Já deveria ser noite no mundo terreno, mas no inferno, isso não fazia a menor diferença. Não fazia muito tempo que Itaro havia abandonado a jovem novamente em seu quarto, trancafiada somente com suas ideias.
Sophie Crows ainda não sabia onde estava, exceto o fato de que estava em um dos diversos círculos infernais. Deitada sobre a cama, ela teve tempo o suficiente para criar teorias de onde poderia estar, ou qual era o propósito do death knight em trazer ela até aquele lugar. Nunca chegava a uma reposta que parecia lhe agradar.
Enquanto raciocinava, as mãos calejadas correram pelas regiões feridas. Queria verificar o estado dos machucados. A maioria, que antes se mostrava infeccionada, agora já estava bem tratado e começando o lento processo de cicatrização. Dentro de poucos dias Sophie já estaria em seu estado perfeito, ou não, pensou a jovem ao lembrar-se do motivo por ter caído.
Sua rápida recuperação fazia a jovem anjo caído, pensar em quanto tempo estivera em um período de hibernação. Afinal, pelo o que se lembrava de seu estado anterior, ele mal permitia que ficasse de pé, mas ao despertar naquele quarto pela primeira vez foi capaz de andar, e até mesmo ameaçar a daemon Agrelli.
Três dias se passaram, e durante esse tempo, a serva de Itaro, Agrelli, visitava a jovem Sophie constantemente para dar banho, alimentação, e os cuidados básicos as feridas. A daemon era calada, e nunca dirigia a palavra a Sophie, que aos poucos se acostumou com o silêncio novamente. Itaro não perturbou a obscuri nos dias que se passaram. Quando não foi mais necessário algo comestível, a jovem começou a receber as visitas de Agrelli somente ao anoitecer, ou ao menos o que ela julgava ser, pois dentro daquelas paredes, e em todo reino infernal, tempo não era algo visível ou muito menos palpável, para muitos, aquilo era apenas algo humano, e portanto algo desprezado pela maioria dos demônios.
Até que um dia, o death knight adentrou o quarto, e para a surpresa de Sophie, ele não usava a pesada armadura das outras visitas. Apenas uma simples roupagem negra, cujo provavelmente era a vestimenta que ficava por baixo da camada de metal e ossos.
- Como está se sentindo hoje? – questionou o demônio encostado na porta. Sua expressão era séria como na maioria das vezes. Os chifres bem polidos, e a face sinistra repleta de cicatrizes fazia a jovem pensar em como não havia percebido isso na primeira vez que vira Itaro. Talvez, estivesse cansada demais naquela ocasião para perceber.
- Bem... – murmurou desviando os olhos para o teto do quarto. Sua aparência deveria estar diferente, pensava, afinal era algo comum, anjos assumirem formas diferentes ao caírem. Mas Sophie ainda não havia se visto parar saber como estava. Porém, sentia que agora possuía chifres pequenos e torcidos nas pontas bem no topo da cabeça, unhas grandes e pontudas, assim como as orelhas que agora se assemelhavam a de elfos. As asas antes brancas eram o maior símbolo de orgulho para um anjo, ou para qualquer ser alado, e Sophie não era diferente, porém não raro era ver anjos caídos com asas feridas, negras, vampirescas, ou ainda sem a plumagem, e a jovem, tinha enorme medo de descobrir o destino que suas asas haviam recebido. Por esse motivo, desde que aqueles estranhos haviam retirado seu corpo do breu, e lançado-a a carroça, Sophie recolhera suas asas, e desde então, elas permaneciam constantemente escondidas na carne.
- Levante-se, temos coisas a fazer. Já descansou demais nos últimos dias.
Itaro saiu do quarto, deixando desta vez a porta aberta. Sophie finalmente poderia sair. Empolgada, mas sem querer demonstrar, a jovem seguiu o demônio ríspido. Ela trajava somente um simples vestido branco na altura dos joelhos. As pernas tremeram de inicio, pouco acostumada a corridas ou longas caminhadas.
Os corredores eram espaçosos e feitos de algo que lembrava a lava de um vulcão endurecida. Não havia janelas, ou sequer portas por onde eles seguiram. Aquilo se assemelhava mais a uma prisão solitária, pensou a caída ao lhe passar a ideia de que ela deveria ser a única criatura naquele lugar.
