Harvest Moon Meus Amigos da Cidade Mineral

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    Capítulos:

    Capítulo 13

    Adeus Costinópole

    Eram quase seis horas da manhã, quando Barley saiu de casa para começar seu dia. O sol estava começando a clarear a Cidade Mineral por detrás da Colina-Mãe, a temperatura fria e amena da madrugada que havia se acabado ainda perdurava e o único som que se ouvia era os primeiros pios dos passarinhos que acabavam de acordar. Enquanto muitos ainda dormiam na Cidade Mineral, o velho Barley se levantava depois de fazer sua oração matinal agradecendo pela vida e pedindo que seu dia fosse bom, colocava seus pequenos óculos, conferia se sua netinha May estava dormindo bem e saía de casa, pegando o velho balde de lata para ordenhar suas vacas.

    Andava para fora de sua casa logo pela manhãzinha, entrava no celeiro após destrancar o cadeado que unia a porteira de madeira à parede, também de madeira, e então andava entre suas dez vacas preferidas para tirar-lhes o leite. Apesar da idade, Barley não tinha dificuldades em separar os bezerros de suas mães. Então, ele pegou seu banquinho, acariciou Demétria, sua vaca mais jovem, de pêlo alaranjado brilhante, e se sentou, começando a ordenhá-la e o fato de que havia mais vacas a ordenhar não o desanimava nem o cansava. Além do leite usado em sua própria casa, haviam baldes a ser cheios e vendidos. Barley fazia isso há tantos anos que era praticamente automático. A idade ficava cada vez mais avançada, mas sua disposição não diminuía e ele seguia continuando a fazer aquilo dia após dia nem tanto por ele, mas pela neta que ele tanto amava e era de sua responsabilidade.

    Entretanto, naquela manhã em especial ele ouviu um som não muito comum entre os mugidos dos bezerros reclamando suas mães e os pios constantes dos passarinhos lá fora, que se atreviam a entrar no celeiro freqüentemente para pegar algum pedaço solto de feno e construir seus ninhos ou procurar algum inseto preso lá, como mariposas ou borboletas. O som estranho não cessara e Barley o reconhecia como um relinchar, um agudo relinchar.

    - Que diacho de som é esse, Demétria? ? perguntou à vaca, mas, obviamente, não veio a resposta.

    Largando o balde de lado e parando a ordenha, Barley saiu do celeiro e foi para o seu campo aberto, onde costumava soltar as vacas e seus bezerros para pastar. Naquele dia, em especial, Barley se surpreendeu que um animal que ele não criava mais estivesse ali. Ele se aproximou e viu que um pequeno potro relinchava de dor ali no chão do seu pasto.

    - Ora, ora, veja só quem veio fazer uma visita! ? comentou Jeff, de braços cruzados, atrás do balcão, encarando Julie com um sorrisinho nos lábios.

    - Olá Jeff. Parece mais feliz em me ver hoje do que estava no outro dia ? respondeu Julie.

    - E que comerciante não fica feliz em receber seus clientes fiéis? ? ele perguntou, sorrindo para ela, em tom de brincadeira.

    - Ainda mais quando eles vêm pagar, não é? ? perguntou Julie, sorrindo de volta.

    - Pois é. Essas coisas do comércio e capitalismo, sabe? No fundo, tudo o que eu queria era me dedicar à vida de caridade com os pobres, sabe ? ele disse.

    - Se quer começar uma vida de caridade, eu te ajudo. Eu preciso mesmo de mais sementes de pepino e de graça é sempre mais gostoso! ? disse Julie, provocando, e riu ao ver a expressão horrorizada ir surgindo no rosto de Jeff.

    - Julie, o capitalismo me força a vender pra você ? disse ele, como se quisesse convencê-la a querer pagar. ? E para que eu sustente minha família, preciso que você compre, Julie.

    - É. Capitalismo, exploração da mão-de-obra, passar a perna nos outros, sei como é? mas e se a sua cliente fiel do dia fosse uma fazendeira recém-chegada que precisa de uma compra meio que pra pagar? depois? ? perguntou Julie, agora alargando ainda mais o sorriso e com um olhar de cachorro pidão.

