra. O cheiro de morte que exalava era quase insuportável. Ulric buscou não ofender a mulher com gestos, apenas desviou o olhar enquanto levantava-se. Já de pé, reparou o quanto era alta, deveria ter mais de dois metros de altura, pensou.

    - Hel, a senhora de Helgardh.

    Dessa vez não houve comentário por parte da jovem. Ela apenas caminhou reto, em direção ao seu treino. Ao sentar-se, cruzou as pernas e um manto negro se formou cobrindo completamente seu corpo, o capuz encarregava-se do rosto.

    - Você me surpreende, Ulric Knox. - A mão esquelética estendeu-se para agarrar uma taça de vinho que se formou no braço do trono. – Sua existência simplesmente me intriga.

    Os olhos de Hela pareciam fixos no líquido que se agitava em sua peculiar taça com formato de esqueletos humanos. Parecia difícil saber o que se passava na mente da deusa. Ela ergueu então o olhar e analisou Ulric por um momento. Não parecia ser um garoto diferente, arrogante talvez, mas aparentemente normal. Por fim ela franziu as sobrancelhas.

    - Diga-me. O que exatamente pretende fazer aqui? – a voz continuava ecoando, e então Ulric percebeu que não era coisa de sua cabeça, aquilo demonstrava o quão poderosa a deusa era em seu território.

    Ulric sorriu. Sentia como se houvesse vivenciado aquilo, e talvez já houvesse. Com uma voz tranquila, e o melhor sorriso sarcástico que conseguiu fazer, indagou à senhora dos mortos com toda a convicção possível.

    - Gosta de apostas?

    ...

    Do alto de um dos muitos prédios de Sapporo, Skoll observava o caos que se instalara no mundo humano. Quando tudo teve inicio, a pedido de Hel, ele e Hati permaneceram em Verdandi. Assistiram por fim a morte de Kishibi, não da forma como esperavam, mas sim como assassinos. De certa forma, se Midgard encontrava-se naquele estado, a culpa era deles.

    - Achei ele. – Hati finalmente estava de volta. Não fazia muito tempo que havia partido em busca do irmão do meio, Managarm. – Pensei que estivesse morto, ou algo assim, mas estava apenas dormindo! – reclamou massageando as têmporas.

    Logo atrás, foi possível observar o despreocupado Managarm aproximando-se. Apesar de alguns machucados pelo corpo, parecia calmo. Mitsuki Chi repousava em seus braços, ela sim parecia ferida ao ponto de não estar consciente.

    - Estava cansado... – murmurou o lobo para si mesmo. – O que houve com tudo?

    Skoll coçou a bochecha, não era algo difícil de ser explicado, ou mesmo compreendido julgando a condição de existência dos irmãos, mas não se sentia orgulhoso pelas mortes que causara pela primeira vez em sua vida. Os olhos pousaram então em uma simples espada de madeira, o bastão de Kendo de Ulric. Desde que o rapaz fora até o Canadá, Skoll guardara o instrumento de luta, mas nunca se recordava de devolver. Talvez fosse porque não era a hora ainda, porém, observando tudo o que acontecia, e sabendo o que realmente aquela espada era, sabia que deveria entrega-la a Loki o mais rápido possível.

    - Kishibi está morta. – apresou-se Hati dando de ombros. Não era algo que lhe importava. – Hel nos pediu para eliminarmos o vilarejo de Miyage, e bem... Parece que esse é o resultado.

    - Não sei bem como a morte daquela kitsune pode ter afetado Midgard, mas a questão é que agora não resta mais tempo. Nosso lugar não é mais este. – suspirou cansado. Sua vestimenta ainda encontrava-se banhado com o sangue de inocentes. O indelicado irmão caçula parecia não se importar, tratava tudo com indiferença, mas no fundo Skoll sabia que Hati questionava a si mesmo se o que fizera era o certo.

    - Nosso lugar nunca foi este, idiota. – retrucou o mais novo. O olhar fixo no que antes já fora um dos locais mais importantes para aquele país.

    Ao longe, o som da trombeta de Heimdall rachou os céus. Os poucos humanos vivos agonizaram de dor, sangue escorria por seus ouvidos, onde por fim destroçava seus cérebros. Não havia saída, a corneta anunciava o fim.

    ...

    Um sorriso sinistro surgia aos poucos nos lábios mortos da deusa.

    - E o que teria para me oferecer caso vencesse, pequeno?

    - Não é algo obvio? Minha alma, claro. – os olhos ainda demonstravam certeza em sua vitória.

    A senhora dos mortos posse de pé, a taça de vinho já se encontrava vazia, sendo jogada assim para o chão, mas antes que esta atingisse o solo de ossos, ela se desfez como em um passe de mágica.

