O Conjurado

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    Capítulo 2

    Um Aprendizado

    Álcool, Drogas, Estupro, Linguagem Imprópria, Mutilação, Sexo, Violência

    Milford, Delarware, EUA. 15 de Agosto de 1973.

    Fantaisie Impromptu, Op. 66, de Frédéric Chopin, tocado por Arthur Rubinstein, em algum concerto em torno de 65. Chovia lá fora, uma chuva calma e quase suave, implicada por ventos inquietos que jogavam finas películas da água na janela de meu quarto. O frenético dedilhado de Arthur tomava toda minha atenção, mas logo eu conseguia desviá-la para coisas menos importantes, como a goteira próxima a minha cama e as rachaduras nas paredes brancas que dividem a sala do cômodo. Aprendi a conviver com esses infortúnios. Levantei-me da poltrona de veludo escarlate, sentindo a xícara escapar por entre meus dedos, derramando o café quente quase sobre meus pés, manchando meu sinteco. Mas ele já está mais do que desbotado e arranhado. E aprendi a conviver com esses infortúnios. Com dois dedos, ergui a argola da janela, destravando as transversais que trincavam o vidro à madeira das bordas, e abri-as para receber os filetes da água fria do inverno e os ventos errantes que faziam meus móveis rangerem em suas juntas. Ao menos, parecia que não eram lágrimas no meu rosto, com tantas gotas cobrindo minhas bochechas. Uma das janelas acabou por receber um impulso do vento e chocou-se contra a parede, rachando ainda mais o frágil vidro que me restava ali. Isso sempre acontecia, mas aprendi a conviver com esses infortúnios. Talvez os suspiros fossem dos ventos, e não meus. Talvez fossem os móveis tentando se arrastar para fora em baques surdos e não meu coração num nervosismo quase descontrolado. A luminária se apagou. Devia ter ficado cansada, ou não suportava mais o calor da lâmpada incandescente que dilatara o suporte por onde recebia energia. Ela sempre fazia isso. Quando eu tentava ler os jornais que não eram esquecidos de serem entregues e às vezes quando eu desenhava mais um de meus esboços sombrosos. Já a lâmpada no teto, presa por cabos coloridos e seus fios de cobre, tremulava com suas falhas freqüentes que geralmente me atordoavam durante as leituras. Mas logo, esta se apagou também. O sol já havia se posto fazia pouco menos de meia hora, e estava ficando escuro. E então, fiquei ainda mais só, nas sombras de meu apartamento, sobre o som da harmônica melodia composta por Chopin. Eu já não lembrava mais qual faixa viria em seguida. Eu queria ouvir Canon, de Johann Pachelbel, pois essa sinfonia sempre me animava. Mas talvez não o fizesse por querer me aprofundar nas mágoas até que pudesse compreendê-las. E por isso, insistia em ouvir as melancolias de Chopin. Já havia caminhado em círculos pelo meu quarto, já deitei na cama e já sentei na cadeira de madeira da escrivaninha onde minha luminária repousava junto de esboços incompletos. E então a faixa mudou. E eu não soube reconhecer qual era agora a musica e nem sou compositor. A linda harmonia tinha a marca do Beethoven, um pouco lenta demais em relação à suas obras. E então, uma voz gelada, que me fez tremer, soprou junto com os ventos janela adentro.

    - Beethoven, Mondschien Sonate. A Canção do Luar. Você já viu a lua hoje, Rickard?

    Mas eu conhecia aquela voz. Não, não conhecia. Nunca ouvira antes, mas parecia familiar, parecia até mesmo acolhedora. E as palavras seguintes saíram da minha boca, antes que eu estivesse me dando conta de estar pronunciando-as.

    - Morte... Por que está aqui?

    Eu estava falando para o que quer que estivesse do outro lado da janela, agora tomado pelo breu da noite chuvosa. Morte? Eu disse Morte? Fiquei me perguntando isso até não poder mais raciocinar com a bizarra imagem que vi subindo minhas escadas lentamente, através do espelho. Eram sombras, sombras concretas se contorcendo em algo por trás de um sobretudo e capas negras, segurando alguma... Era uma foice. Uma foice. O capuz cobria-lhe o rosto, mas duas orbitas profundamente azuis saltavam uma luminosidade viva e ao mesmo tempo macabra. Fiquei sem reação, observando a coisa se aproximar e entrar no meu quarto. Quando dei por mim, eu estava sentado na borda da cama, boquiaberto, mas quando a criatura sentou na minha poltrona, senti meu peito queimando de alegria. Eu a vi. Vi como convidada, vi como amiga. A chuva apertou transformando-se numa tormenta acompanhada de trovões e relâmpagos que iluminavam a mais sombria das noites. Mas eu agora não estava só. Eu tinha a companhia dela.

    - Eu sempre quis morrer ao som da Canção da Lua ? eu disse a Morte. Agora esta tudo muito claro. Lorde Morte veio por mim.