    - Você quer comprar fiado? ? Jeff ficou ainda pior, fazendo uma cara de incrédulo e extremo desgosto. ? Você ganhou sementes grátis ontem e quer comprar fiado hoje? Por acaso eu tenho cara de Papai Noel, minha filha? Já tenho uma família pra sustentar e mais da metade da cidade me devendo! ? ele alterou a voz, elevando-a e falando num tom altamente irritado.

    - Jeff, eu estava brincando ? disse Julie, num tom sério e calmo, como se pedisse desculpas e então mostrou a bolsinha de dinheiro. ? Eu vou pagar pelas sementes.

    - Oh ? ele disse, sentindo-se constrangido. ? Se era uma brincadeira, por que não disse antes?

    - Talvez porque eu queria enganar você e ver sua reação?

    - Pelo visto funcionou ? ele voltou a abrir um largo sorriso em seu rosto, como se nada tivesse acontecido. ? E então, o que vai querer hoje?

    Julie saiu com certa dificuldade do mercadinho, levando as sacolas com sementes de pepino e mais algumas coisinhas que ela havia comprado para comer depois em uma mão e arrastava o pequeno cachorrinho teimoso pela corrente usando a outra.

    - Muito obrigado e volte sempre! ? Jeff gritava e acenava para ela com o dinheiro em mãos, da porta do recinto. ? E não esqueça de nos dar sempre sua preferência! E Deus lhe pague!

    A fazendeira riu ao ouvir a palavra ?preferência?, afinal aquele era o único mercadinho da Cidade Mineral, não havendo concorrência alguma, então preferência era algo inevitável.

    O farfalhar das folhas dos pomares e árvores ao redor, a brisa leve e fresca que via correndo de dentro da floresta, o som da água que caía tão brutamente da pequena cachoeira próxima dali. Julie estava em contato com a natureza. Seus cabelos loiros desciam pelos seus ombros, caindo para cobrir o seu rosto, enquanto seus joelhos se dobravam humildemente em direção ao chão. Uma gota quente escorria pelo seu rosto, quando sua delicada mão se ergueu e passou por cima dela, fazendo com que ela se espalhasse pelo rosto e pelas suas mãos, praticamente desaparecendo em meio às demais gotículas que estavam espalhados por ele.

    Já fazia quase duas horas que Julie fazia seu trabalho de coleta ao redor da fazenda Harvest Moon e seu cesto já estava praticamente cheio. Naquela região, usando O Manual do Fazendeiro, Julie descobriu que havia uns tipos raros de ervas com cores diferentes chamadas pelos nativos de ?ervas arco-íris?, valiosos por sua raridade e sua importância no campo da medicina. Na primavera, era comum nascer ervas nas cores azul, amarelo e laranja e Julie tinha um bocado de cada uma delas. A fazendeira então se sentou um pouco sobre a grama úmida e fresca e olhou o velho relógio de pulso analógico dos seus pais que ela decidira colocar para não perder a noção do tempo. Já eram quase treze horas e embora ela estivesse almoçado há poucas horas, ela já sentia a fome atacá-la outra vez. Julie então abriu uma sacolinha que ela deixara fechada dentro do seu cesto e tirou de dentro dela um pão caseiro que ela comprara no mercadinho de Jeff e que estava embrulhado em papel-toalha. Então tirou o papel-toalha e começou a comer, ficando impressionada com o sabor maravilhoso daquele pão caseiro e então se lembrou da padaria e lanchonete onde Lucy trabalhava e perguntou-se como estaria sua amiga da cidade.

    Neste momento, interrompendo seus pensamentos, ela começou a ouvir sons de passos se aproximando dela e olhou para ver a quem pertenciam. Era Gotz. Em suas mãos, o grande e rude homem, que morava afastado de todos, trazia o que Julie reconheceu serem brotos de bambu, que ela tinha visto no manual do fazendeiro. Ao vê-lo, Julie pensou em virar a cara e continuar comendo, mas então ele a cumprimentou:

    - Já cansou, fazendeira? ? disse, se aproximando dela.

