A Clandestina

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    12
    Capítulos:

    Capítulo 1

    Capítulo Um

    Álcool, Nudez

    Eram onze horas. Rin olhou para o relógio e percebeu que a mãe não viria. No fundo ela já sabia disso. Apesar das promessas, para a famosa Kaoru Yang, nem mesmo o noivado de sua única filha era uma ocasião suficientemente especial para merecer sua presença.

    Há algumas horas, Rin tinha recebido um telefonema do teatro, avisando que o ensaio da nova peça que sua mãe ia estrelar estava um pouco atrasado, mas que ela não deixaria de ir, mais tarde. Isso não aconteceu. Nunca acontecia! Rin já ouvira o mesmo tipo de desculpa centenas de vezes: no dia das mães, quando esperou para compartilharem um passeio há muito prometido, e, principalmente, nas vésperas dos feriados. Tudo era cancelado no último momento! Quando criança, ainda chorava por horas, mas, na adolescência, só o brilho dos seus olhos traía a mágoa causada pelo comportamento da mãe. Mesmo agora, aos dezenove anos, quando já deveria estar acostumada a essas decepções, se sentia ferida.

    Sr. Hiroshi - Acho que essa dança é minha, meu bem.

    *O senhor Hiroshi, pai de Miroki, segurou Rin pelo cotovelo, levando-a para a pista de dança.*

    Sr. Hiroshi - É uma pena, mas acho que sua mãe não conseguiu vir. Também, ela é uma profissional tão dedicada! Poucas mulheres deixariam de comparecer à festa de noivado da filha pelo bem da arte!

    Rin -É, *Rin concordou com secura* bem poucas seriam capazes disso.

    Sr. Hiroshi Vocês já chegaram a um acordo sobre a data do casamento?

    Rin tentou concentrar sua atenção no Sr. Hiroshi . Afinal, não era culpa dele se sua mãe a tinha desapontado no dia mais importante da sua vida. Além disso, ele e a esposa haviam sido muito atenciosos, inclusive alugando aquele clube às margens do Tâmisa, para comemorar seu noivado com Miroki.

    Rin - Não. Mas estamos pensando em marcar para setembro.

    Sr. Hiroshi - Esplêndido! Quatro meses não é tempo demais para vocês esperarem, e vai dar para fazermos todos os preparativos com calma. *Ele hesitou por um momento, antes de limpar a garganta e acrescentar:* Será... será que não daria para você perguntar à sua mãe se podemos nos encarregar de todos os preparativos para o casamento? Da última vez que nos vimos, Kaoru me contou que é muito ocupada, e que mal tem tempo para ela mesma fora do teatro. Se ela concordar, só deverá se encontrar conosco uma ou duas vezes para dizer que tipo de festa quer, quem deseja convidar, e outras coisinhas desse tipo. O resto fica por nossa conta. Será um prazer evitar que sua mãe tenha qualquer aborrecimento com esses preparativos.

    Que Kaoru ia achar aborrecido ter que se dedicar aos preparativos para o casamento da filha não havia a menor dúvida!, Rin pensou, cada vez mais amargurada. Mas a voz animada do Sr. Hiroshi exigiu sua atenção de novo.

    Sr. Hiroshi - E também precisamos pensar no seu pai... ele está na América, não?

    Rin -Está, sim. Ele se mudou definitivamente para os Estados Unidos.

    Sr. Hiroshi - Você precisa me dar o endereço dele para eu poder lhe escrever. Na certa ele vai querer conhecer nossa família, saber quais são as perspectivas de Miroki, essas coisas. Além disso, quero que seu pai saiba que teremos o maior prazer em hospedá-lo quando ele vier para o casamento.

    Rin agradeceu, quase certa de que seu pai, que não via há muitos anos, não iria se dar ao trabalho de vir de tão longe para assistir ao seu casamento.

    Quando a musica terminou, Miroki foi buscá-la levando-a para conhecer alguns de seus amigos dos tempos de escola. Logo foram interrompidos por um garçom oferecendo champanhe. Quando todos estavam servidos o Sr. Hiroshi se levantou e fez um discurso dizendo o quanto estava feliz por receber Rin na família. Depois, propôs um brinde aos noivos.