    - Não vim levá-lo, Rickard. Apenas vim esclarecer certas coisas. ? sua voz acalmava meu coração e esfriou meu peito. Agora eu respirava tranquilamente e minhas pernas pararam de tremer. Quando bateu com a madeira do cabo da foice de leve no meu chão, as luzes se acenderam novamente. A luminária nunca se iluminou tão fortemente. - Olhe só para este lugar. ? e bateu com a foice mais uma vez. A goteira cessou, as rachaduras se fecharam e as juntas dos moveis não rangiam mais, ignorando os sussurros frios dos ventos invernais. ? Rickard, eu sei o que sente. É a chuva, não é? Eu sei que recordações exiladas por você são trazidas por ela. Foi num dia chuvoso que aconteceu. Eu me lembro. Eu estava lá. Eu segurei a mão dela e a carreguei no colo. Eu a levei comigo para o descanso eterno.

    - Por quê? ? foi tudo o que consegui dizer.

    - Em algum lugar de uma torre sineira, existem...

    - Ampulhetas ? interrompi ? que marcam o tempo da nossa vida, seu inicio, meio e fim. Já me contaram essa história. A torre sineira... Pensei que fosse uma história de terror para crianças desobedientes.

    - Vai muito alem disso, Rickard. A ampulheta dela não chegou ao fim, e mesmo assim tive que levá-la. ?Por que?, perguntou-me. Eis o porquê. Porque a sua terminara.

    - Mas ainda estou aqui.

    - Exato. Houve um erro. Deram-me o nome errado.

    - Foram os sobrenomes, não foram? Confundiram-me com ela. ? deduzi.

    - Sim. Mas existe volta. Ainda há saída para ela. A alma só é liberta de fato após o funeral. Um funeral é o ritual final de iniciação no novo plano. Amanhã é o funeral de sua irmã. Ainda há tempo.

    - Foi a Morte quem errou. O que posso fazer?

    - Apenas venha comigo, Rickard Redville. Venha salvar sua irmã.

    Desmond acordou do pesadelo. Novamente estava vivendo os últimos momentos de seu pai antes de sumir. Nunca soube de fato o que aconteceu naquele dia, mas seus sonhos mostram o que mostram, e Desmond prefere acreditar neles. Não possuía grandes recordações de quando era vivo. Agora parecia não possuir recordação alguma, exceto as lembranças que seus pesadelos traziam.

    Seu rosto estava marcado, pois havia encostado a cabeça na borda da janela. Os bancos da carruagem eram muito desconfortáveis, disso ainda lembrava. Tom estava ao seu lado, com os olhos arregalados. Não iria conseguir pregá-los com tanta coisa nova acontecendo ao seu redor. Lorde Morte parecia mais agitado. Enquanto guiava as rédeas dos corcéis negros, explicava à Thomas sobre o fato de não poderem voltar para o plano físico através de um portal.

    Estavam voltando para a Torre Sineira, a sede da conjuração. Era noite, mas já se podia avistar o topo da torre, iluminada por fogueiras e archotes. Ainda chovia, aquela chuva incessante que decaia dos céus negros de Nova York há semanas. Mas agora não estavam em Nova York. Desmond se lembrava daqueles campos gramados, mas nunca soube onde exatamente fica aquele lugar.

    Viajaram por toda a noite desde que saíram da casa do velho Franklin e agora amanhecia. E estava claro que não era mais o plano físico por onde andavam agora.

    Já perto da torre, Morte largou o cabresto, desceu do acento e abriu as portas para Thomas e Desmond. Retirou o molho de chaves e entraram pela passagem dos fundos do pequeno estábulo anexo.

    Por dentro, a Torre Sineira era uma colossal estrutura com milhares de salas, salões e ergue-se a muito perto das primeiras nuvens. Encontravam-se agora num pequeno salão com algumas marcas de botas enlameadas, que eram limpas por um zelador vestido com mantas negras. Possuía um bigode ralo e a cabeça calva, e segurava um esfregão, limpando o chão em repetidos movimentos quase ritmados.

    - Acário, o zelador ? Disse Desmond ? sujeito estranho esse.

    Morte virou-se para Acário, guardando o molho de chaves em sua manga.

    - Cuide do meu pequeno Thomas. Ele é novo aqui.

    O zelador consentiu com a cabeça, fez um murmuro abafado remexendo o bigode, e logo tornou a olhar para o chão, esfregando-o em círculos.

    - Você vem comigo, Desmond ? Não havia retirado seu molho dessa vez, mas quando apontou os dedos ossudos para o rapaz, já possuía uma chave de prata fosca neles. Subiu a escada lateral colada à parede e abriu a porta a que ela levava. Saíram num amplo corredor com o piso de mármore se revezando em placas negras como o ápice da madrugada e brancas como os corcéis castrados de Tessália. Das paredes pendiam archotes acesos, e portas e portas e mais portas. Ouviam a sola de seus calçados causarem passos que ecoavam por entre o recinto até escaparem pelas portas, e logo estavam na grande entrada dupla que levava à sala de reunião.

    - Morte, espere ? disse Desmond, pouco depois de ver o Lorde fincando a chave na fechadura. ? Eu sei que você entende o que eu fiz.

    Morte permaneceu imóvel e Desmond prosseguiu:

    - Você também sabe sobre ela. Também pode mudar as coisas. Por que continua mantendo esses segredos? Por que eu deveria continuar?

