O sangue quente e, naquele momento, escuro, corrompido por maldade escorria pelo braço retalhado.
Não era a primeira vez que via aquele espetáculo negro e sepulcral, mas nunca havia acontecido consigo mesmo. Várias vezes ouvira os desesperados gritos de dor de suas vítimas tendo as veias e artérias destruídas pela poderosa - e maligna - força que acumulava dentro do seu corpo. Força que envenenava toda a vida, todo o sangue escarlate.
Sempre que assistia àquelas pessoas se contorcendo em implacável dor, implorando por misericórdia, tinha vontade de explodir em gargalhadas, e o fazia até lágrimas escaparem dos olhos adamantinos. Mereciam aquele sofrimento, e ainda mais do seu corpo e alma, flagelados pelos atos daqueles que, agora, maltratava, torturava e atormentava até que o descanso esterno os arrebatasse. Além disso, eles deram início à calamidade que se abateria sobre tudo aquilo que rastejava nas terras desse planeta habitado por seres tão gananciosos.
Contudo, nada disso deveria estar lhe acontecendo. Seu veneno de ébano não deveria lhe atingir. Por que tudo se voltava contra sua pessoa? Se havia justiça naquele mundo corrupto, onde ela estava? A culpa não era sua, era deles, daquele grupo de seres imundos que desencadeou aquela maldita cadeia de eventos infortunados, cruéis, perturbadores, intermináveis. Por que expiava a dívida alheia? O sofrimento, a angústia pela qual passara já não fora o bastante? Essa sua existência amaldiçoada já deveria ter remido seus pecados e ainda os alheios. Além disso, no momento, sua única atividade era tentar desfazer cada erro daquelas criaturas pecadoras através de cada gota de sangue que possuíam, purificando a mistura vermelha com seu poder avassalador. Talvez seu tão grande pecado fosse esse, utilizar-se daquela poder. Faculdade que, em tempos distantes, era conhecida como "magia", quando diziam que esta nunca ajudaria se estivesse corrompida por ódio. Porém, sua "magia" estava cheia de ódio e, ainda assim, limpava a sujeira dos outros perfeitamente, corrigia as faltas que não eram suas.
Os povos da antiguidade julgavam as sombras más e inexoráveis, mas elas lhe haviam com amor de mão em meio à escuridão; protegeram seu corpo, que na época era frágil, com uma espada feita de ?magia? e ódio. Sem contar que, provavelmente, eram a libertação da realidade apocalíptica que o universo iria presenciar num futuro próximo.
Uma forte e gélida rajada de vento varreu o ambiente escuro assobiando, quase apagando o elaborado círculo de velas de onde vinha a pouca luz que cortava o negrume, intransponível aos olhos de um indivíduo normal. As marcas de carvão que compunham o círculo sobre o assoalho, somente visíveis pelas pequenas labaredas que bailavam ao seu redor, já estavam meio apagadas com o fluido da vida e com as passadas que se seguiram sobre elas, mas sua energia permanecia poderosa.
Ou melhor, aquelas marcas escuras sobre o chão permaneciam níveis acima de outros símbolos da mesma categoria, mas, se comparadas com seu estado anterior, estavam bem mais fracas. A voz perturbadora ainda sussurrava coisas asquerosas dentro da mente do indivíduo que as havia desenhado, porém a proteção que deveriam fornecer estava falhando. Somente isso poderia estar acontecendo para que sua magia afetasse seu próprio corpo. Um encantamento repelido e um escudo destruído, talvez essa fosse a explicação para o infortúnio que quase decepara seu braço.
Não se arrepende do que acabou de fazer? As consequências dos teus atos não te assombram mais, por acaso?, a voz metálica e repugnante murmurou outra vez nas profundezas da sua mente.
E, ao ouvir as questões, não conseguiu controlar o riso que se formava, exatamente como fazia com suas presas infelizes ao martirizá-las até suas almas abandonarem aqueles corpos. Em seu ponto de vista, medo era algo irracional, não fazia sentido. Todos estão fadados a sofrer durante a vida e a morrer quando o sofrimento passar, então qual o sentido de temer de tais cousas? O único sentimento que ainda ecoava dentro de si era a cólera incomensurável, não o medo, não temia nada do que estava se passando ali.
De fato, a primeira investida contra o adversário havia falhado. Todavia, aquele foi o primeiro tiro do primeiro mosquete, e, com toda certeza, aquela voz, sua inimina, como todo ser imprestável e irracional, temia sua força agora.
Dessa vez, sairia vitorioso, segurando as cabeças daqueles que estragaram sua vida e a transformaram em um oceano de desespero.