    - Diga-me, Ulric Knox. O que sabe sobre a imortalidade? O que sabe a respeito da morte? E o tempo, então? – enquanto falava, desfilava pelo vasto aposento de seu palácio. – Nada, presumo.

    A Ulric não interessava aquele assunto, o que aquilo tinha haver com a proposta que ele a fizera? Hel não era uma colecionadora como lhe dissera Loki? Pensava que jamais recusaria uma oferta como aquela.

    - Aonde quer chegar com isto, Senhora de Helgardh? Não vim até aqui para discutir assuntos banais! – os olhos agora faiscavam de raiva. Não sentia mais as dores de antes, ou mesmo o frio intenso. Sentia-se tão bem, que talvez até pudesse confrontar a dona da casa das névoas. – Aceita ou não minha proposta?!

    - Impaciente... – ela sorriu novamente. Era difícil tentar adivinhar o que se passava na mente da deusa. Seu rosto parecia tão enigmático, assim como o manto que a escondia. – Não costuma ser a melhor das qualidades para uma pessoa. – completou. – Quando se encontrou com os lobos do Ragnarok pela primeira vez, o que eles lhe disseram? – a voz soava calma, confiante, bem ao contrário da de Ulric que agora adquiria um ar de desconfiança.

    - O que is-

    - Apenas responda. – não era um pedido.

    O rapaz calou-se por um momento, tentava recordar o que havia sido dito, mas não lembrasse muito além da raiva que sentia daqueles malditos. Desde daquele dia não recuperara seu bastão de bokken, talvez algum membro da Chi o Koete houvesse encontrado.

    - Algo sobre... Dimensões paralelas, talvez. – Uma das sobrancelhas encontrava-se arqueada.

    - A existência de tais lugares é algo bastante questionável para aqueles que você chama de cientistas. Mas nós, conhecedores do tempo, sabemos bem a verdade. – Houve uma pausa. Um som estridente soava pelo ambiente, algo quase que ensurdecedor. Hel não parecia afetada, mas Ulric podia jurar que seus ouvidos sangraram naquele momento. Quando este foi extinto, o Knox com dificuldades recuperou a postura, a cabeça ainda doía.

    - Que som é este? – balbuciou, mas ela o ignorou.

    - A viagem ao Canadá foi algo proveitoso? Suponho que não. Mas aquele não é o único mundo paralelo ao seu que existe, Ulric. Há tantos que nem mesmo eu tenho conhecimento. Como dito por Skoll, talvez exista um ou outro, onde sua falecida mãe não me faça companhia. – um sorriso irônico foi percebido nos lábios de Hel – Mesmo Midgard e Asgard, são dimensões paralelas, porém próximas. Os nove reinos de Helgardh não passam de outras dimensões, assim como os outros noves.

    - Onde está querendo chegar com tudo isso, maldita! – berrou irritado. Aquela conversa não o estava agradando, já havia compreendido o que ela queria lhe dizer, mas uma parte de si, não aceitava, não acreditava.

    - Ainda não percebeu, querido? Você não existe neste mundo. Não a nada que você possa me oferecer em troca de outra existência.

    Durante alguns segundos, não houve resposta, ou mesmo som. Ulric apenas olhava fixamente para a face coberta de Hel. Não acreditava no que saia da boca das entidades em sua grande maioria, sabia que muitos gostavam de brincar, e talvez Hela estivesse fazendo a mesma coisa, mas então porque sentia que havia um fundo de verdade no que ela dizia mesmo com uma parte discordando?

    - Não acredita em mim? – ela levou a mão ao peito, como se sentisse ofendida, mas por fim sorriu. – É perfeitamente compreensivo. Mas observe, não faço nada de graça. Tudo possui um preço, e você foi o preço pago pela reencarnação de Loki. No entanto... Sua existência me intriga. – houve uma pausa onde o rapaz observou que a face de Hela endureceu. – Essa é a primeira vez que isso me acontece. Já me encontrei com você muitas vezes, Ulric... – outra pausa, onde ela retirou seu capuz. A face monstruosa o analisava curiosa.

    - Como assim...? – Balbuciou.

    Houve um suspiro de desapontamento por parte da deusa.

    - Ainda não compreendeu? Verdandi não lhe ensinou nada, ou mesmo não prestou atenção no que Skoll lhe disse. Por que pensa que existem tantos deuses em um mundo tão pequeno? Acontece que esta dimensão, a Terra onde você vive está em um ambiente privilegiado. Cada entidade convive em seu próprio ambiente. Existem pontes de ligações entre elas, no caso a crença das pessoas contribui para está ponte. No entanto, conforme o tempo passa a crença muda e a conexão se perdem. A vinda de Loki para Midgard foi algo essencial, assim como a de Heimdall. Bifrost assim pode reestabelecer sua função com a Terra, afinal, membros de nossa comunidade se encontravam em seu mundo.