    - Você não pode destruir algo que reina por eternidades ? respondeu a criatura, sem mais rodeios, girando a chave e abrindo a porta.

    Do outro lado, Tessália e o corvo negro aguardavam, sozinhos. Morte fechou a porta, sorrateiramente, e se postou rijo atrás de Desmond, como que para garantir que não tentasse escapar.

    - Olá Tess. ? encarou o corvo ? Adrian.

    Tess virou-se para a porta, esvoaçando sua saia de seda azul. Fitou Desmond com uma expressão que poderia ser surpresa, poderia ser espanto. Poderia ser medo.

    - Desmond... Eu... Você mudou.

    - Ora, minha cara Tessália. Foram quatro longos anos. O purgatório não é um lugar tão ruim. Se Deus quiser, andaremos juntinhos por lá qualquer dia desses. ? Com o comentário, as asas de Adrian se agitaram e Morte pareceu terrivelmente desconfortável em seus mantos negros, mas Tessália mostrou frieza no mundo azul em que vivia.

    - Deixem-nos. ? Com um gesto, fez com que o corvo e o lorde se retirassem. Ficou ali, na sala, sozinha com o homem que expurgou e condenou ao sofrimento. Antes que pudesse falar, a malícia sarcástica de Desmond voltou a se manifestar.

    - Por algum motivo, eu tinha certeza de que não conseguiria passar dez anos sem mim - rodeava a sala, seguindo sua circunferência oval, soprando contra cada persiana dos vitrais transparentes que formavam a parede inferior, logo atrás dos tronos. Tessália acompanhava-o com os olhos, ainda sem reação, esquecendo-se completamente do que estava pronta para falar. - O que eu hei de ter feito mesmo?

    - Não se faça de bobo, Desmond. ? Sua voz tremia, o medo era algo desconhecido para a suprema mestra da conjuração.

    - Se fui parar no purgatório, então não devo ser dos mais espertos. Conte-me, Tess, palavra por palavra, o que foi que eu, com toda a minha maldade, fiz para merecer tal punição?

    - Você tentou destruir nosso Cemitério, Desmond! Não me esquecerei jamais do que fez com Lorde Morte. Não esquecerei o que fez comigo!

    O rapaz desceu as escadas de carvalho, mesmo material dos acentos inferiores, cruzou os bancos em passos lentos sobre o carpete de poliéster dourado até o centro da sala, onde se encontrava Tessália.

    - Ora, Tess. Pare com este teatrinho. Pode ser convincente aos outros mas... ? Segurou suas mãos, entrelaçando seus dedos nos dela, e aproximou seu rosto. Tessália não recuou e então sentiu o toque de seus lábios, e depois de suas línguas. Mas foi rápido, talvez rápido demais. ? Nunca me enganou.

    Afastou-se dele com um empurrão. Usou os dois braços, agora com as mãos livres, para escapar daquele abraço acolhedor e confortável. Tomou fôlego, mas nem ao menos se lembrava de tê-lo perdido. Tornou a virar-se para Desmond.

    - Senti saudades.

    - Eu sei que sentiu ? ele respondeu rapidamente. ? Pelas minhas contas, poupou-me de seis anos lá.

    - Você é um canalha. Mereceu tudo o que sofreu.

    Ele sentou num dos bancos de madeira, elevou as pernas até que pudesse apoiá-las sobre o banco seguinte e então novamente, desfrutou dos mais irônicos tons que sabia possuir:

    - E quem foi que disse que eu sofri? Tess... O purgatório foi... Um aprendizado.

    Tessália fechou o rosto, virando-o para o lado e novamente para ele, franzindo o cenho.

    - Sabe por que mandei chamá-lo, Redville?

    - Por que me ama?

    - Está acontecendo de novo. ? Tessália ignorou o comentário ? O neto de Osfrey está finalmente morto. E o garoto é um ignorante. Não sabia de nada sobre a conjuração. Nada.

    - E onde entro nessa história, Tessália?

    - Quero que o ensine. Quero que conte a ele. ? A mulher aproximava-se dos bancos enquanto falava, até finalmente, estar ao lado de Desmond.

    - O que, exatamente?

    Antes de sentar, passou a mão pelo traseiro, para afagar as vestes, prevenindo-as de serem amarrotadas naquele acento duro. E então, acomodou-se.

    - Tudo.

    O suspiro de Desmond foi profundo. Encarou o trono negro do meio, que era o posto de Tessália. Sobre o carvalho, podia-se ler ?Iustitiam, Veritatem y Libertatemque?.

    - Justiça, Verdade e Liberdade. ? e riu como havia rido no Cemitério. ? Vocês são muito divertidos. Amo-os de coração.

    - Fará isso por mim, Desmond? ? Tentava não olhá-lo nos olhos.

    - Claro que farei. Mas, antes, preciso de um favor.

    - O que?

    - Pode devolver as chaves do meu apartamento?

    Tessália inquietou-se.

    - Desmond, não quero que retorne ao plano físico tão cedo. Passe ao menos esta noite na Torre. Por favor. Adrian cuidou dos seus aposentos. Ele está com sua chave.

    Desmond se levantou, sem dizer mais. Antes que cruzasse a porta para o corredor, pode ouvir Tessália chamando-o.