O andar onde se encontravam, deveria ser bastante alto, pois por mais grosas que as paredes parecessem, era possível ouvir uma forte correndo de ar, como se do lado de fora houvesse uma intensa ventania, um furacão talvez. Curiosa, os olhos de Sophie foram de encontro às costas de Itaro procurando por respostas, mas este seguiu em frente, como se nem ao menos se lembrasse da existência da menina demônio.
Ficaram longos minutos em silêncio, apenas descendo escadas deformadas como os corredores. Os degraus em espiral apenas faziam do trajeto mais demorado, e até mesmo cansativo para a enfraquecida Sophie, afinal, nos últimos dias, ou meses que haviam se seguido, ela apenas permanecia em repouso.
Quando finalmente a escadaria teve fim. A caída viu-se em um pequeno corredor sem saída. Este, em especial era mais escuro que os outros, pois não possuía tochas para iluminar o caminho. O breu não era problema para Itaro, que como demônio tinha a capacidade de enxergar através do umbral. Talvez, futuramente Sophie também pudesse usufruir de tais habilidades, mas ainda necessitava trabalhar seus novos poderes infernais. A jovem andava com cautela, apoiando-se nas paredes para ter certeza por onde caminhava. Os pés descalços sentiam o solo pedregoso com cuidado.
Repentinamente Itaro parou seguido pela jovem. A mão repleta de enormes garras foi estendida para cima, próximo ao rosto. Sophie observou uma faca na outra mão do demônio, em meio ao breu. O metal parecia cintilar. O objeto afiado cortou a palma amarelada, jorrando assim um pouco de sangue. A ferida então foi estendida a frente, e o sangue manchou a parede. Estranhamente, uma passagem se abriu, e a forte luz que veio a seguir, machucou os olhos de Sophie pelos poucos minutos novamente no escuro.
Sem dizer algo, Itaro voltou a andar. A obscuri precisou de alguns segundos para acostumar-se a luz semelhante ao pôr do sol. Quando ambos passaram pela nova porta, esta se fechou, e Sophie entendeu o que era aquele barulho de antes.
- Bem vinda ao Segundo Círculo. Lar dos luxuriosos.
Com as palavras do demônio, Sophie compreendeu aterrorizada onde estava. Já havia lido histórias sobre os Círculos do Inferno, mas nunca pensara que poderia ser algo assim.
Corpos nus eram arremessados logo à cima pelo furacão que os arrastava contra rochas, e o que estivesse à frente. Os seres frágeis tinham membros dilacerados ao baterem nos pedregulhos pontudas do prédio onde os dois demônios se encontravam anteriormente. Gritos desolados eram ouvidos, e sangue e partes de corpos arrancados, eram vistos no redemoinho de dor e sofrimento. No topo do gigantesco prédio, os olhos multicores da menina-demônio, avistaram seres estranhos de asas que pareciam ser os responsáveis por vigiar os moribundos. Ela não conseguiu distinguir suas aparências.
A atenção de Sophie foi desviada quando ela percebeu que Itaro havia retomado a caminhada. O death knight seguia em frente no mais profundo silêncio, ignorando sempre a presença da obscuri. Esta, por sua vez preferia não insistir em uma conversa. O tempo que passara no pequeno quarto, fora o suficiente para compreender que para o demônio, ela não passava de uma peça de xadrez, e preciosa ou não, ele não abriria mão de se livrar dela caso fosse necessário.
Mais adiante, Sophie observou um campo de treinamento. Ela acompanhou com os olhos o que pareceu dois demônios lutando ferozmente, e por um momento, a caída pensou que o mais alto iria matar o menor e de corpo mais roliço. Mas foi então que, para sua surpresa, o vitorioso demônio gargalhou, e estendeu a mão para cumprimentar o companheiro derrotado em combate.
- Eu quase consegui hoje, Yi Guak. – alegrou-se. Assim como Agrelli, a serva de Itaro, o pequeno era um daemon. O espírito de um poderoso guerreiro de Arkanum. Um planeta semelhante a Terra, porém, era um local onde a magia era algo comum, algo abundante. Por esse motivo, não raro era possível encontrar anjos, ou até mesmo demônios vagando por essa dimensão. O ambiente também era diferente, parecia ter parado no tempo, permanecendo assim constantemente na Idade Média, a época negra. Sophie, por exemplo, conhecia bem este lugar, afinal, ela mesma havia vindo deste mundo.