    - Oi Gotz. Digamos que ficar andando por aí atrás de ervas coloridinhas é um saco! ? ela disse, dando uma mordida no pão em seguida.

    - Bom, é eu sei, você mal chegou e já teve que fazer toda essa coleta. Eu estou impressionado. Sinceramente, quando te vi achei que era só mais uma dessas garotas fúteis que vêm da cidade em busca de vida fácil, sabe ? ele disse, parando em frente a ela.

    - Ãhn? por que todo mundo nessa droga de lugar acha que eu sou garota de vida fácil, hein? ? disse a menina num tom grosseiro de auto-defesa, enquanto terminava de comer seu pão.

    - Oh! Me desculpe! ? disse Gotz ao perceber seu erro ? Não era essa minha intenção. Eu quis dizer, vida fácil no sentido de não trabalhar não de, você sabe.

    - Aham, sei ? concordou Julie, olhando feio pra ele. ? A Anna me disse mais ou menos a mesma coisa hoje, então não me acuse de pensar besteira.

    E então ela percebeu que havia uma espécie de mochila nas costas dele, com correias passando pelos seus braços. Julie então olhou mais atentamente e viu que parecia um cesto cheio de bambus que ele levava nas costas. Gotz pareceu notar que Julie estava olhando, porque em seguida disse:

    - São pra você ? meio constrangido, ele retirou a mochila com brotos de bambu das costas e ofereceu a ele, segurando com suas mãos.

    - Pra mim? ? Julie indagou, surpresa. ? Tem certeza?

    - É claro que tenho! ? disse Gotz, tentando deixar a voz firme. ? Eu não fui muito educado com você todo esse tempo e hoje vocês pediram minha ajuda e como eu não tinha nada pra fazer, achei que seria justo dar uma ajudinha já que graças a você já faz um dia inteiro que não me preocupo mais com mijos de cachorro.

    - Ah, que meigo Gotz! Você se preocupa comigo, obrigada ? Julie pôs-se de pé num pulo, sorrindo, agradecida, para Gotz ? Muito obrigada mesmo. Eu nem sei o que dizer, mas? ? ela receou em pegar os bambus por um instante.

    - Não precisa dizer mais nada, apenas pegue ? ele disse, estendendo o próprio cesto com brotos de bambu.

    - Antes, só uma coisa e, por favor, seja sincero ? ela disse, ainda receosa.

    - Sim, pode falar ? disse Gotz, intrigado.

    - Você está, tipo, a fim de mim?

    - Oh! Não! Claro que não! ? disse Gotz, negando com a cabeça. ? Não tenho interesse nenhum e você, acredite em mim ? e então, ao perceber que isso não soara muito bem, ele se corrigiu ? Não que você não seja atraente, mas não faz bem o meu tipo. Gosto de mulheres mais maduras.

    - Ah tá, obrigada e, sim, eu sou madura, só não sou velha.

    Julie então estendeu sua mão para pegar o cesto e ao colocá-lo sobre seus braços, sentiu o peso daquilo e lançou um sorrisinho amarelo para Gotz para passar a impressão de que estava tudo bem.

    - Muito? ? ela disse tentando equilibrar a cesta de brotos em suas mãos ? muito? obrigada, mais uma vez.

    - Ah claro! Você não quer uma ajudinha aí? ? ele perguntou.

    - Não, eu tô bem ? ela respondeu e ao tentar abaixar-se para pegar a cesta de ervas, mas seus braços frágeis não agüentaram e a cesta de brotos de bambu caiu, fazendo com que a coleta de Gotz se espalhasse pelo chão e que Julie também caísse com o desequilíbrio causado.

    - Estou vendo o quanto está bem ? disse Gotz num tom sarcástico, enquanto balançava a cabeça negativamente vendo Julie caída.

    - Eu só tentei ser educada ? justificou-se Julie, massageando as costas que doíam tanto quanto suas nádegas.

    - É. Você é realmente madura, tão madura que até cai do pé, veja só.