    - Desmond... ? hesitou como se não houvesse mais palavras apropriadas - Boa sorte.

    Olhou Tessália novamente.

    - A ultima vez que ouvi isso, passei quatro anos nas mãos dos Juízes. ? e fechou a porta.

    Andou sozinho pelo corredor. Fazia tempo que não via a Torre Sineira tão vazia. Talvez estivessem todos de férias, pensou com seu sarcasmo. As portas que não eram trancadas geralmente davam acesso à lugares importantes como dormitórios e refeitórios. Desmond conhecia todas muito bem, até mesmo quando mudavam de lugar. As passagens da Torre Sineira vivem se alternando umas com as outras. Já estava na escada espiral que dava acesso aos aposentos superiores, onde dormem os conjurados importantes. Desmond tinha a honra de possuir um quase luxuoso quarto ali. Subiu alguns cem degraus, até encontrar o corredor onde ficava seu quarto. Adrian devorava uma maçã ali, encostado na bendita porta, onipotente com as asas esticadas. Com a outra mão, girava o chaveiro de Desmond Redville.

    - Também sentiu saudades, Adrian?

    - Não brinque comigo, Red. Ou já se esqueceu da ultima vez?

    - Não, não. Não. Claro que não, jamais esquecerei. Acho que... Isso com o que está brincando é meu. Poderia me entregar, por obséquio?

    Adrian deu a última mordida na maçã, e então pode fitar o rosto de Desmond.

    - Você cresceu, garoto. ? disse entregando-lhe o molho.

    - Nem imagina o quanto. E como vão os corvos? ? Encaixou-a no segredo da porta e a girou, abrindo passagem para o cômodo. Estava empoeirado, e os moveis lacrados com plásticos velhos e rasgados, e outros farrapos. Pilhas de lixo e sujeira por todos os cantos, plumas e penas apodrecidas sobre o carpete preto com a imundice, vidros rachados, cacos nas proximidades das janelas. Desmond olhou tudo aquilo com tristeza. Havia cuidado de seu quarto com muita dedicação. Sentiu como se tivessem se passado trinta anos ao invés de quatro. Logo, tratou de fechar a boca e retomar sua expressão sarcástica.

    - Vejo como cuidou bem de meu quarto na minha ausência, Adrian.

    - Fico feliz que admire meu desempenho ? recolheu as asas e andou em direção as escadas. Começou a descê-las até não se poder ver nem as pontas das dobras de suas asas negras ? Aliás, os corvos vão bem. Agradecem sua preocupação.

    Quando Desmond fechou a porta, já dentro do cômodo, o espelho que nela pendia soltou e caiu, estilhaçando-se em mil pequenos cacos de vidro.

    Desgraçado. Corvo desgraçado. Incrível como desperdiço chances tão afortunadas.

    Puxou de uma vez o lençol da cama, levantando muita poeira e plumas velhas. Deitou-se sobre o colchão rasgado. As molas soltas eram desconfortáveis, mas não parecia se importar. O teto rachado e desbotado parecia estar sofrendo uma infiltração.

    Fitou-o por muito tempo. Até que ouviu fortes batidas na porta. A mesma acabou por afrouxar a dobradiça de cima, e entortou-se compensando o peso na debaixo, até que tombou completamente no chão, sobre o som dos parafusos de metais se soltando e ricocheteando nos cacos do espelho. Por trás da porta, revelara-se uma criatura enorme e cinzenta, que mais parecia uma toupeira, ora castor.

    - Acário aguarda-o com Thomas Dewling para o café.

    - Café?

    A criatura apontou um dos compridos dedos de sua pata para a janela. A alvorada. Amanhecia, o sol escalava as montanhas do campo.

    - Estou à caminho.

    A criatura retirou-se sem mais rodeios. Desmond voltou a olhar o quarto.

    Abriu o armário cujas portas estavam na mesma condição da que agora descansava no chão. Um isqueiro velho e um maço de cigarros. Puxou um dos filetes mofados e tentou acendê-lo. Na quarta tentativa, o fogo pegou.

    - Um aprendizado. ? disse novamente.

    E jogou o cigarro na cama, sobre o monte de algodão e penas velhas, sobre o colchão rasgado e sobre as molas enferrujadas. O fogo cresceu e se alastrou, consumindo o tecido e depois a madeira. Encontrou o carpete, tomou ainda mais poder. A poeira e as plumas que voavam sem rumo pelo quarto converteram-se em brasas ardentes, desfazendo-se em cinzas em pleno ar. As chamas tomaram o armário, e já não se via mais uma cama que antes estivera ali. Desmond entrou no quarto, e foi até perto de sua mesa de cabeceira, numa tranqüilidade onde parecia que o fogo eram apenas folhas outonais incomodadas pelo vento, que acariciavam sua pele enquanto despendiam-se do caule que as segurava. Puxou a segunda gaveta e de lá tirou um porta-retratos. Na foto, dois garotos e um adulto, vestido de forma descontraída, em uma ocasião onde todos deveriam estar de terno. Deduzia-se isso pela roupa dos pequenos. Parou para olhar a foto, ainda ignorando as chamas que só faziam aumentar e consumir tudo o que se podia queimar naquele quarto. E então, saiu, passando uma perna de cada vez sobre a porta derrubada. A fumaça tomou conta do corredor, mas bastou descer as escadas para reencontrar a pacata normalidade da Torre.