    Então foi a vez de Miroki falar, o que ele fez após duas ou três recusas e vários gritos de encorajamento por parte dos convidados. Segurando a mão esquerda de Rin, onde brilhava um solitário, ele começou com um "minha nossa, vocês me pegaram totalmente desprevenido!", continuando com um ótimo discurso "improvisado".

    Rin viveu muito tempo entre atores para não reconhecer uma fala decorada. Observou o noivo com atenção: alto, moreno, simpático e muito rico, tinha muito orgulho de si mesmo. Sem muito esforço, ele havia conseguido da vida tudo o que queria.

    Houve uma salva de palmas quando Miroki terminou, e então alguém deu a Rin outra taça de champanhe, para que eles pudessem brindar um ao outro. Miroki sorriu afetuosamente enquanto brindava, e Rin tentou fazer o mesmo, mas não conseguiu.

    O resto da noite Rin passou dançando com homens que mal conhecia, conversando com mulheres que nunca tinha visto, sorrindo polidamente, ouvindo os pais de Miroki citar várias vezes os nomes de seu pai e de sua mãe, e bebendo um número suficiente de taças de champanhe para não se importar com mais nada.

    Sentindo um braço rodear sua cintura, Rin virou-se e deu com Miroki a seu lado.

    Miroki - Vamos dançar *disse ele possessivamente*.

    Obediente, ela terminou de beber o champanhe e seguiu-o até a pista. Lá, ele a abraçou com força, fazendo-a tropeçar e se agarrar em seus ombros para não cair, rindo muito.

    Miroki - Todos os meus amigos estão me perguntando quando vamos nos casar *Miroki murmurou, rindo também. Seu rosto estava corado e Rin sentiu cheiro de uísque em seu hálito.* mas eu lhes disse que isso era apenas uma formalidade. Afinal, quem espera até o casamento hoje em dia?

    Rin - Miroki! Você não precisa ficar falando nisso para todo mundo, precisa?

    *Ele riu de novo e a beijou desajeitadamente no rosto.*

    Miroki - Mas ainda não existe nada para eu falar, existe?

    Neste momento, a música ficou mais rápida, as lâmpadas se apagaram e luzes psicodélicas passaram a iluminar o ambiente. A maioria dos convidados invadiu a pista de dança e Rin girou no meio da multidão que dançava, até Miroki segurar seu braço e puxá-la para fora da pista.

    Miroki - Venha, vamos sair daqui.

    Pegando uma garrafa de champanhe e duas taças de uma mesa vizinha, ele a puxou na direção das portas do jardim, que se abriam para um gramado que descia suavemente até a margem do rio. Já havia um ou dois casais por lá, acariciando-se na escuridão, e Miroki deu a volta no prédio, caminhando para o estacionamento.

    Rin - Espere! Para onde estamos indo?__ Rin estava achando difícil acompanhá-lo de salto alto.

    Miroki - Para meu carro. Venha!

    *Ela parou e tentou escapar dele.*

    Rin - Mas Miroki, não podemos! Todos vão notar!

    Miroki - Não, não vão. Estão muito ocupados dançando. E se notarem, o que é que tem?

    Rin - Tem que essa é a nossa festa de noivado, e não podemos ir saindo assim, sem mais nem menos.

    Miroki - Nós só vamos sair por cinco minutos, querida *ele tentou convencê-la, passando o braço por sua cintura*. Não ficamos um segundo sozinhos a noite inteira! Eu ainda nem pude lhe dizer o quanto você está bonita!

    Rin - Oh, está bem! Mas só por cinco minutos, heim?

    Miroki - Claro!

    Chegaram ao Cadillac azul que seus pais tinham lhe dado no ano anterior. Lá dentro, ele abriu o champanhe, rindo com Rin quando a rolha bateu no teto e a bebida espumante esguichou, molhando-os um pouco.

    Miroki -A nós! *brindou* Vamos, beba tudo de uma vez!

    Rindo muito, Rin fez o que ele queria. Mal terminou, Miroki tirou a taça de suas mãos e colocou-a no chão. Depois, abraçou-a e começou a beijá-la possessivamente, ao mesmo tempo que tentava descer as alças de seu vestido. Quando conseguiu, procurou imediatamente seus seios bem-feitos, cobrindo-os de carícias desajeitadas. Rin retribuiu o beijo, deixando-o fazer o que queria, até que ele apertou um de seus seios com mais força, machucando-a.