    - Sem graça ? respondeu a fazendeira, sarcástica.

    Alguns poucos minutos depois, Julie pôs o cesto com as ervas coletadas dentro da caixa da coleta que Zack lhe mostrara no dia anterior e, em seguida, Gotz pôs o seu cesto com os brotos de bambu.

    - Bom, trabalho feito ? disse Julie, sorrindo.

    - Está melhor? ? perguntou Gotz.

    - Ainda um pouco doída, mas nada que me impeça de trabalhar ? disse Julie, sorrindo.

    - Você ainda vai fazer mais alguma coisa?

    - Sim. Eu plantei uns pepinos ontem, mas não fiz nenhuma proteção, então descobri uns pedaços de tronco dentro do celeiro e umas redes velhas que o antigo dono usava pra proteger a plantação de pássaros e essas coisas, então vou montar minha própria proteção pra minha plantação.

    - Ah sim ? disse Gotz. ? E o pulguento?

    - Não o chame assim! ? repreendeu-o Julie. ? Está no celeiro. O Jeff tinha ração lá e eu aproveitei pra comprar também.

    - Desculpe, mas antes de você chegar, eu só o chamava assim! E que nome você deu pra ele?

    - Ainda não dei um nome. Bom Gotz, eu preciso começar o meu trabalho ? disse Julie, colocando as mãos nos bolsos do macacão. ? Eu quero ir na festa do Saibara e quero terminar isso logo.

    - Tudo bem ? disse Gotz, se despedindo ? Tchau fazendeira e cuide-se, hein!

    - Tá bom! ? disse Julie, indo para o celeiro enquanto Gotz se afastava. De repente, um pensamento lhe veio à mente e então ela gritou para ele, que já havia atravessado quase todo o campo de plantio. ? GOTZ!

    - Que foi? ? ele indagou de volta com sua voz grave.

    - Seria pedir demais uma ajudinha? ? pediu Julie, constrangida e ele apenas sorriu.

    - Continuando a aula sobre as cidades mais importantes das nossas redondezas, hoje nós vamos falar sobre Costinópole.

    - Hum? interessante padre Carter ? disse May, anotando no caderninho simples que tinha com seu lápis de escrever o nome da cidade que o padre escrevera no quadro-negro. ? Meu vovô fala muito desse lugar!

    - É! A vovó Ellen também ? apressou-se Stu em dizer. ? Ela sempre fala que lá tem peixes melhores que as porcarias que o tio Jeff vende!

    - Stu ? disse o jovem padre com voz firme, olhando para o garoto. ? O que eu disse sobre as palavras feias?

    - Ixi ? comentou May ao seu lado, fazendo uma expressão de que Stu estava realmente encrencado.

    - Que a gente não pode falar elas na igreja! ? respondeu o menino, abaixando a cabeça, envergonhado.

    - E em lugar nenhum ? acrescentou o padre, suavizando o tom de voz. ? Nós estamos na casa do Senhor Deus, Stu. Temos que ter respeito e Jesus não gosta de ouvir esse tipo de coisa saindo da nossa boca. Às vezes nós ouvimos nossos papais, titios, vovôs e vovós falando esse tipo de coisa, mas nós não podemos imitar tudo o que eles fazem porque eles erram às vezes também e Jesus quer?

    - A coisa certa ? adiantou-se May em responder.