    O salão comunal principal, onde se fazem as refeições, matinais, tardais e noturnas, era relativamente grande, para comportar a maior parte das almas conjuradas. O desjejum daquela manhã era realizado por não menos que trezentos ou mais membros da Torre. Incontáveis pratos, de bolos, pães, queijos e cafés enchiam as sete grandes mesas de mogno. Acima, a oitava, num piso superior, quase um palco, lanchavam os mestres. Lorde Morte era o único que não comia, mas vigiava dali todos os outros. Tessália também não estava lá, mas pode ver Adrian e Rickard, o homem do elmo vermelho. Acário comia junto de Thomas, numa mesa do canto. Desmond sentou ali perto, ignorando os olhares desconfiados e casmurros a que ele eram direcionados. Quando entrou, uma tonelada de sussurros inconformados encheu o salão.

    - Gosta de bolo de vermes amanteigados, Thomas?

    O garoto encarou com nojo o doce que segurava, e quase cuspiu o que já estava mascado na boca, mas Desmond continuou:

    - Brincadeira. É laranja apenas. E a cobertura... Deve ser baunilha. Eca. Laranja com baunilha.

    Tom continuou a morder o bolo, aos poucos retornando à sua expressão de satisfação.

    - Sabe que dia é hoje, senhor Dewling? ? Pegou um pão, abriu e espalhou manteiga nele. Depois cortou duas fatias de mussarela e queijo branco, espetou duas rodelas de peito de peru e por fim, deu a primeira mordida.

    - Não senhor.

    - Desmond. Desmond Redville, mas meus inimigos me chamam de Red.

    - Ah. Não senhor... Desmond.

    - Apenas Desmond. Por favor. Não sou seu avô. ? Deu outra mordida. Engoliu e prosseguiu ? Hoje é dia do seu funeral, Tom. Acredito que saiba o que significa.

    - Vou ser enterrado?

    O rapaz suspirou. Realmente, o garoto não sabia de nada. No momento, pensou que fosse exagero de Tess, afinal, na família de Osfrey Dewling só houve grandes nomes de Conjurados importantes.

    - Termine o café e venha comigo.

    Parecia que todos os corredores eram desertos sobre os ecos de seus passos. Onde estavam todos há essa hora? Viu mais de trezentas almas no café, não era possível que não haveria de ter uma sequer nos corredores. Não transitavam mais pela torre?

    - Onde estamos indo? ? Tom perguntou. O garoto era muito curioso.

    - Na ala dos ceifadores. Aqui, nessa parte da torre, os ceifadores são criados e treinados.

    - Há outros Mortes?

    - Não, Tom. Morte só há um. Ele é o supremo Lorde dos Ceifadores, vai pessoalmente buscar as almas conjuradas. Cada ceifador tem o trabalho de Morte, mas.... Thomas, esqueça seu conceito de filme americano e clichês do gênero. Lorde Morte usa vestes negras e uma foice, ok. Isso é de tempos remotos. Mas os outros ceifadores são... Um tanto diferentes. As roupas continuam negras, mas você raramente vai ver olhos azuis, capuzes, ossos e foices.

    - Por que disse que hoje é meu funeral?

    - Calma, Tom. Uma coisa de cada vez. Venha.

    Andando pelo labirinto de acessos, Thomas percebeu que a ala dos ceifadores era um tanto mais fria. Os ventos encanados sopravam gelados pelos corredores vazios, e os sussurros eram ouvidos ao longe. Os ceifadores falam baixo e tranquilamente. Suas vozes são suaves e acolhedoras, para não assustar as almas no primeiro contato com o mundo espiritual.

    O salão comunal principal dos Ceifadores era completamente diferente. Quase não havia luz. E a comida tinha cheiro de sangue. Passaram direto pela sacada onde as escadas davam acesso às mesas, e foram para o corredor seguinte, onde encontraram a sala que Desmond parecia conhecer bem. Não era tão frio lá. Havia cem, duzentas, trezentas ampulhetas espalhadas sobre as estantes que ocupavam o quarto. De pé, três homens de sobretudo e manto negro.

    - Eldrion ? disse Desmond a um dos homens. Quando se virou, Thomas viu que não eram realmente homens, talvez mais almas. Mas pareciam diferentes. Pareciam menos ?concretas?. ? Villyon, Hermion. ? os outros dois consentiram.

    - Desmond. Eu estava mesmo sentindo calor. ? respondeu aquele que atendeu por Eldrion. ? Hoje é um dia de farta colheita. Olhe. Aquelas duas ampulhetas ali vão acabar antes do almoço. Aquela e aquela lá no fundo vão acabar por volta de uma da tarde. E já contei umas oito que vão acabar antes do anoitecer.

    - Está ocupado demais, Eldrion?

    - Depende. Para meu amigo Desmond, eu sempre reservo tempo. E estes dois devem ser úteis de vez em quando. E quem é esse? ? fez um gesto para Tom.

    - É um novato. Não temos muito tempo. Hoje é o funeral dele. Quero resolver logo isso, e depois, conversamos. Acha que pode deixar escapar um dia de farta colheita?