Quando o imponente Itaro foi percebido pelos demais, a pequenina captare notou que os guerreiros não eram os únicos no campo. Logo, um ser trajando uma túnica negra, que exalava mistério se juntou aos outros. Parecia que todos estavam ali, mas ainda faltavam dois. E qual não foi à surpresa de Sophie, quando ouviu uma voz feminina e afiada gritando ao corpulento demônio?
- Mais uma, Itaro? – exclamou a demônio que com belas, e enormes asas de morcego estendidas, permanecia em repouso sobre um dos vários galhos de um gigantesco carvalho apodrecido pela falta de nutrientes.
Ao seu lado, Sophie pode observar a silueta de um homem de bela aparência, porém com chifres e uma cauda esguia. Este parecia compenetrado em observar a recém-chegada.
- Meus assuntos não lhe dizem respeito, Sirenia. – sem humor algum, a resposta veio como uma navalha afiada. Em resposta a estranha sorriu divertida, e com um salto, amparada pelas asas, foi ao chão.
O outro desceu de mesma maneira elegante, mas antes de se juntar aos companheiros, tomou a mão da jovem Sophie para beijar-lhe.
- Muito prazer, bela dama. – sorriu. – Sou Lujah, mas chame-me como quiser, doçura. - e com o final do cumprimento, o rapaz deu uma piscadela antes de se afastar.
Sirenia, que a tudo assistia, rodopiou os olhos em sinal de desgosto.
- Você não perde tempo mesmo, em? – alfinetou.
- O que posso fazer? Essa é minha natureza como Incubi. – deu de ombros, satisfeito com sua casta demoníaca.
Tanto Lujah quanto Sirenia eram velhos conhecidos do tempo de vivos. Viviam na Terra em pleno século dezoito. Eram amigos de infância, porém, conforme cresciam seus caminhos distanciaram-se. A jovem seguiu para um colégio interno de freiras, vindo mais tarde a torna-se uma delas, e quanto ao rapaz, este se entregou aos prazeres da vida. Quando vieram a falecer, a moça seguiu para o céu, tornando-se uma tronos, uma casta de músicos celestes, enquanto seu colega, seguiu diretamente ao inferno. Quando a década de cinquenta surgiu, em uma de suas viagens ao mundo terreno, Sirenia deparou-se com um espetáculo que mudaria sua vida. Guitarras. O belo som do rock havia despertado sua atenção, e com isso, ela não tardou em trocar harpas, pelos magníficos instrumentos elétricos que muitos julgavam ser obra do próprio Satanás. Com isto, a tronos caiu de seu altar, tornando-se uma obscuri, assim como Sophie era neste momento.
A recém-chegada estava desconcertada pelo galanteio do demônio. Não esperava por tal feito, porém não teve muito tempo para pensar no assunto. Logo a voz grossa e autoritária de Itaro ecoou atraindo a atenção de todos.
- Conheçam a nova, e última integrante da equipe. – Quando ele percebeu o momento oportuno, não tardou a falar. – Sophie Crows, é uma obscuri captare. Quero que a tratem bem. – ouve então uma risada abafada por parte da maioria, porém Itaro ignorou voltando-se agora, a caída. – Yi Guak e Sirenia serão os encarregados por lhe mostrar o local e cuidar de ti.
A obscuri tronos bufou irritada com a sentença. Já o outro de nome incomum, sorriu maldoso apoiando a enorme lança que usava em combates no solo seco, e sem vida.
Yi Guak possuía pele vermelha como o sangue de seus oponentes que derramara sobre seu corpo quando um dia vivo. Era poucos centímetros mais alto do que Itaro, e visivelmente possuía mais massa muscular do que seu comandante. Porém, nem de longe era mais forte. Compartilhavam a mesma casta, sendo a criatura, assim um death knight. Seus métodos de treinamento eram tão, ou mais dolorosos do que os de Itaro.
- Pode deixar comigo. – gargalhou mentalmente o assassino de elite. Shion, o daemon acompanhou Yi Guak em seu raciocínio. Realmente, a novata era bastante azarada.