    Rin - Pare com isso, Miroki! *disse então, empurrando-o* Você me prometeu que só íamos ficar fora cinco minutos.

    Miroki - E não faz nem dois que estamos aqui. Venha, vamos beber mais um pouco de champanhe.

    Eles beberam mais uma taça, antes que Miroki começasse a acariciá-la de novo. Rin sentia a cabeça estranhamente leve, e dessa vez não protestou quando ele levantou sua saia e acariciou suas pernas. Pouco depois, Miroki parou novamente, a respiração pesada. Servindo-se de outra taça de champanhe, bebeu-a de um só gole, insistindo para que ela o acompanhasse.

    Rin - Não quero beber mais.

    Miroki - Quer, sim. Você não bebeu nada até agora! O melhor é acabarmos com essa garrafa.

    *Pedindo e ordenando, ele a fez beber mais duas taças. No fim, Rin mal conseguia enxergar o painel do carro.*

    Miroki - Rin... Oh, minha querida, você é tão meiga! Eu te amo tanto!

    *Suas mãos pareciam estar em todo lugar, e Rin soltou um gritinho quando ele abaixou o banco e deitou-se sobre ela.*

    Rin - Não, Miroki, não!

    Ela tentou protestar quando Miroki levantou sua saia até a cintura, mas sua voz parecia estar entalada na garganta, e suas mãos não tinham a força necessária para empurrá-lo. Quando ele tirou suas roupas de baixo e tocou-a com mais intimidade, Rin gemeu baixinho. Por um momento, uma onda de sensualidade a invadiu fazendo-a parar de lutar. Mas voltou logo a si e, com um violento "Não!", sentou-se, empurrando-o.

    Rin - Se você não me largar, vou gritar até ficar rouca! *ameaçou, numa voz cheia de pânico.*

    Miroki - Ora, vamos! Você também quer *Miroki insistiu, tentando beijá-la de novo*.

    Rin - Não, eu não quero! Fique longe de mim!

    Miroki -Pelo amor de Deus, Rin! *ele se sentou, alisando os cabelos nervosamente, enquanto Rin arrumava suas roupas.* Você me prometeu que assim que ficássemos noivos...

    Rin - Mas não no meio da nossa festa de noivado! *Rin disse, zangada.* E muito menos no banco de um carro!

    Miroki - Bem, se é isso que a preocupa, podemos descer até o rio. Existem uns arbustos por lá, e não seremos vistos por...

    Rin - Não! *ela estava furiosa.* Será que você não entende? Eu não quero fazer isso agora!

    Miroki -Quer, sim. Você sabe que quer! *começou a beijá-la de novo, no rosto e no pescoço, ao mesmo tempo que suas mãos quentes acariciavam seus seios.*

    Rin -Solte-me! *Inutilmente, Rin tentou empurrá-lo. Mas ele era forte demais!*

    Miroki -Por favor, Rin, por favor! *com a respiração quente e cheirando a álcool banhando o rosto dela, ele começou a levantar-lhe a saia novamente.* Eu a desejo tanto! Eu a amo também, de verdade! Você não me ama?

    Rin - Você sabe que sim., Miroki!

    Miroki - Então, prove!

    Rin - Não, aqui não! Desse jeito, não!

    Miroki - É só esta vez! Na próxima eu lhe prometo que faremos tudo direitinho, em uma cama.

    Rin - Não! Você não tem sentimentos?

    Mas Miroki se recusava a ouvir e, usando de toda sua força, obrigou-a a deitar-se novamente. Soluçando de medo e raiva, Rin percebeu que não seria capaz de afastá-lo, por mais que o socasse e empurrasse. Mesmo assim, não desistiu! Assustada e com lágrimas correndo pelo rosto, continuou lutando para se livrar dele. De repente, Miroki se levantou e ela respirou aliviada, certa de que ele tinha ouvido seus protestos e voltado à realidade. Mas logo viu que não: ele havia se afastado apenas para poder se despir.