    Ulric manteve-se calado, analisando as informações. Se Hel já se encontrara com ele, mais de uma vez, e existiam outros mundos com características iguais, significava que aquela Terra não era a primeira a presenciar aquela situação. Mas ainda não conseguia compreender o que Loki e outros deuses ganhavam com tudo aquilo. A única que parecia lucrar com tudo, era Hel, afinal, aumentaria assim sua coleção de almas infinitamente.

    - Mas por que os outros deuses continuam nisso? – Ele observou um sorriso surgir nos lábios da deusa.

    - E quem lhe disse que eles aceitam? O verdadeiro significado de ser a morte, meu caro, é ser o próprio tempo. Desde a criação destes reinos, travamos um Ragnarok constante, mas nenhum dos outros lembra, apenas eu estou fadada a ser a eterna observadora e colecionadora. Loki e Heimdall, às vezes conseguem recordar de algo, como agora. Mas isso é algo compreensível, já que são as causas do Ragnarok. – deu de ombros voltando-se ao trono, os corvos, que até então se encontravam no mais profundo silêncio, cantaram para a deusa que sorriu. – Acontece que antes do último Fim dos Tempos, Odin criou Liandan. – ela gargalhou enquanto bailava, e Ulric se perguntou se ela ainda lembrava que ele estava ali, assistindo a tudo. – Mal sabia o velhote que ao fazer isso, alterou o curso de sua própria história. Através de sacrifícios inconscientes, após o Ragnarok, a maioria dos deuses revive, mas graças a Liandan, não foi isto que ocorreu. Pobre Odin. – lamentou em meio a sorrisos.

    Ulric sentia-se estranho. Era muita informação para pouco tempo. Sua missão, sua existência, Miraini, a guerra, o motivo, Liandan... Sempre fora uma pessoa racional, daquelas que não acreditava no que lhe era dito, a não ser que houvesse provas para isto, nunca se sentira atraído por nenhuma religião ou mesmo crença. A cultura nórdica então, quem sabe? Não, dentro todas aquelas sempre fora a que mais detestava. Achava os motivos de mortes, brigas e mesmo guerras ridículas. Levando em consideração, que ele era o causador da maioria dos acontecimentos daquela mitologia, por que odiava tanto aquilo, mesmo seguindo os passos de Loki? O que exatamente ele era?! “Ainda não percebeu querido? Você não existe nesse mundo.” A voz seca, morta da deusa ecoou em seus ouvidos em meio a suas risadas. Os olhos azuis do rapaz se estreitaram, apertaram-se enquanto encarava o nada. Se ele não existia, não era real, por que fora obrigado a vivenciar tudo aquilo? Seria melhor que Loki tivesse tomado conta por completo de seu corpo quando despertou, seria melhor que não tivesse lutado contra o deus, seria melhor jamais ter nascido.

    - Confuso, não é mesmo, querido? – Hel parecia ter se lembrado de seu acompanhante. Voltando-se para ele, ela sorriu. Mas não houve resposta, ele estava perdido demais em seus próprios pensamentos. – Por que não faz parte da sua minha coleção permanentemente? Garanto que Miraini ficará feliz com sua companhia, mas não garanto que se lembrará de você, ou você dela. – ela riu. – Irei te apresentar a Casa das Névoas.

    A mão esquelética tocou a face branca de Ulric, acariciando-o. Os olhos azuis ficaram vagos, como se a deusa controlasse sua mente. Não... Ela não controlava, ele simplesmente havia perdido a vontade de seguir a diante. A outra mão de Hel tocou seu braço, para depois deslizar até seu pulso, aonde conduziria Ulric até sua sepultura.

    ...

    - Pensei que pudesse estar aqui. – houve uma pausa, um pigarro. – Bem, parece que acertei.

    Um objeto de madeira esguio foi arremessado, e antes que atingisse o solo banhado por carnificina, uma mão o segurou. Aparentemente era Ulric, porém Skoll sabia que aquele garoto não possuía mais direitos sobre o corpo.

    O lobo negro estava sozinho, os irmãos haviam cruzado Bifrost não havia muito tempo. Um verdadeiro alvoroço ocorria. Enquanto muitos dos deuses de Asgard esperavam a batalha em campo – apesar da trombeta já ter soado -, alguns ficaram para proteger o local, já que muitos gigantes aproveitam aquele momento para atacar. Skoll encolheu os ombros. Enquanto o rapaz desembainhava o bokken, uma chama surgiu tomando conta da espada de madeira para depois possuir o corpo humano. Não houve dor aparente, apesar do calor que emanava. Skoll não se incomodava, suas habilidades nasciam do fogo igualmente, ao contrário de seus irmãos, cujos possuíam afinidade com o frio.