    - Isso. Muito bem. Agora voltando ao nosso assunto: por que a vovó Ellen diz que os peixes de Costinópole são melhores que os do tio Jeff? ? nem May nem Stu souberam responder. Os netos de Ellen e Barley, respectivamente, estavam sentados em carteiras separadas dentro da sacristia da igrejinha que ficava dentro da Cidade Mineral, ao lado da Clínica Médica. Acontece que pela ausência de crianças no local, não havia professor que se dispusesse a dar aulas para Stu e May, as únicas crianças, e ambos ainda não tinham recursos para estudar nas cidades vizinhas tampouco idade para irem sozinhas. Embora Barley em termos antigos tivesse levado sua filha Joanna para a escola a carroça, desde que seu cavalo Alface se soltou das rédeas frouxas e o deixou cair que ele não se arriscava mais. Para ajudar, o padre Carter, que havia sido recém-ordenado padre, decidira tornar-se responsável pela educação de Stu e May e então já fazia uns quatro anos que lhes ensinava tudo o que eles deviam saber sobre português, matemática, história e geografia. Apesar de estar na casa dos 30 anos, Carter tinha uma aparência jovial e alegre. Era sempre visto sorrindo, sendo feliz possuidor de uma estatura mediana e cabelos castanho-claros. Muito querido pela cidade onde foi coroinha em algumas missas especiais acompanhando outros padres. ? Porque a economia deles é baseada na pesca, especialmente de salmões e trutas e como é uma região costeira, eles sabem bem lidar com peixes e os vendem sempre com os melhores preços e a melhor qualidade.

    - Hum? legal ? disse Stu. ? Então eles vendem um montão de peixes e têm um montão de dinheiro.

    - Não Stu. Apesar disso, eles não são pessoas com muito dinheiro, sabe?

    - Eu gosto de dinheiro! ? comentou Mary, anotando mais em seu caderninho com suas letrinhas pequenas e enfeitadas. ? Dá pra comprar muita bala e pirulito!

    O que May e Stu não sabiam, entretanto, e agora vagueava na mente de Carter enquanto ele explicava é que o atual padre da Cidade Mineral outrora morara em Costinópole também. Tal como o apóstolo Pedro, ele havia sido pescador junto de seu pai e conhecia a realidade que ele faria questão de ocultar daquelas crianças naquela aula. Embora fosse verdade que Costinópole era um lugar onde a maioria das pessoas vivia da pesca, a população era em sua maioria composta de pessoas carentes e necessitadas. Apesar de, pela manhã, uma boa parte estivesse inserida no comércio de alguma forma, quando o sol se punha outra parte debandava para um trabalho mais sujo a fim de obterem um lucro rápido. Por esse motivo, não era raro encontrar jovens, tanto moças quanto rapazes, vendendo seus corpos em troca de uns bons tostões, tampouco era incomum ver adolescentes e adultos usando drogas fosse nas praias, no cais, nas ruas ou na pracinha.

    A ação policial era fraca e as leis nunca foram aplicadas com real vigor na cidade que, pertencendo a uma ilhota com um turismo quase inexistente no Atlântico, não precisava ter algo bonito para representar lá fora a não ser os seus peixes. Único religioso da família, Carter passava muito tempo na igreja geralmente vazia, rezando por seus irmãos, Trevor e Elisandra, ambos envolvidos com drogas e prostituição. Tal caminho levara Carter a se tornar padre a fim de interceder não só por eles, mas também para que pudesse instruir e mostrar às pessoas daquele local a grandiosidade do amor Deus por elas. Agora ali, voltando àquele lugar em sua mente através de lembranças dolorosas, ele lembrava do padre Rufo, que havia lhe havia dado grande apoio em todas as suas dificuldades e ainda morava em Costinópole, onde a situação definitivamente não estava nas melhores.

    Sob seus pés, as telhas balançavam e escorregavam, incomodando os moradores das casas que elas cobriam sobre o solo de Costinópole. Para ganhar mais velocidade, o garoto havia prendido os chinelos de borracha às mãos e agora sentia a punição por pisar as telhas alheias e aquecidas pelo sol radiante e fervoroso do meio-dia que estava sobre a cidade. Como resultado da falta de uma proteção zelosa de um bom chinelo de borracha, os pés do rapaz começavam a doer e a sangrar pelo impacto forte da corrida sobre as telhas. A cabeça dele começava a doer e a esquentar com o enorme calor produzido pela bandana roxa que cobria o cabelo raspado dele. Sobre os chinelos nas mãos, o garoto forte e negro segurava uma caixa preta que lhe pesava mais a cada passo, fazendo seus braços doerem absurdamente e ficarem fortemente marcados, mas ele tinha que agüentar. A bandana roxa em sua cabeça como se fosse a de um pirata agora estava encharcada com o seu suor, assim como todo resto da roupa simples do garoto usava: uma camisa de pano branca sob um casaquinho marrom de tecido fino e uma bermuda jeans com quatro bolsos.

