Neve. Tão calma às vezes. Outras vezes, se a mãe natureza ficar furiosa, ela se transforma numa arma mortal, sugando o calor de dentro dos corpos humanos.
O frio nos arredores de Oshawa, no estado de Ontário, era terrível. Acho que estávamos no inverno, mas nem mesmo os invernos aqui no extremo norte de Ontário costumam ser brutalmente polares aqui. Claro, estávamos no Canadá, um país originalmente frio. Talvez perto dos Estados Unidos da América, mas não tenho tanta certeza. Eu era, e ainda sou... Apenas um animal. Um lobo.
Sim, meu nome é Scott. Acostumei-me com esse nome, pois foi um humano que me apelidou assim, sabe-se lá por que. O nome não é nada ruim, mas até mesmo os outros lobos me chamam assim e isso me incomoda. O problema é que os outros lobos também recebem nomes de humanos. Eu tenho uma matilha. Não gosto de admitir que eu TINHA uma matilha, eu ainda TENHO uma matilha.
Continuei caminhando pelos rastros de trenós com algumas pegadas de outros caninos. Eu sabia que eram Huskies Siberianos. Eu estava à procura de uma pista, ou até mesmo um dos lobos da minha matilha, separada por cinco homo sapiens nojentos. Eu queria até mesmo encontrar o meu irmão, Luke. Ele estava na minha matilha também, e ele é meu irmão de sangue. Nascemos do mesmo útero, recebemos cuidados dos mesmos pais. Enfim, convivíamos juntos desde o nascimento.
Eu continuei caminhando, mas as lembranças daquele dia sempre assombravam a minha mente.
(...)
Um campo de neve vasto, mas tão vasto, que eu achava que estava fora da cidade. Lembro-me de ter visto algumas luzes, acho que eram lampiões. Eram os caçadores. Mais uma ?Caça e Captura ao Lobo? estava sendo organizada. Eu me perguntava por que eles não nos deixavam em paz?
Estava junto da minha matilha. Era eu e mais 4 lobos: Andrew, Jon, Sonya e Phil. E claro, Luke, o meu irmão. O líder daqueles quatro havia morrido de causas naturais e precisavam de um líder novo. No caso, eu me juntei e Luke acabou se juntando a eles também.
Havia não só lampiões acesos. Havia vários trenós, alguns Huskies e tinham cinco caçadores no total, com espingardas a ar e espingardas serrilhadas apontadas para nós.
- Droga, irmão... O que vamos fazer? ? Luke perguntou desesperado por sua vida.
- Eu não sei... Só não quero morrer aqui. ? Eu respondi.
Comecei a rosnar. Era minha única carta na manga no momento. Não que eu tivesse medo de espingardas ou Huskies, mas os meus companheiros tinham, então eu tentei encorajá-los. Logo o primeiro de nós começou a rosnar. Era Phil. Reconhecia o rosnar dele sem nem mesmo olhar. Logo os outros, inclusive meu irmão começaram a rosnar.
Mas eu não contava com o rosnar e o latir dos Huskies. Eles também queriam nos pegar, isso era fato. Porém, nós não tínhamos medo desses ?falsos lobos?. Um deles nos disse...
- Sugiro que se entreguem para os nossos donos! Senão, iremos matá-los! ?
- Cala a boca, cachorrinho de merda. Não vamos nos entregar a ?lobinhos de madame? como vocês! ? Andrew dissera para o Husky.
- Será mais fácil para vocês! Podemos poupar as suas vidas! ? O mesmo Husky dissera.
- Os homo sapiens nunca poupam nossas vidas. Vocês são ?falsos lobos?. Nunca vão perceber isso. Por que não nos deixam em paz? ? Luke perguntou.
- Meu irmão tem razão. Seus donos são uns idiotas, eles estão acabando com a nossa privacidade invadindo as nossas tocas e acabando com as nossas famílias e matilhas graças a essa maldita ?Caça e Captura ao Lobo?! ? Eu disse ao Husky. A essa altura, eu estava bastante nervoso.
Mas não foi o suficiente. Nós não os espantamos. Os Huskies ainda latiam para a gente, e no final acabamos capturados por redes. Kevin e os outros tentaram se libertar das redes, mas já não era mais possível. Nem eu mesmo conseguia me libertar.
Os caçadores nos jogaram nos trenós e se preparavam para voltar para a cidade. Eu estava com Luke e Andrew em um trenó. Sonya, Jon e Phil estavam em outro trenó logo ao lado.