    Em pânico, Rin procurou a maçaneta da porta, puxou-a e quase caiu para fora do carro, largando um dos sapatos para trás.

    Miroki - Rin, espere! O que está fazendo?

    Miroki tentou detê-la, agarrando-a pelo vestido e puxando-a com violência. Rin resistiu, apelando para as forças que ainda lhe restavam, e a costura lateral de sua roupa cedeu, rasgando de alto a baixo. Soluçando de medo, ela correu para fora do estacionamento. O sapato que ainda usava dificultava sua fuga, e ela teve que parar para tirá-lo, sentindo o coração bater forte no peito. Descalça, atravessou em disparada a grama macia, evitando os lugares iluminados, procurando a escuridão da margem do rio, onde poderia se esconder nos arbustos.

    Mal tinha se abaixado entre a folhagem, quando ouviu a voz de Miroki chamando por ela. Ele ainda estava a alguma distância, provavelmente perto do estacionamento, ela calculou, imaginando o que o fez demorar tanto. Foi então que sentiu uma vontade louca de rir. Miroki tinha sido literalmente pego com as calças na mão! Apressadamente, mordeu os lábios para sufocar o riso.

    Logo a vontade de rir foi substituída pelo medo, quando lembrou que Miroki tinha sugerido que fossem fazer amor exatamente no meio daqueles arbustos. Era ali que ele iria procurá-la em primeiro lugar, e não seria difícil localizar seu vestido branco entre a folhagem escura.

    Desesperada, Rin olhou em volta, procurando outro lugar para se esconder. Algumas luzes estavam acesas nos barcos que flutuavam no rio, mas sua cabeça girava e elas se misturavam com as estrelas que brilhavam no céu. A maré devia estar alta, pois dava para ouvir o barulho da água batendo nas margens do rio, e a idéia louca de entrar num barquinho e remar até o outro lado veio-lhe à mente. Rastejando até a beira da água, ela tateou o chão à procura de uma corda ou de qualquer outra coisa que servisse para amarrar uma embarcação. Foi nesse momento que seu braço tocou num espinheiro, fazendo-a dar um grito de dor.

    Miroki - Rin? Rin, é você?

    A voz de Miroki , muito mais perto do que ela esperava, fez com que se levantasse assustada e corresse para o lado oposto, empurrando os galhos que estavam em seu caminho, arranhando os braços ao tentar proteger seu rosto. Respirando com dificuldade, Rin avançava tropeçando. Uma exclamação de pavor escapou de seus lábios, quando ouviu os passos de Miroki se aproximando.

    Virou a cabeça rapidamente para ver se o localizava, mas o movimento fez sua cabeça rodar como se estivesse solta no espaço. Por um momento, seu corpo oscilou, quase caindo. Atordoada, com as estrelas dançando loucamente no céu, ela esticou os braços para se firmar, dando um passo para trás. Mas seu pé não encontrou nada em que pudesse se apoiar, e com um grito de surpresa e pavor, Rin caiu no rio.

    O barulho de seu corpo na água, chamou a atenção de Miroki.

    Miroki - Rin? Onde está você?

    Tossindo e respirando aos trancos, ela voltou à superfície e se agarrou à uma raiz presa à margem lamacenta do rio.

    Rin - Miroki! socorro!

    A água estava tão fria! E a correnteza era forte. Rin podia senti-la puxando seu corpo que pesava cada vez mais, por causa do cansaço e das roupas molhadas.

    Miroki - Rin? Sua idiota! Por que fugiu de mim? Vamos, segure minha mão, que eu puxo você para fora. *Ele se inclinou para ela, mas o barranco era alto e, por mais que tentasse, Rin não conseguiu alcançá-lo.*

    Miroki - Vamos! *Impaciente, ele inclinou-se mais um pouco.* Tente subir por essa raiz!

    Rin - Estou tentando. Mas ela é lisa, e meu vestido está muito pesado. Meu Deus, que frio!

    Rin tentou apoiar os pés no barranco para subir. Foi então que com um barulho horrível e no meio de uma chuva de pedras e lama, a raiz se desprendeu e despencou no rio.