    Eldrion trocou olhares com os dois ceifadores que estavam ali. Depois, os homens voltaram a procurar ampulhetas que estivessem perto do fim.

    - Mas é claro que posso. Venham comigo, vou pegar minhas coisas.

    A sala começou a tremer. Os ventos, os sussurros... As paredes se desfazendo, as velas acabando... Enquanto Thomas ainda se acostumava com aquilo, Desmond sentia saudades daquela sensação.

    - Outra coisa sobre os ceifadores, Thomas. Eles podem te levar para onde quiser, para quando quiser, em instantes. A desmaterialização é um dom exclusivo deles. Já nós, precisamos utilizar portais, que estão espalhados nas fronteiras entre o mundo físico e o espiritual. Creio que Morte já tenha te contado isso.

    O quarto onde estavam agora era escuro. Ao contrario dos outros, a luz agora provinha de uma fraca luminária, e não de velas e mais velas. Eldrion puxou um sobretudo das sombras que escondiam seu armário. De mais sombras, retirou uma corrente. E puxava, enquanto a enrolava no braço, até as extremidades surgirem. Eram lâminas. Duas brilhantes lâminas afiadas como a foice de Morte, presas num cabo metálico que simplesmente sumiu nas mangas de Eldrion.

    - Estou pronto. ? disse o ceifador.

    - Leve-nos para Middlesbrough.

    - Inglaterra? Mas eu morri em Downtown.

    - Sim, Thomas. Mas eu também tenho que pegar... Algumas coisas. ? respondeu Desmond.

    - Middlesbrough então?

    E novamente, a desmaterialização. Encontravam-se agora num estreito corredor iluminado por luzes fluorescentes, que deram uma sensação estranha em Thomas por parecer o corredor do hospital. Desmond retirou um chaveiro do bolso e abriu a porta que estava de frente para eles.

    - Agora sim ? respirou calma e profundamente. ? Meu apartamento.

    O apartamento estava muito mais conservado, embora, parecesse que realmente fora deixado a mais de trinta anos.

    - Interessante como ninguém nunca ousou vir até aqui.

    Desmond havia dado um susto em um grupinho de adolescentes enxeridos que bisbilhotavam seu prédio abandonado. Certa vez, viu que um deles quebrara um de seus porta-retratos, e então chamou Eldrion para manifestar-se em forma de ?morte?. Os garotos jamais retornaram, e provavelmente espalharam boatos que garantiram que ninguém de fato voltaria ali.

    Então, nem se deu o trabalho de esconder suas armas. Bastou abrir o armário e levantar o empoeirado colchão da cama de casal, para inúmeras facas, pistolas, submetralhadoras e principalmente escopetas serem encontradas. E Desmond parecia gostar de escopetas. Canos curtos, canos duplos, canos longos e canos serrados.

    O homem puxou uma Taurus PT58S que estava dentro de uma pequena maleta preta, entre aberta sobre a tábua da cama.

    - Por que estamos aqui? ? perguntou Thomas ? por que está segurando isso? ? Viu o rapaz retirar a arma da maleta e apontá-la para a parede, testando a mira.

    - Muito bem, Thomas, ouça-me ? disse Desmond enquanto puxava o ferrolho da arma. Verificou se estava carregada, puxou o cartucho e o recolocou no cabo. ? Um funeral é mais do que enterrar um caixão. É o ritual de iniciação no mundo espiritual, o fim da passagem que começa com a morte. Agora, diga-me: você foi uma boa pessoa, Tom?

    Hesitante, Thomas abriu e fechou a boca, como se as palavras prontas para sair acabassem por ficarem presas na garganta.

    - Acho que sim ? respondeu por fim.

    - Ah, isso é mau ? Eldrion se agitou ? muito mau.

    - Por que, o que houve? O que há de errado em ser uma boa pessoa?

    - Não há nada de errado ? Desmond guardou a arma nas costas, atada ao cinto. ? Vou explicar melhor, garoto. Quando morremos, nossas almas vagam na fronteira do mundo espiritual com o mundo físico, até a hora do funeral, que é quando, caso seja uma boa pessoa, uma alma pura, os anjos vem buscá-la e levá-la para o paraíso. E geralmente são Querubins, anjos guerreiros. Contudo, você é uma alma conjurada. O que significa que eles não vêm atrás do seu corpo. Vêm atrás de você.

    - Mas se você foi um menino mau, uma horda de incontáveis demônios vem buscá-lo. São muito divertidos. ? continuou Eldrion.

    - Demônios são idiotas e fáceis de matar. Ao menos os que mandam para esse tipo de ocasião. Por isso, vem em hordas. Às vezes, vemos quinhentos desses vermes num único funeral. Mas não os subestime. Existem várias raças de demônios, e acredite, há alguns que são expertos demais. Mas os anjos... Eles são fortes, poderosos. Disciplinados, hábeis. Para buscar uma alma pura, não vemos mais que sete deles, e não menos que três. E são muito difíceis de matar. Mesmo.

    - O que devo fazer? ? Thomas era o tipo de garoto que quanto mais se explicava, mais precisaria aprender. Desmond estava gostando disso.