    - Ahh – houve um suspiro de puro alivio por parte de Loki. As chamas se apagaram após tornarem-se azuladas. – Não suportava mais aquela aparência. – murmurava enquanto fitava o fio da espada avermelhada. Era grandiosa como o dono.

    - Finalmente conseguiu se livrar do garoto, hein? – observou.

    - Temporariamente, mas é o suficiente. - a espada emanava calor apesar de não possuir chamas. Ela rodopiava nas mãos do deus, como se ele verificasse se ela ainda era a mesma. – Mas se eu der sorte, ele jamais retornará. – divagou guardando por fim a lâmina.

    - Que seja. – deu de ombros. – Estão todos a sua espera.

    - Sim. – concordou. – Mesmo Heimdall partiu antes que recuperasse a consciência deste corpo. – Ele passou a mão por seus longos cabelos. – Abra logo esse maldito portal, não tenho mais tempo a perder.

    Skoll suspirou, e antes que o outro dissesse algo a mais, convocou a ponte Bifrost, aquela que os levaria até o futuro dos mundos.

    Não foi difícil encontrar a arena das batalhas. Como ignorar a visão de gigantes, afinal? Não havia mais tempo a perder, e assim que Loki foi visto pouco após a trombeta de Heimdall, todos se prepararam para o ataque, logo uma sangrenta e violenta batalha teve inicio. De certa forma os Asgardianos estavam em desvantagem numérica, mas nenhum deles parecia querer desistir, pelo contrário, apenas lutavam com mais afinco. As valquírias planavam pelos céus em seus cavalos alados trucidando gigantes por cima, mesmo os anãos atacam por baixo. Muitos dos gigantes de gelo eram derrotados assim. Entretanto, os cavaleiros dos filhos de Thor também caiam aos montes.

    Enquanto Heimdall e Loki assistiam o desenrolar, os irmãos que governavam Asgard se encontravam com Vidar, o deus da vingança. O tio estava compenetrado em seu objetivo, queria o trono que lhe fora roubado não se sabia como. Sempre acreditara que seria ele o escolhido, porém aquelas duas pestes haviam surgido em sua vida. Depois de uma séria conversa, havia aconselhado os mais novos a desistirem pelo bem dos nove reinos, o que obviamente havia sido recusado com veemência. Precisava agora pensar em uma forma de matar os sobrinhos sem que suspeitassem de si, ou poderia haver uma resistência ao seu reinado.

    Enquanto divagava em seus pensamentos, sorriu para si mesmo, sabia exatamente como executar as pequenas vítimas ao visualizar a chacina que ocorria monte abaixo.

    ...

    O frio continuava forte como sempre, mas Ulric não se importava, apenas seguia a deusa da Casa das Névoas. Era estranho, sentia como se não estivesse mais vivo, não conseguia controlar mais seu próprio corpo apesar de ainda possuir consciência.

    Ao longe, escutou um rugido intimidador. Um ser alado, de pele escamosa e negra devorava as raízes da maior árvore que já vira na vida. Mesmo querendo parar, não pode, seu corpo seguiu assim como o de Hel.

    - Oh, querido. – a voz era surpreendente amorosa. – Deve estar entediado, não é mesmo? – ela sorriu enquanto o dragão curvava sua cabeça para receber um carinho da senhora de Helgardh. – Aquele feioso do Ratatosk não veio lhe perturbar, veio?

    Ratatosk era um esquilo que vivia a semear a discórdia entre o dragão Nidhogg e o gigante Hraesvelg. O pequenino vivia entre os troncos da árvore Yggdrasil, onde subia e descia contando mexericos para as ambas as partes, para Nidhogg que vivia no submundo, e para o gigante que se transforma em águia que vivia a comtemplar o céu.

    O dragão rugiu em resposta. Hel franziu o cenho.

    - É claro, meu querido, a guerra já começou e você precisa se alimentar. – ela sorriu sádica, em seguida dirigiu seu olhar para Ulric. Estava parado a poucos metros de distância, não parecia ter vontade própria alguma, e ela entendia bem o motivo.

    O lagarto rugiu novamente, suas pupilas amarelas eram fixas no corpo imóvel.

    – Lamento pequenino, prometo que não haverá sofrimento. - suas palavras eram dirigidas a Ulric. - Nidhogg, aceite esse pequeno aperitivo antes de partir, sim? – sugeriu a deusa.

    Não houve resposta sonora desta vez, apenas foi possível avistar um borrão negro avançando sobre o rapaz, cujo teve a carne devorada pelo dragão devorador de raízes. E então é assim que tudo acaba? Indagou Ulric. A dor era insuportável, mas não conseguia gritar, apenas lágrimas silenciosas rolavam de sua face. Porém, algo lhe respondeu. Não. É assim que tudo começa. E tudo escureceu ao seu redor.

    Fim Aposta VII


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