    Rin afundou e sua boca se encheu daquela água suja e oleosa. Tossindo e cuspindo, voltou à superfície. Vagamente, ouviu a voz de Miroki gritando seu nome, mas estava muito escuro e era impossível enxergar qualquer coisa. A correnteza estava ainda mais forte, não permitindo que ela voltasse para a margem e, agarrada à raiz, ela foi arrastada rio abaixo.

    Rin já estava meio afogada quando algo bateu em seu braço e ela percebeu que a raiz tinha se emaranhado em alguma coisa. Usando toda a força que ainda lhe restava, agarrou o grosso fio de náilon e tentou sair da água. Mas a correnteza puxava suas pernas para o fundo. Ela notou que a corda estava presa à um barco e gritou por socorro. Mas ninguém veio ajudar.

    Com os braço doendo pelo esforço que fazia para não ser levada, Rin gritou de novo, a voz histérica de medo. Então, por um breve momento, as nuvens descobriram a lua e ela viu uma escadinha presa na amurada do barco. Se conseguisse chegar até lá! Eram só dois ou três metros, mas para isso teria que soltar a corda e nadar contra a correnteza. E se depois que largasse a corda, não conseguisse alcançar a escada...

    Rin estremeceu e gritou por socorro de novo, a voz fina e estridente, mas ninguém apareceu. Suas mãos deslizaram alguns centímetros pela corda molhada e ela percebeu que se não tentasse nadar naquele momento, perderia as forças e não teria mais chance de chegar à escadinha. Com muito medo, largou a corda e começou a nadar.

    Sua mão esquerda tocou no último degrau e deslizou por ele, sem conseguir agarrá-lo. A correnteza começou a puxá-la para o meio do rio, mas então, sua mão direita se fechou em torno de uma quina do barco e Rin conseguiu voltar, segurando-se com firmeza na lateral da escada. Só quando sua respiração se acalmou um pouco, é que teve forças para subir e pular a amurada.

    As luzes verdes e vermelhas de sinalização davam ao convés um ar fantasmagórico, mas iluminavam o suficiente para Rin ver a porta que levava aos camarotes.

    Tremendo de frio, ela bateu na porta e chamou, mas não recebeu resposta. O barco devia estar vazio. Desanimada, empurrou a porta e viu, surpresa, que não estava trancada. Sem pensar duas vezes, entrou e ascendeu as luzes, descobrindo um grande salão, que tinha uma escada nos fundos, que levava ao convés inferior, onde ficavam a cozinha e os camarotes. Ela não entendia muito de barcos, mas estava certa de que devia haver um banheiro em alguma parte, onde poderia arranjar uma toalha e se secar.

    O banheiro ficava depois dos camarotes, e foi com alívio que o encontrou, tirando o que restava de seu vestido, as calcinhas e o sutiã rasgado. Jogou tudo num canto e se enrolou numa toalha grande e macia, começando a se esfregar vigorosamente. Parou alguns minutos mais tarde para tirar o pingente, que tinha se enganchado na toalha, e aproveitou para tirar a pulseira, os brincos e o anel de noivado. Como gostaria de poder jogá-lo na cara de Miroki!, pensou ressentida. Aquele estúpido! Tomara que ele ainda estivesse procurando por ela, louco de preocupação.

    Colocando as jóias sobre a pia, Rin levantou os olhos e viu-se no espelho. Deus, como estava horrível! Os cabelos todos emaranhados, e os olhos estavam vermelhos por causa da água do rio. O rímel tinha escorrido, deixando-a com enorme olheiras pretas, e um lado de seu rosto estava arranhado. Infeliz, ela se examinou durante mais alguns momentos, observando o próprio rosto.

    De repente, o mundo começou a girar e ela se agarrou à pia, lutando para não vomitar. Nossa, como estava cansada! Que frio! Não podia continuar ali. Tinha que procurar alguém que a ajudasse, que lhe desse algumas roupas secas.

    Embrulhada na toalha, percorreu cambaleante o resto do barco. Só o camarote dos fundos parecia estar sendo ocupado. A cama de baixo do beliche estava arrumada, havia alguns livros em uma estantezinha presa à parede e o armário continha várias peças de roupa masculina. Com a cabeça pesada, mal conseguindo ver o que tinha à frente, Rin soltou a toalha e deitou-se na cama, encolhendo-se sob as cobertas quentes e macias. Um minuto depois estava profundamente adormecida.