    Kai sabia que não era hora de se preocupar com essas bobagens, pois tinha que correr. O suor podia escorrer, os pés podiam sangrar, cada músculo de seu corpo doer que ele não podia parar, pois havia pessoas trás dele, pessoas que ele não poderia deixar que o pegassem, não depois do que fizera. E então, depois de correr e pular sobre muitas telhas e telhados, com gritos sendo escutados de vários lados ? tanto das pessoas que o perseguiam quanto dos donos das casas que se sentiam incomodados com o barulho que ele causara sobre os telhados de seus humildes lares ? Kai pulou de uma das casas, uma que havia sido construída à beira da praia com madeiras e correu em direção ao mar que ficava atrás dela. Ao ouvir os passos do rapaz, um senhor de idade já avançada usando roupas também simples, típica de pescadores de Costinópole, se alarmou e virou para olhá-lo.

    - Ah é você, moleque! ? disse o velho, aliviado.

    - Rápido, não tenho tanto tempo! ? disse Kai, enquanto tentava retomar o fôlego.

    - Você passou por maus bocados, seu bastardo! ? comentou o velho de pele enrugada parda e cabelos grisalhos de forma até gentil, trajando roupas de pescador. ? Está todo suado e, Santo Deus, seus pés estão sangrando, Kai!

    - Sem estresse, ok? ? disse o rapaz, enquanto andava em direção à pequena e velha lancha que havia à frente deles e colocava a caixa que carregava dentro dela e organizava as demais bagagens que havia lá dentro. ? Está tudo aqui?

    - Tudo. Roupas, comida. Tudo o que você pediu que eu trouxesse. Tem certeza que vai ficar bem, moleque? ? disse o senhor, encarando o jovem com preocupação.

    - Sim, com certeza eu vou, mas minha preocupação maior no momento é você. Tem certeza que vai ficar bem? ? perguntou Kai, agora parando a organização na lancha e voltando-se para ele. ? E se desconfiarem de você? E se vierem atrás de você? Pior: se te pegarem?

    - Relaxa moleque! Afinal, quem desconfia de um padre velho? Agora apenas faça o que tem que fazer e vá!

    - Rufo, obrigado ? disse Kai sorrindo, segurando o ombro do padre ? por tudo. Você é como um pai pra mim.

    E então, rapidamente, ele cerrou a mão em punho e socou o padre na face. O velho caiu na areia e Kai relanceou um rápido e o último olhar pra ele antes de voltar rapidamente para sua pequena e velha lancha, saindo dali com o estrondoso barulho do motor sendo ligado e se lançando ao mar, tentando resistir à tentação de não olhar para trás. Ao julgar que já tinha se afastado da praia, Kai arriscou um último olhar e pôde ver que os homens que atrás dele correram, finalmente haviam chegado à praia e encontrando o corpo do padre caído na areia, com sangue escorrendo pelo nariz e pela boca. Kai reconheceu alguns pontinhos azuis juntos que ele imaginou serem os policiais locais. Tudo estava como ele havia previsto, mas ele não ficava feliz com isso. O sol estava brilhando forte e a maresia do mar fazia-lhe sentir uma gostosa sensação de liberdade que ele só sentia em momentos como esse e, ele sabia, estavam arriscados. Sentindo aquele forte vento passar de forma violenta pelo seu rosto, somando mais um incômodo às várias dores e ao suor e sangue que escorriam pelo seu corpo, Kai só tinha uma certeza e um consolo: Podia não ser verão, mas ele podia contar com o lugar perfeito para se esconder, o lugar que melhor lhe acolhera desde então. Um lugar não conhecido em mapas-múndi e pouco comentado até mesmo pelas cidades vizinhas, mas onde ele sempre teria seu cantinho reservado. Um lugar chamado Cidade Mineral.

    CONTINUA

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