Eu tinha que sair daquela rede o mais rápido possível. Comecei a morder os fios, tentando abrir aquela maldita rede. Era difícil para mim, mas não desisti. Continuei roendo aqueles fios da rede.
Mas me lembro que eu ouvi tiros. Pareciam tiros de diversas armas. Pistolas, espingardas serrilhadas, metralhadoras... Eu sabia que caçadores usavam esses tipos de arma, mas não sabiam que eles eram tão rivais. De alguma forma, parecia uma briga de matilhas, mas no lugar das patas e dentes, balas. Muitas balas. Aquela era a minha chance, precisava fugir de qualquer modo, antes que aquele tiroteio que torturava meus ouvidos acabasse. Usei toda a minha força nas mandíbulas para arrebentar aqueles fios e em um momento certo, consegui abrir a rede.
(...)
Eu não me lembro se Luke e os outros se libertaram. Eu saí correndo e não olhei para trás. Queria, instintivamente, salvar a minha vida. Mas ganhei uma terrível conseqüência de dúvida: O meu irmão... Os meus parceiros de matilha... Estavam realmente vivos? Eles se libertaram das redes também?
Continuei a farejar as pegadas na neve. Meu faro indicava que aqueles rastros de trenó e aquelas pegadas caninas levavam a uma cidade. Sim, era Oshawa. Já estive nessa cidade antes com a minha matilha, talvez procurando por algo um pouco diferente para comer, mas não achamos nada além de ração e carne de segunda em alguns açougues fétidos e cheios de moscas e baratas.
Decidi continuar a farejar, e então, ouvi algo. Era um latido combinado de um uivo. Lobos como eu raramente latiam, mas achava que naquela hora seria necessário latir, pois poderia ser um dos meus companheiros.
- Quem está aí? - A voz perguntava.
- Quem é você? ? Eu perguntei.
O canino se aproximou. Era um cachorro simples de rua, talvez um vira-lata. Eu não deveria me importar tanto com ele, mas a aquela altura, eu faria de tudo para ver quem eu queria ver...
Aproximei-me do vira-lata. Ele parecia um pouco surpreso com a minha presença, e isso me deixou com a pulga atrás da orelha.
- Oh, minha nossa! Um lobo! Um lobo na minha frente? ? O fétido vira-lata, perguntou a mim.
- (Droga... É só um vira-lata...) ? Pensei.
O vira-lata era um velho cachorro. Um velho marujo das ruas de Oshawa, talvez. O pêlo era espalhafatoso e embaraçado, numa cor marrom-escura. As patas velhas e curvas de um cachorro idoso, os olhos cansados e castanhos... Enfim, um cachorro vira-lata velho.
- Jovem lobo... Faz muito tempo que eu não vejo um. ? Ele havia dito.
- Acho melhor responder as minhas perguntas, velhote! ? Respondi, com um pouco de agressividade.
Eu nunca confiava em cachorros. E os vira-latas geralmente eram os mais traiçoeiros, só ficando atrás dos falsos lobos, os Huskies Siberianos.
O vira-lata sentiu medo de mim, agora que eu mostrei meus dentes. Ele se afastou alguns metros pra trás, e eu andei para frente, sempre no mesmo ritmo que ele.
- Espere, jovem lobo... O que você quer de mim? ? Ele perguntou.
- Quero informações! E é melhor que você as dê para mim, senão irá arcar com as conseqüências! ? Disse a ele.
O vira-lata parou de avançar, tendo em vista que agora ele estava encurralado no muro. Eu parei de avançar. Eu tinha ódio de vira-latas assim como Huskies, mas eu tinha que me controlar, senão meus dentes iriam parar no pescoço dele.
- Apenas me responda, você viu caçadores em trenós com redes por aqui? ? Eu perguntei.
Ele hesitou por um momento em responder. Eu achava que ele estava escondendo alguma coisa.
Porém, não precisei insistir... Na verdade, ele nem respondeu. Pois logo virando a esquina, um bando de vira-latas, talvez uns 4 ou 5, corriam em nossa direção.
Eles nos cercaram. Aliás, eles me cercaram, pois o velho conseguiu fugir de mim. Aquilo parecia uma lei democrática: Ameace um vira-lata e tente arrancar informações dele, e o problema não será mais dele, será de todo o resto. Uma ?matilha? de vira-latas, talvez?