    Sua primeira sensação, ao acordar, foi de uma terrível dor de cabeça. Seus lábios e garganta estavam secos, e o estômago totalmente embrulhado. Gemendo e piscando por causa da claridade do abajur, ela tentou se sentar. Mas foi um erro, pois sua cabeça quase explodiu de dor, e o estômago ficou ainda pior.

    Depois de algum tempo, a dor de cabeça cedeu um pouco e ela entreabriu os olhos. Percebendo imediatamente que não estava em casa, olhou em volta, examinando melhor o lugar onde estava. Era um barco. Paredes revestidas de madeira, um tapete vermelho escuro que combinava perfeitamente com a cortina um pouco mais clara sobre a escotilha. Tudo tinha um aspecto limpo e novo, e um leve cheiro de verniz pairava no ar. Tentou lembrar o que acontecera, mas sua cabeça logo começou a latejar de uma forma alucinante, e ela desistiu.

    Agora que estava sentada, o brilho da lâmpada parecia pior, por isso resolveu apagá-la. O alívio foi imediato, e depois que seus olhos já tinham se acostumado à penumbra, percebeu que uma réstia de luz passava entre as cortinas. Curiosa, ajoelhou-se na cama e espiou pela escotilha.

    Lá fora havia uma infinidade de barcos, alguns realmente enormes, cargueiros. A maioria estava ancorada, mas dois ou três se movimentavam ao longo de um canal, puxados por rebocadores. Certa de que estava sonhando, Rin fechou os olhos por alguns segundos. Mas quando os reabriu tudo continuava do mesmo jeito, e um grande barco, com o emblema inglês e as palavras DOVER-CALAIS pintados na lateral, entrava no porto.

    Rin - Meu Deus, estou em Dover!

    Pasma, Rin não tirava os olhos da cena, tentando desesperadamente descobrir como tinha ido parar em Dover. Ela se lembrava da festa de noivado no clube às margens do Tâmisa, de sua decepção com a ausência da mãe, e de qualquer coisa muito vaga sobre estar num carro com Miroki. Mas isso era tudo! Daí em diante sua memória não registrava mais nada!

    Molhando os lábios ressecados com a língua, ela se deitou de novo, sonhando com um enorme copo de água gelada. Que gosto horrível tinha na boca!, pensou, tentando se esquecer de tudo e dormir mais um pouco. Mas o mal-estar que sentia não permitiu e, Rin se levantou. Seus pés tocaram a toalha que havia usado na noite anterior e, automaticamente, ela a pegou e a enrolou no corpo. Chegando à porta, abriu-a cuidadosamente e espiou para fora. O corredor estava vazio, e o barco em completo silêncio.

    No banheiro, suas roupas molhadas estavam onde as tinha deixado. Horrorizada, Rin olhou-as por um longo tempo e aos poucos as lembranças do que tinha acontecido voltaram à sua memória.

    Tremendo de frio, e chocada, ela abriu o armário que ficava em cima da pia, procurando um copo. Tomou um pouco de água, que aliviou um pouco o amargor que sentia na boca.

    No armário havia também dois sabonetes, e Rin lançou um olhar ansioso para o chuveiro. Certa de que o dono do barco não se importaria se tomasse um banho, estendeu a mão para um deles. Mas parou apavorada quando ouviu uma voz gritar qualquer coisa do lado de fora do barco, bem junto à escotilha.

    Por um momento, ficou sem saber o que fazer, o coração batendo forte no peito, e quase morreu de susto quando outra voz soou bem acima de sua cabeça. Desesperada, olhou em volta como um animal acuado, e só então percebeu, com alívio, que as pessoas que tinham falado estavam do lado de fora do barco. Os gritos não eram dirigidos a ela.

    Espiando com cuidado pela escotilha, Rin viu que uma lancha com dois homens uniformizados a bordo tinha encostado no barco em que estrava, e uma corda havia sido lançada para alguém no convés. Um dos homens pulou da lancha para o barco e disse:

    Homem - Bonjour, m?sieur. Ça va?

    Aturdida, ela se apoiou na parede. Deus do céu, não estava em Dover! Estava em Calais!