    - Apenas observar e aprender. Vai fazer bastante isso quando ganhar sua arma, garoto.

    Abriu o closet. Procurou o interruptor entre os ternos negros que se penduravam pelos cabides e acendeu a luz. Na porta da esquerda, roupas normais, e algumas mais sociais e formais. Na direita, sobretudos negros. Sobretudos, sobretudos e sobretudos. Alguns iam até o chão, outros pouco passavam dos joelhos. Desmond pegou aleatoriamente um deles e vestiu. Havia outra porta, que era corrediça. Puxou-a até abri-la completamente e então, mais armas. Armas brancas. Uma corrente parecida com a de Eldrion, canivetes, adagas, estiletes, punhais e o que mais chamava atenção, duas montantes gêmeas, repletas de runas, com cabos adornados do divisório ao extremo.

    - Quando você entra para a Conjuração, escolhe uma arma que terá ligação direta com a sua alma. Eu escolhi a Montante. ? Explicou Desmond.

    - E guardou-a assim, tão... Não têm medo que a roubem?

    Eldrion riu.

    - Não, garoto, não são essas ai. Sua arma vai estar sempre com você, certo, Red?

    Da manga do sobretudo, um cabo negro e sem mais adornos, completamente diferente do cabo das armas gêmeas, caiu e rodou pelos dedos de Desmond.

    - Existe a técnica da materialização.

    Antes que Thomas pudesse perguntar, uma lâmina grande, afiadíssima, larga e grossa, cresceu daquele cabo, até quase tocar o teto, e homem precisou abaixá-la para não perfurá-lo enquanto ela crescia mais.

    - Estou pronto ? disse. ? Temos que prestar condolências num certo funeral, Eldrion.

    Dessa vez, a desmaterialização foi rápida. Bastou piscar os olhos para Thomas sentir as brisas frias daquela primavera. Fazia um dia bonito, típico da estação, com o céu bem aberto e azul. Tom sempre esperou que chovesse em seu enterro. E a quantidade de convidados o surpreendeu. Na rua lotada de carros, o rebecão, carro fúnebre, estacionado na entrada do cemitério. Bougainvilles lilases cresciam nas grades, misturando-se com as heras verdes cinzentas, entrelaçadas nas hastes foscas que formavam o perímetro. A grama era rala, mas perto dos túmulos, o mato crescia alto e numeroso. Ao redor da lápide de Thomas Dewling, inúmeros membros de sua família e amigos estavam presentes, alguns na mais forte expressão de luto, outros, tentando segurar as mais profundas mágoas que as boas lembranças trazem.

    - Estamos no mundo físico?

    - Estamos na fronteira. Eles não podem nos ver. Alguns podem nos sentir, mas é bem difícil. Quando o padre começar o sermão, os anjos vão descer. ? Desmond estaria se revelando um bom docente.

    - Então vamos logo! ? o garoto sentia a tensão. Não queria ficar ali, não queria olhar para todos aqueles rostos. Não queria estar entre eles e não poder tocá-los. Elia era, como esperado, a que mais chorava. A roupa negra combinava com seus cabelos morenos, e ressaltava seus olhos, que estranhamente pareciam azuis como o céu que cobria suas cabeças.

    - Thomas, não podemos causar nenhuma alteração num plano que não nos pertence. Existe o momento certo.

    - A Pausa ? prosseguiu Eldrion. O ceifador sempre completava as explicações de Desmond. Talvez isso o irritasse um pouco. ? Quando os anjos chegam, o tempo definitivamente para e a fronteira não existe. Mundo físico e mundo espiritual são um só. E assim, podemos tomar o caixão. Mas o efeito é momentâneo. Quando o ultimo anjo cair, ou retornar ao céu, o tempo e a fronteira voltam, e se permanecermos no mundo físico nesse exato segundo, nossa alma se dissolve e é transformada em energia cósmica. Poeira, como preferimos chamar. Viramos completos inúteis. Vocês, no caso. Eu retorno para a pirâmide. No inferno.

    - Pirâmide?

    - Vamos deixar isso pra depois Tom. Você entendeu então, como deve ser feito? ? Desmond estava com o cabo em mãos. O padre abriu a bíblia.

    - E não toque em ninguém, garoto. Não queremos mais um médium lunático dizendo que viu isso e aquilo por ai.

    Thomas consentiu com a cabeça.

    A leitura foi iniciada, e com isso, o céu pareceu se torcer num pequeno núcleo, uma cratera que dava em algum lugar que reluzia em tons dourados. Algo caiu dali em absurda velocidade, um ponto de luz, uma energia que pareceu deixar, por momentos, o mundo um lugar melhor. Depois mais outro, e outro e outro.

    - Quatro. São quatro ? disse Eldrion, preparando a corrente.

    Chegando perto do solo, os quatro desaceleraram até suas alturas ficarem equivalentes, e esticaram suas asas branquíssimas. Os anjos que Thomas vira com sua mãe na capela estavam nus, mas estes, pelo contrário, trajavam armaduras em quase toda a extensão do corpo, cobrindo os braços, pernas, coxas, tronco. Mas não usavam elmo algum. Nenhum deles.