Com a resposta do pupilo, Itaro deixou o campo de treinamento, onde Sophie permaneceu apenas contemplando seus novos tutores. Ela não era tola, havia percebido bem o desgosto de todos com sua presença, ou até mesmo graça nisso, exceto por Lujah. Seu semblante agora estava sério, calmo, e atento. Não fraquejaria agora que chegara tão longe. Precisava seguir firme.
- Então você é aquela que chegou há dois meses. – comentou Shion, o companheiro de batalhas do novo mentor da jovem Crows. Era menor do que Itaro, mas sua aparência, de todos, era a que mais se assemelhava aos demônios que ela tanto ouvira falar no passado.
Não houve resposta, e Shion observou irritado, um a um, seus companheiros se afastarem para voltar as antigas atividades. Yi Guak retirou a lança do piso para brandir a sua própria frente. Ele parecia também não ter dado valor ao comentário de seu companheiro. Mesmo não demonstrando, Sophie havia absorvido o tempo em que estava naquele lugar. Já havia se passado tantos dias assim? Mesmo com tudo isso, a lembrança da morte de Allan, não lhe fugia a mente, estava sempre bem viva para lhe tirar as noites de sono.
- Muito bem, captare. – começou o maior com um leve tom de ironia em sua voz. – Vamos ver do que você é capaz.
A lança foi brandida e parou a poucos centímetros do pescoço da jovem que permaneceu fria, estável.
- Ouvi dizer que vocês são rápidos e precisos. – ele sorriu desafiador. – Sabe, sempre quis lutar com um desses. – confessou divertindo-se com a situação. – Rápido, pegue alguma arma de sua preferência e vamos iniciar a peleja. – grunhiu na excitação do momento. Seria uma batalha épica, pensava Yi Guak, a casta mais respeitada pelos celestes, contra um dos maiores matadores infernais.
Shion indicou com a cabeça uma espécie de estante feita de madeira velha, a qual mantinha diversos tipos de armamentos para uma boa luta. Alguns, os olhos de Sophie sequer reconheceram. Acostumada com laminas pequenas, porém precisas em mãos certas, ela não pensou duas vezes antes de escolher um par de adagas semelhantes em aparência às armas egípcias.
De frente para o inimigo, Sophie mal teve tempo para entrar em um modo defensivo, pois o veloz Yi Guak já havia partido para cima, e agora tentava desferir um golpe certeiro no peito da obscuri. Estava desacostumada com a luta, mas era preciso mais do que aquilo para machucar a bem treinada jovem. Com as adagas, e um movimento semelhante a uma dança árabe, as laminas juntas abraçaram por baixo o cabo da pontiaguda arma, e jogaram para cima, o corpo por sua vez, tratou de puxar as adagas para perto novamente, enquanto, o aparente frágil corpo de Sophie fazia quase uma ponte com a cabeça a centímetros do chão.
Quando o death knight empolgado, recolheu a lança, o corpo da jovem voltou ao normal para ser sua vez de investir. Entretanto, o movimento era algo previsível pelo experiente Yi Guak que lançou novamente a arma de encontro à caída, dessa vez havia sido mais rápido e preciso, e se não fosse pelo excelente reflexo da assassina em colocar ao menos uma das adagas ao lado do pescoço, repelindo assim o golpe, talvez ela já estivesse morta.
Sirenia, Lujah, e até mesmo Shion, mantinham certa distância, a fim de apreciarem a batalha. Porém não estavam tão empolgados quando o próprio death knight, apenas estavam entediados, a disputa parecia ser algo perfeito para lhes tirar de tal estado. O ser encapuzado de antes, encontrava-se sentado em um balanço a poucos metros da luta, não parecia interessada nas atitudes de seus companheiros.
- Boa defesa. – elogiou o sarcástico demônio.
Sophie não teve tempo para responder. Ela era a presa do caçador, e este não parecia querer deixar sua presa ter sequer um segundo de folga. Novamente, o ataque do inimigo veio mais rápido do que o esperado, porém, desta vez a jovem havia percebido uma coisa. A guarda estaria baixa se ela conseguisse fugir do golpe, e com outro movimento semelhante à dança, ela inclinou o tronco para frente com uma boa abertura de pernas. A lança passou reto, sem ferir. A adaga de maior lamina foi forçada a ir para frente, na tentativa de cortar uma das mãos que seguravam a arma pontuda, enquanto a menor, forçou a lança a ser atirada para longe, caindo assim no chão. Confiante de sua vitória, a pequenina sorriu. Porém, ninguém veio parabeniza-la ou algo do tipo, pelo contrário, Yi Guak abriu um sorriso de orelha a orelha maligno.