Sim, aquilo soava ridículo.
- Como ousa rosnar para o nosso pai, Rowel? ? Um deles perguntou aos latidos furiosos. Mesmo pêlo abatido e embaraçado na cor marrom, mas patas mais rígidas e olhos castanho-claros mais abertos. O restante era bem semelhante, mas com uma ligeira mudança na cor da pelagem de cada um. Acho que eram irmãos.
- Ele é muito velho pra lutar contra um lobo como você! Pegue a gente, se puder! ? Provocou o outro, também latindo.
- Eu queria evitar carnificina, mas vocês não me deixam escolha... ? Disse, rosnando. ? Eu só queria uma informação, mas se querem encrenca, tenham em mente que vão se arrepender! ? Completei.
Latidos e mais latidos. Sangue voando para todos os lados, manchando a neve no chão e os dentes. O choro dos vira-latas pareciam pedaços de uma triste ópera feita no meio da neve vermelha de sangue.
Eles não estavam mortos, claro. Não perderia meu tempo com eles. Eles estavam abatidos. Meu foco era outro.
Aproximei-me do velho vira-lata novamente. Ele ouviu o que eu dissera antes, e decidiu colaborar comigo.
- Meu jovem... O que você procura? ? Ele perguntou.
- Procuro quaisquer pistas da minha matilha. Eles foram capturados por caçadores e quero resgatá-los de uma vez por todas. Tem alguma informação de onde posso encontrar esses caçadores? ? Perguntei.
- Me desculpe, meu jovem, mas não tenho nenhuma informação sobre isso... Assim como humanos miseráveis que circulam nessa cidade gélida, nós também sofremos com isso. Mas há uma matilha que pode te ajudar. ? Respondeu o velho.
- Então me diga! Quem? ? Perguntei, ansioso.
- Eu não sei o nome da matilha, mas o nome do líder dessa mesma é Onderon. Ele é um lobo que nem você, só que um pouco maior. Ele é um dos lobos mais ariscos que eu já vi. Só a pelagem preta e os seus olhos dourados já metem muito medo em qualquer canino dessa cidade. Se vagar pelas ruas, pode ser que você se depare com ele só ou junto de seus capangas. ? O vira-lata havia explicado para mim de forma clara.
- Certo. Espero que não seja uma falsa pista. Se for, eu volto! ? Eu disse, dando uma última e curta rosnada antes de dar meia-volta e caminhar em sentido leste pela rua gélida.
- Não tem erro! Onderon talvez te ajude, meu jovem! ? O velho gritou pela última vez.
Apesar de eu ter ouvido o que ele disse, a suspeita falava mais alto. Porém, decidi seguir essa pista do mesmo jeito, pois afinal de contas, era uma pista. Era o que eu mais queria.
O que eu ainda não sabia no momento era que Onderon era como se fosse o líder de uma espécie de matilha que agia feito o que os humanos chamavam de máfia ou quadrilha... Ele tinha vários lobos ao seu serviço. Não dava para vê-los facilmente pela cidade por que eles circulavam livremente apenas de noite ou em nevascas mais extremas, para evitarem os caçadores. Durante o dia e/ou em nevascas mais calmas, eles perambulavam escondidos entre os prédios.
Eu caminhei durante alguns minutos pela rua cheia de neve. Não dava pra saber se era noite ou dia, mal dava para ver o céu de tanta neve que caia no chão. Mas prossegui sem olhar pra cima.
Não havia percebido isto primeiramente, mas notei que após alguns minutos de caminhada e alguns cruzamentos, parecia que a rua estava deserta, mas não era o caso. Eu estava sendo observado.
- (Seria outro vira-lata querendo encrenca?) ? Eu pensei.
Mas tudo levava a crer que não. Logo após eu ver um vulto passar na minha frente. Ele foi tão rápido que quase não havia percebido. Enfim, mais alguns minutos de caminhada. Um poste de luz ainda estava aceso, visto que os outros mal funcionavam direito. Aproximei-me e fiquei um pouco naquela luz. Passei a observar tudo ao meu redor, a fim de encontrar Onderon. Mas o que eu encontrei não foi ele...
O mesmo vulto passou pela rua, ao olhar dos meus olhos. Mas ele parou de repente, com uma salsicha na boca. O pelo era cinza. Patas firmes e grossas. Olhos laranja. Era um lobo, assim como eu.