Vivia então em Paris essa Mlle de Scudery, tão digna de ter talento, porque era virtuosa: a braços com a miséria, recorrera ela à pena, e a pena lhe havia dado prodigiosa reputação: suas obras, hoje tão rebaixadas, suas novelas de dez volumes, sua carta geográfica dos estados da ternura, mereciam a admiração dos contemporâneos, e nesse tempo florescia Corneille, começavam a surgir Boileau e Racine, esse luzeiros da literatura! Que tamanho intervalo!
Qualquer, porém que fosse sua capacidade literária, era Mlle de Scudery geralmente amada dos pobres, porque, como eles, era pobre e vivia de seu trabalho, achando no entanto sempre um bocado de pão para repartir com algum mais do que ela miserável; dos riscos, porque, modestia e reservada, não era obstáculo a suas pretensões, e não lhes disputavas os régios favores; do monarca, porque sabia dar à sua conversão todo o enlevo necessário para dissipar os amargos pesares da realeza, sem que pusesse preço a suas joviais palavras; era, enfim, de todos, desde o rei até o mais corrupto cortesão, estimada e respeitada, porque era virtuosa.
Sem família, sem filhos em que se ocupasse, a sensibilidade de Mlle de Scudery havia-se toda concentrado no interior do lar doméstico: em outras tempos, tinha tomado para sua companhia uma pobre menina, Ana Guiot, casada com um oficial relojeiro: doce amizades as prendia, e suavizava a dependência da protegida. Tinha ela tido um filho; Mlle de Scudery serviu-lhe de madrinha: tornou-se esse menino o elo que mais fortemente as prendeu, porque foram ambas mães de Oliveiro, e no colo de Mlle de Scudery tantos beijos, tantos afagos recebia como no de Ana Guiot.
Perturbou a miséria essa tranquila existência: o marido de Ana, não achando quem em Paris quisesse ocupar sua habilidade, tratou de retirar-se para genebra, sua pátria. Bem desejava Mlle de Scudery sustentar toda a família de seu Oliveiro; não lho consentiu a pobreza, que são minguados, todos o sabem, os lucros da pena, mesmo quando o talento inspira.
Bem doloroso foi para o coração de Mlle de Scudery o dia que amanheceu, sem que viesse despertá-lo os afagos de Oliveiro. No entanto, o tempo havia corrido, vinte anos eram passados, e, na nova criada que havia tomado, achara Mlle de Scudery a afeição de amiga, o desvelo que sua bondade merecia; assim havia ela esquecido Ana Guiot e seu filho.
Reinava então, em França, esse rei a quem a posteridade confirmou o título de grande, que lhe fora dado pela adulação, porque foi seu trono rodeado de brilhante auréola de glória, porque protegeu letras e armas, indústria e comércio; porque teve ministros Colbert e Louvois. Era uma corte inexplicável essa de Luís XIV: apesar da barbaridade das Dragonadas, da revogação do edito de Nantes; apesar da jesuíta influência do confessor do rei, e da devoção hipócrita da favorita, versos e amores eram quase virtude, de versos e amores quase tudo conseguiam.