    O barco tornou a balançar quando o segundo homem subiu a bordo, e suas vozes foram ficando cada vez mais distantes, à medida que se afastavam em direção à popa. Absolutamente imóvel, Rin mal se atrevia a respirar. Não podia estar na França! Calais ficava há muitas horas de Londres! Desanimada, olhou para o relógio, mas ele não estava funcionando. Fechando os olhos, ela tentou raciocinar, mas tudo que lhe vinha à mente eram os dois homens de uniforme, que provavelmente eram oficiais da alfândega francesa. Se eles revistassem o barco e fosse encontrada, seria presa.

    Rin trancou-se no banheiro, certa de que a qualquer momento os oficiais a encontrariam. Mas nenhum som chegou aos seus ouvidos, e, depois de um bom tempo, abriu a porta um pouquinho e olhou para fora. Foi então que ouviu uma risada, e percebeu que os homens estavam na cozinha, no fim do corredor. Resolveu que o melhor jeito de descobrir alguma coisa era ouvir o que eles diziam

    e, dirigiu-se para lá nas pontas dos pés.

    A porta da cozinha estava ligeiramente aberta, mas ela logo descobriu que não dava para ver nada pela fresta, muito menos para ouvir. Mordendo o lábio, apoiou um dedo na madeira e empurrou a porta mais um pouquinho, até poder ouvir as vozes dos três homens. Os oficiais queriam algumas informações técnicas sobre o barco. A voz que respondia era grave e indolente. Empurrando a porta mais um pouquinho, Rin conseguiu ver que um dos franceses estava sentado junto a uma mesinha, preenchendo um formulário qualquer. Mas não pode ver o outro francês, nem o dono da voz bonita.

    Oficial - Vai ficar muito tempo na França, monsieur? *perguntou um dos oficiais.*

    Dono do barco - Não. Só o suficiente para ir até o cais, pegar algumas mercadorias que já estão à minha espera.

    Oficial - E que mercadorias são essas que vai pegar?

    Dono do barco - Alguns vinhos e queijos franceses, fora algumas peças de reposição para o barco. Mas já está tudo acertado com a alfândega.

    Oficial - Não vai desembarcar nada, monsieur... *o homem olhou para o passaporte em cima da mesa* ...Taisho?

    Dono do barco - Não, nada.

    Oficial - Eh bien. *O francês carimbou então o passaporte, entregando-o para o dono do barco.* Não há mais ninguém a bordo, monsieur?

    A visão de Rin foi subitamente bloqueada por umas costas largas, vestindo uma camiseta escura.

    Dono do barco - Não, estou viajando sozinho.

    As costas se afastaram e ela viu o francês se levantar. Rapidamente, correu de volta para o banheiro, tentando forçar a cabeça dolorida a pensar no que tinha ouvido. O mais importante, sem dúvida nenhuma, era que o dono do barco estava voltando para a Inglaterra. O melhor mesmo era o dono do barco só saber que tinha companhia quando já estivesse de volta.

    Escondida no banheiro, Rin tentou calcular quanto tempo ainda levariam para voltar. Pela posição do sol, devia ser meio-dia. Portanto, não havia esperança de chegarem antes de anoitecer. O barco moveu-se de novo e ela espiou pela escotilha, a tempo de ver os dois franceses passando para a lancha. Logo eles se foram e duas pernas vestidas com jeans surgiram à sua frente, caminhando em direção aos fundos do barco. O barco balançou novamente e depois o som de um motor chegou aos seus ouvidos. Aos poucos, o som foi se distanciando e ela percebeu que o dono do barco devia ter ido buscar as mercadorias que esperava no cais. Sentando-se no chão, apoiou a cabeça dolorida na parede e tentou pensar com calma. O melhor mesmo era ficar escondida até chegarem à Inglaterra.

    A voz do homem do barco tinha lhe parecido muito firme e arrogante, e ela bem podia imaginar o que ele faria se a descobrisse enquanto ainda estavam em solo francês ou em alto-mar. Seria melhor se esconder em um dos camarotes vazios, e tentar desembarcar às escondidas quando aportassem na Inglaterra.

    Com dificuldade, pegou suas roupas molhadas e torceu-as na esperança de que secassem antes que tivesse que vesti-las de novo.