- Não deveria ter feito isso, pequena. – alertou o ser de pele avermelhada.
Mais veloz do que as investidas da lança, foi o soco direto na boca do estômago que Sophie recebeu. Um pouco de sangue foi expedido pela força da pancada. Sem dar trégua, Yi Guak assumiu uma base de arte marcial desconhecida pela jovem, e logo veio um chute direto em sua cabeça, jogando a face da menina contra o solo.
- Pobrezinha. - comentou Sirenia sem dar muita importância.
Outro chute veio em seguida, novamente no crânio, provavelmente com outra pancada desta, Sophie perderia a consciência, ainda estava fraca demais para ter aceitado um desafio de tal porte. Mas desta vez ela resistiu, observou com o rosto no chão, o death knight se preparar par outro chute, foi então que ergueu as lâminas para entrar na frente do movimento perfurando assim, o pé do novo inimigo, se funcionasse, seria um golpe bastante dolorido, já que ambos lutavam descalços, sentido o chão pedregoso e árido. Para infelicidade da jovem, Yi Guak havia percebido a investida a tempo de parar o chute após sentir a folha afiada da arma perfurar o inicio de sua pele. Aproveitando-se disso, Sophie colocou-se novamente de pé realizando um salto para trás. Estava novamente em posição de batalha. O demônio nada disse pelo golpe, mas pareceu alegrar-se com a persistência da recém-chegada.
Pondo-se em base, o perverso ser infernal não se importou com o pequeno corte. Desta vez, a obscuri estava mais atenta, ao menos se esforçava mais para isso. Não queria correr o risco de ficar novamente em um quarto como o de antes, onde Agrelli seria provavelmente sua única companhia.
Yi Guak avançou fitando um soco, e a mão de Sophie que portava a adaga menor não tardou a defender o falso golpe, isso porque o verdadeiro, veio em seguida na forma de outro chute no estômago, que por pouco não foi dependido pela outra adaga. Enquanto a caída esforçava-se ao máximo, o demônio nem sequer demonstrava cansaço ou suor. Tudo parecia uma brincadeira de criança para ele. E foi ao perceber isso, que Sophie entendeu que não conseguiria vencer assim, deveria escapar dos ataques, aproveitando-se do desleixo do adversário, em pensar que ela seria fraca demais para tal, e com isso aplicar-lhe um golpe fatal.
A obscuri captare preparou-se para o inicio de sua investida, enquanto seu adversário gargalhava divertindo-se com as tentativas de sua oponente. Ele novamente entrou na posição de luta, e desta vez avançou fitando um chute circular, porém Sophie não esperou para ser atingida por qualquer golpe de Yi Guak. Rápida, e precisa, ela foi pela lateral, convicta em acertar as adagas no demônio. Pela primeira vez, o death Knight de pele avermelhada, se viu em um momento perigoso naquela disputa. Ele sabia bem das habilidades dos captares em acertar pontos vitais, ou até mesmo pontos de pressão, e por esse motivo não podia se descuidar como estava fazendo, e foi assim que ele viu finalmente um ataque de sua adversária dar frutos. Sentindo-se satisfeita com a investida, um pequenino sorriso escorregou de seus lábios, orgulhosa.
Mesmo sem perceber, Sophie relaxou com a conquista de seu movimento, e quando percebeu era tarde demais. Sem entender como, seu corpo foi arremessado pelo ombro de Yi Guak. Com a força do golpe, rolou alguns metros no chão de cascalho seco, e teria desmaiado ao bater a cabeça no carvalho seco, onde um dos novos companheiros da jovem, descansava sentado em um balanço. Lujah havia surgido para amparar a caída, impedindo assim que a cabeça fosse atingida pela árvore.
- Acho que já chega. – observou o ríspido incubi com uma expressão facial, que raramente era vista. Sirenia logo veio lhe fazer companhia, rodopiando os olhos negros.
