BANDEIRA BRANCA

Tempo estimado de leitura: 5 minutos

    12
    Capítulos:

    Capítulo 1

    BANDEIRA BRANCA

    Álcool, Heterossexualidade, Linguagem Imprópria

    Ele: tirolês.

    Ela: odalisca; Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.

    ~x~

    ?Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia.

    Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.

    ~x~

    Só no terceiro Carnaval se falaram.

    -Como é teu nome?

    -Sakura. E o teu?

    -Sasuke.

    -O quê?!

    -Sasuke.

    -Que nome!

    Ele de legionário romano, ela de índia americana.

    ~x~

    Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.

    -Ah.

    ~x~

    Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora.

    Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse

    -Até o Carnaval que vem- e saiu correndo.

    ~x~

    O baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola.

    Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca.

    Na hora da despedida, ele pediu:

    -Me dá alguma coisa.

    -O quê?

    -Qualquer coisa.

    -O leque.

    O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.

    ~x~

    No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia.

    Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu.

    Naruto, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais.

    Teve que ser carregado para casa.

    Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado.

    -O que aconteceu?

    -Você vomitou a alma ?disse a mãe.

    Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.

    ~x~

    Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.

    -Sei lá. Bávara tropical ?disse ela, rindo.

    Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.

    -E aquela bailarina espanhola?

    ?Nem me fala. E o toureiro?

    ?Aposentado.

    A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileim no grupo dos primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros.

    Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse

    -Sasuke?!- e todos caíram na risada.

    Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Naruto.

    O Naruto anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Naruto tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma.

    0Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro.

    Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Naruto, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi "pelo menos o meu tirolês era autêntico" e desistiu.

    Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo

    -Não vale, você cresceu mais do que eu- e encostando a cabeça no seu ombro.

    Ela encostando a cabeça no seu ombro.

    Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto.

    Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse

    -Quase não reconheci você sem fantasias-.

    Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora "preciso te dizer uma coisa", e ela dissera "no Carnaval que vem", no Carnaval que vem-e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera.

    Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara

    -O que você ia me dizer, no outro Carnaval? ?perguntou ela.

    ?Esqueci ?mentiu ele.

    Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil

    E a todas essas ele pensando:

    "Digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida?"

    E ela pensando:

    "Como é mesmo o nome dele? SAsui?. Será Sarui?

    Ele: "digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque?"

    Ela: "Sai? Sasue? Sasu?"


    Somente usuários cadastrados podem comentar! Clique aqui para cadastrar-se agora mesmo!