    Voltando para o corredor, entrou num dos camarotes vazios, pendurou as roupas na porta do armário. Depois foi buscar as jóias e verificar se havia deixado tudo em ordem. Só restava um problema: a toalha. Será que ele daria falta, se a toalha ficasse com ela? Chegou à conclusão que sim. Com pena, colocou a toalha no mesmo lugar de antes e foi para o camarote escolhido. Escondendo a jóias numa gaveta, olhou em torno. As camas ali não estavam arrumadas e não havia nada com que pudesse se cobrir. No entanto, não podia continuar como estava, completamente nua!

    Gemendo de cansaço e dor, Rin forçou-se a voltar para o camarote onde tinha dormido. Mas não havia nada lá, além de algumas calças, camisas e cuecas. O maldito homem nem usava pijama para dormir!, pensou irritada, enquanto abria uma gaveta atrás da outra e as fechava com estrondo.

    Desconsolada, sentou na cama e olhou para as cobertas quentinhas. Mas não podia levá-las! Ele com toda certeza perceberia. Levantou-se de novo e o beliche rangeu, fazendo com que se lembrasse de que nos barcos todos os espaços são aproveitados. Ansiosa, ergueu o colchão, descobrindo o retângulo de madeira que tampava o armário que havia sob a cama. Sem muita esperança, levantou-o e... achou um tesouro! Um saco de dormir novinho em folha, ainda dentro da embalagem de plástico. Rindo de felicidade, Rin pegou-o, arrumou tudo e voltou para o próprio camarote.

    Lá, fechou a porta, estendeu o saco de dormir sobre a cama e acomodou-se dentro dele. Sua dor de cabeça agora estava tão forte, que só conseguia pensar em ficar deitada de olhos fechados. No entanto, mal havia se ajeitado, ouviu um som de motor se aproximando. Ajoelhando-se na cama, levantou cautelosamente uma ponta da cortina e olhou para fora.

    O dono do barco chegava com a carga que tinha ido buscar. Depois de amarrar o barco pequeno, ele desligou o motor e subiu a bordo. Por alguns instantes ficou fora do campo de visão de Rin, mas quando ele se abaixou para pegar as caixas, ela pôde ver seu rosto com clareza. Devia ter uns trinta anos, bem mais jovem do que ela esperava, e seus longos cabelos prateados estavam despenteados pelo vento. Não tinha errado sobre sua firmeza. O rosto sério, e a frieza dos olhos dourados, mostravam que ele era um homem duro e implacável.

    Rin soltou a cortina, torcendo para que seu "anfitrião" não tivesse a idéia de ir dar uma olhada nos camarotes vazios. Encolhida dentro do saco, passou algum tempo ouvindo os movimentos dele no convés. Mas, no fim, o cansaço e a dor de cabeça venceram e ela adormeceu.

    Acordou com uma sensação horrível na boca do estômago, e a impressão nauseante de que ia vomitar a qualquer momento. Tentando desesperadamente agüentar mais um pouco, levantou aos tropeções e procurou a porta, vagamente consciente de que, agora., o camarote estava totalmente às escuras. Sem saber como, conseguiu sair para o corredor e ir até o banheiro, antes de perder o controle e começar a vomitar. Já estava há vários minutos ajoelhada junto ao vaso sanitário, quando percebeu que o barco balançava de um modo horrível. Gemendo, ficou de pé, lavou a boca e ainda conseguiu lembrar de dar a descarga, antes de voltar cambaleando para o camarote e cair na cama, desejando estar morta. Incapaz de pensar em qualquer coisa, ficou lá, encolhida, gemendo baixinho e rezando para tudo terminar logo.

    De repente, as luzes se acenderam e Rin percebeu que alguém tinha entrado no camarote e estava parado ao lado da cama. Um "Meu Deus!" surpreso ressoou pelo ambiente, e ela reconheceu a voz do dono do barco.

    Cheia de esperança, abriu os olhos e encarou o rosto pasmo que a contemplava.

    Rin - Nós... nós já estamos em Londres? *perguntou num tom pastoso e inseguro.*

    Dono do barco - Em Londres? Não, nós não estamos em Londres, e sim no meio do oceano Atlântico, a caminho da América do Norte.


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