Shion bufou com a interrupção. Ele gostava de assistir as brigas de seu companheiro, porém, Yi Guak deu de ombros. Sabia desde o princípio que seria algo difícil para a caída acompanhar seus ataques, mas não devia negar que se divertira na curta pelega. Estaria esperando pela jovem, para que quando estivesse em seu estado perfeito, pudesse finalmente assim, ter a batalha que tanto sonhava contra um captare.
- Como está querida? – insistiu o galante Lujah, agora com Sophie em seus braços.
Aparentemente, apesar dos arranhões, e algumas áreas roxas, fisicamente ela estava bem. Porém, emocionalmente não. Já fazia muito tempo que a caída entrava em um assalto, para depois perder a batalha. Na Cidade de Prata, ela pensava que já havia passado por tudo, e, portanto seria imbatível, mas agora ela via que estava enganada. Ainda tinha muito que aprender.
Ela não estava satisfeita com a intromissão do demônio em sua briga contra o death Knight, mas não podia reclamar. Sabia que se continuasse poderia vir a falecer. A morte para seres infernais, ou celestiais era diferente para os mortais. Enquanto esses necessitavam de coisas terrenas, como comida para se sustentarem, um ser astral poderia ser morto apenas em combate, e quanto aos alimentos? Apenas em caso especial, onde a entidade estaria tão desgastada, que não conseguiria sobreviver, como no caso de Sophie dias atrás. Como ela havia sobrevivido, ainda era um verdadeiro mistério para ela mesma. Quando um ser divino falecia, sua vida simplesmente se extinguia, não era como os mortais, que tinham a esperança de ter vida após a morte.
- Pare com isso, Lujah. – Interrompeu Sirenia ajudando Sophie a sair dos braços do sedutor incubi. – Já lhe disse para parar de ser tão faminto. – reclamou ela passando as mãos irritadas pelo cabelo que descia em cascata até a cintura. – Venha comigo, garota. A obscuri tronos aqui irá cuidar de você.
Sem dar alguma chance de resposta para a recém-chegada, a mulher-demônio arrastou a jovem para algum lugar, afastado dos demais. Era um local silencioso, e provavelmente a única região onde seria possível encontrar uma nascente. Apesar da água límpida que passava por ali, o ambiente continuava sem vida, podre, e fedido.
- E então?
A voz feminina e divertida de Sirenia fez com que os olhos coloridos da captare fossem totalmente direcionados a nova companheira.
- Ahn? – absorta em seus pensamentos, foi tudo que a jovem conseguiu proferir enquanto piscava os enormes olhos em uma tentativa de prestar atenção na mulher-demônio a sua frente. Em resposta, Sirenia riu. Parecia ser uma ótima pessoa, pensou Sophie ao observar o comportamento da tronos.
- Como você caiu? – indagou enquanto sua atenção era dividida entre escovar os longos e emaranhados fios negros de cabelo da recém-chegada. Estava tentando ser gentil.
Sophie estava grata pelo carinho repentino que estava recebendo da companheira, mas aquele assunto... Era algo que ela não gostaria de falar, nunca. E se pudesse, apagaria aquelas lembranças de sua memória.
- Não quero falar sobre isso. – Buscando não ser grossa, ela apenas murmurou com o olhar distante, vago e melancólico. Percebendo isso, Sirenia preferiu não tocar novamente no assunto. Não era fácil para todos aceitar o fato de terem sido excomungados de seu próprio lar, naquilo que sempre acreditaram.
- Seus olhos... – Começou novamente a tronos, mudando completamente o rumo da conversa. – Tem uma cor exótica. – sorriu divertida. – Eu gostei.
As palavras de Sirenia eram sinceras, observou Sophie, mas o que tinha de tão interessante em olhos castanhos? Desde que nascera seus orbes sempre foram simples, comuns e talvez até sem graça se não fosse por Allan, que sempre dizia o contrário... Ah, Allan... Como ela sentia falta daquele anjo... Na época, inocente, ela nunca saberia o que sentia por seu colega, mesmo já tendo sido iniciada na vida graças a seu marido em vida. Mas agora, ela sabia bem o que sentia, e havia descoberto tarde demais...
- São comuns. – deu de ombros. – Itaro não possui olhos dessa mesma cor? – questionou com uma das sobrancelhas negras erguidas.
Atrás de si, ela pode ouvir uma sonora gargalha de deboche por parte de Sirenia, o que a deixou confusa. Afinal, o que tinha de tão engraçado em suas palavras?
- Itaro? Aquele bode velho? – riu novamente. – Se ele tivesse olhos de duas cores, pode ter certeza que eu lembraria.
Duas cores? Querendo confirmar o que a mulher afirmava, Sophie dirigiu seu olhar para o reflexo na pequena nascente, e então viu finalmente como seu corpo se encontrava após sua queda.
Os cabelos negros continuavam maltratados desde sua estadia no comboio da carroça, a pele clara, agora estava suja e levemente machucada graças à peleja com Yi Guak, as unhas antes sempre pequenas, estavam grandes e afiadas, elas pareciam fortes o suficiente para dilacerar a vida de alguém. Os cifres no topo de sua testa, eram pequenos e curvados para trás, como os de um bode, e suas orelhas, como já havia descoberto ao toque, agora eram pontudas. Mas sem dúvida, o que mais surpreendeu a jovem, fora descobrir que seus simples olhos castanhos, haviam se convertido em algo totalmente diferente. O direito assumia uma cor esverdeada, enquanto o esquerdo contentava-se com um roxo que beirava um tom púrpura.
- Como... Como isso pode ser possível? – murmurou para si, porém Sirenia escutou, e desta vez comportou-se com certa indiferença perante o comportamento de Sophie.
- Não precisa ficar tão impressionada. Tivemos sorte em ficarmos assim, muitos de nós perdem completamente a feição humana ao tornarem-se demônios. – deu de ombros voltando a alisar os cabelos da menina-demônio com as mãos. – A propósito...
A atenção da jovem novamente se voltou a tronos.
- Seu cabelo esta horrível. – com o comentário veio uma careta por parte de ambas. Sophie tinha que concordar, seu cabelo não tinha mais a beleza que tivera tempos atrás. – Mas não se preocupe... – Um sorriso divertido surgiu nos lábios afiados – A mamãe aqui sabe como arrumar isso.
(...)
Cidade de prata. Uma das mais magníficas cidades dentre os reinos celestiais de Paradísia. Dizia à lenda que, Deus havia criado tal glorioso local no segundo dia de sua criação. Os prédios e demais construções possuíam uma tonalidade prateada de pura luz, o que justificava bem o nome do reinado.
Millany Lyric, uma nimbus de longos e sedosos cabelos loiros, movia-se apressada, sem tempo para apreciar a beleza da cidade que lhe abrigara desde seu nascimento. Diferente da grande maioria dos anjos era impossível um mortal, ao morrer tornar-se membro desta casta. Isso porque, eles já nascem nimbus. Eles são facilmente reconhecidos por suas auréolas no topo de suas cabeças. E a de Millany, era diferente das demais. Lembrava uma pequena coroa envolta por pedrinhas brilhantes multicoloridas que estavam sempre cintilantes ao entrarem em contato com a luz do sol.
No passado, a mulher-anjo havia cometido o erro de convencer alguns reciperes a encaminhar Sophie Crows para a casta dos captares. Na época, ela tinha certeza de sua escolha, sabia que a jovem seria uma grande peça no xadrez celestial, e ainda possuía essa mesma crença, porém, desde que a jovem de cabelos negros caíra, Millany havia perdido toda sua credibilidade frente aos seus companheiros, e agora pagava por isso.
- Nossa convidada finalmente chegou. – uma voz masculina, exalando ironia preencheu o espaçoso gabinete, onde cinco anjos de castas distintas residiam no momento. Millany era a sexta.
O anjo que iniciou o cumprimento, assim como a mulher-anjo, era um nimbus. Mais novo e menos experiente do que ela, porém, era o favorito do conselho. Diziam que ele era promissor, e a frente dele, apenas Millany estivera tempos atrás. Portanto, não havia sido nenhuma surpresa quando Sophie fora expulsa dos céus, e aqueles que apoiavam o companheiro da nimbus, fizeram de tudo para aumentar as possíveis desavenças contra ela, fazendo assim com que o outro ocupasse seu cargo.
- Não me venha com piadas, Jiro, sabe que não estou aqui para brincadeiras. – ríspida como sempre fora, Millany não demonstrava bom humor, e ignorando o teatral nimbus que se posicionava a sua frente, a fim de falsamente aconchegar a mulher em um abraço de discórdia, ela passou reto, indo assim de encontro a uma mesa circular branca onde os outros quatros se encontravam.
Apesar de ter sido deixado de lado, Jiro Densetsu, um anjo de belas feições e enormes cabelos castanhos sempre presos por uma trança, sorriu divertindo-se com o que estava acontecendo. Millany era acostumada a ser sempre calma e controlada, mas parecia que nem ao menos isso ela podia fingir na frente dos demais. Refletiu voltando-se ao coro angelical.
Uma pequenina de apenas um metro de altura planou suavemente até aproximar-se de seu amo, Jiro. Os longos cabelos loiros caiam em cascata, eram banhados em belas mechas onduladas. Aparentemente, possuía apenas oito anos de idade, e graças as suas feições andrógenas, e pouca idade em aparência, era óbvio ao olhar que a pequena era apenas uma doce querubim.
Jiro acariciou levemente as madeixas da jovenzinha antes de se juntar ao coro. Foram juntos, e assim sentaram em seus devidos lugares.
- Lirah. – chamou o nimbus confortando-se em seu trono improvisado, cujo diferente dos demais assentos, possuía almofadas vermelhas. – Toque para nós.
Lirah era uma tronos, assim como Sirenia havia sido. Era uma jovem de curtos cabelos loiros levemente ondulados, os olhos possuíam uma tonalidade azul claro, ao mesmo tempo em que pareciam se confundir com uma luz clara que exalava deles. Sua expressão era serene e conformada com sua posição, assim como era comum ver no rosto da maioria dos tronos.
Delicadamente, Lirah levantou-se após assentir suavemente ao mestre da residência. Logo ao lado da mesa, existia uma enorme, porém delicada harpa banhada em ouro e prata. As cordas pareciam cintilar ao contato com a luz do ambiente, dando assim a impressão que essas deveriam ter sido feitas com o mais refinado dos ouros. No corpo do instrumento, havia diversos detalhes talhados à mão pela própria Lirah, onde desenhos de flores exóticas, juntamente com estrelas eram facilmente encontradas.
Os dedos delicados percorreram suavemente cada corda preciosa da harpa, cuja havia sido carinhosamente batizada de Tsuki, lua em japonês, afinal, este era um idioma pelo qual simpatizava. A maravilhosa melodia preencheu o resinto, e logo após a introdução, a voz melódica da tronos completou a magnífica oração em forma de canção.
Como em todas as vezes que assistia Lirah deslizar os habilidosos dedos pelo corpo da harpa, Millany deixou sua mente se levar pelo incrível momento. Deixou seus problemas esvaírem, apenas contemplava o presente. Quando a música teve fim, Jiro e sua companheira de casta foram os primeiros a aplaudir tal belíssimo som. Agradecida, ao mesmo tempo em que se encontrava constrangida, Lirah retornou ao seu assento. Era uma moça simples, jovem demais, e tímida. Apesar do visível talento que tinha, não gostava de sentir os olhos de tudo, e de todos sobre seu corpo.
- Agora que fomos agraciados com a exuberante canção de Lirah, sinto que podemos começar. – anunciou Jiro ao lado da pequenina querubim, Aury.
- Sim. – concordou outro finalmente pronunciando-se perante a pequenina reunião. Este era desconhecido aos olhos de Millany, mas pelo brasão que carrega sobre suas túnicas, presumiu que seria um recipere. – Estamos atrasados demais com este jogo, e nosso caro adversário, já realizou sua primeira jogada.
A cima da mesa era possível observar um tabuleiro de xadrez de quadros brancos. Porém não era um objeto comum, era uma relíquia, e como tal, inclusive suas peças eram diferentes. A mesa circular era o campo do jogo. Possuía menos peões do que deveria assim como outras peças. O recipere fitava o tabuleiro com toda a concentração possível, e impossível. Seus olhos eram apenas pupilas em constante brancura, assim como os enormes cabelos. Algo em sua postura, modo de agir e inclusive pronunciar cada palavra, incomodou Millany. Aquele anjo era diferente. Observava o xadrez, como se sua vida dependesse disso, e de repente ocorreu a Millany que não somente a vida do observador dependia daquele procedimento, mas a vida de todos aqueles presentes naquela sala.