    - Você pode matá-los pelo modo mais fácil, a cabeça. Ou tentar feri-los nas dobras. Cotovelo, joelho, axila. São pontos fracos.

    Os anjos pousaram, um sobre a lápide, outro sobre o túmulo, e dois ao lado do padre. E então, finalmente pareceram notar em Tom.

    O que pousou na lápide esticou o braço e clamou pela alma do conjurado. E estranhamente, Thomas sentiu uma vontade de ir com ele, de seguir seu caminho para o paraíso. Eldrion puxou seu braço ao ver o garoto dando seu primeiro passo em direção ao alado.

    Dois deles esticaram as asas, e saltaram em direção à Eldrion. Pousaram logo a sua frente, suavemente. De peito erguido, o primeiro veio aproximando-se lentamente, confiante. Eldrion começou a mexer os dedos, tenso.

    - Ceifador ? disse o anjo. Sua voz era como o mais harmônico dos acordes tocados numa harpa - Retire-se deste belo momento de confraternização. ? A risada de Desmond chamou sua atenção.

    - Nunca me canso disso ? disse Desmond Redville, enquanto sacava sua arma e atirava uma, duas, três, quatro vezes, sobre o peito do anjo.

    - Acha que pode nos ferir com essas armas mundanas? ? disse o celeste que sentava no túmulo. Mas ficou surpreso ao ver a placa do peito perfurada, e o sangue divino escorrendo por ela.

    - Platina branca. Eficaz contra Celestes e Infernais.

    O anjo caiu de joelhos. Estava morto. Seu avatar começou a se dissolver, se transformar em energia e simplesmente sumir.

    Eldrion liberou as correntes e investiu contra o outro celeste, mas este levantou voou e se defendeu com os braceletes. Os alados decidiram apelar para suas montantes. Desmond fez o mesmo. Materializou a lâmina e se jogou contra os dois que cobriam o padre. Thomas não sabia para qual dos dois olhar. Eram rápidos, sabiam se esquivar dos anjos. Conheciam seus golpes e conseguiam prevê-los.

    O padre havia começado recitando uma passagem do livro de Tiago. Enquanto Desmond e Eldrion lutavam contra os anjos, o pregador já havia lido mais dois salmos. O ultimo livro, geralmente é o livro dos Hebreus, e quando o padre chega nessa etapa, os anjos congelam o tempo para buscar a alma recém separada do corpo.

    O alado investiu contra Eldrion com a montante, mas este se esquivou com um salto para trás, e com a corrente relaxada, puxou uma das extremidades laminadas e jogou-a contra o celeste. Como previsto, o anjo usou a espada para deter a lâmina da corrente, que nela se enroscou, mas Eldrion rapidamente usou a outra extremidade, e dessa vez, acertou o inimigo, que com o peso da montante, foi lento demais, e sentiu seu peito perfurado pela ponta daquela faca presa ao aço da corrente. Com a outra ponta, que se agarrou à arma do celeste, desarmou-o com um puxão brusco, recolhendo a lâmina e investindo novamente contra o adversário. A corrente rodou sobre sua perna e finalmente abriu um corte na placa da armadura, tendo a ponta trespassando o joelho esquerdo. O anjo não resistiu e ajoelhou-se, apoiando-se sobre a perna boa, e tentou tirar a lâmina de seu peito com ambas as mãos, mas Eldrion foi mais rápido, e recolheu a corrente, destroçando músculos e carne, sobre um jorro de sangue. O Ceifador era rápido demais para o anjo, e com a extremidade laminada que havia usado para enfraquecer o celeste, Eldrion girou levantando os aros, deixando-os retos sobre o ar, e a faca serviu como uma foice letal, decapitando o celeste no mais reto dos cortes, e ao terminar do giro, as duas pontas estavam novamente sobre o controle de suas mãos.

    Enquanto Eldrion dava fim a um dos anjos, Desmond desafiava os outros dois que vieram pela alma de Thomas. Foi um combate fechado, e tudo era muito rápido. Thomas tinha seu rosto ensangüentado, pois quando Eldrion puxou de volta as correntes, o sangue que se encontrava nas lâminas espirrou no garoto que observava logo atrás. E agora ele torcia por Desmond. O rapaz era realmente um exímio lutador, hábil com sua montante, equilibrando o peso de um homem contra o esplendor glorioso daqueles dois alados.

    Thomas não conseguiu acompanhar os movimentos, mas viu que Desmond, num golpe que concentrava todo o calor e a fúria do combate, cortou de baixo para cima a asa esquerda de um dos celestes, amputando-a, e em seguida, de cima para baixo, no mesmo golpe, na asa direita, deixando-o sem ambas as asas. Jorrava tanto sangue dos cotos cujas penas eram agora rubras, que Thomas tentou parar de olhar, mas não conseguiu. Viu Desmond trespassar a enorme espada sobre a placa de peito do anjo amputado, sua carne, seus músculos, seus ossos, coração, pulmões, até sair pelas costas, entre as asas. A arma acabou por ficar presa naquele corpo inerte, e agora Desmond novamente sacou a Taurus, e após uma série de esquivas do ultimo anjo, teve a oportunidade de disparar contra ele. E o tiro acertou-o no olho, abrindo uma cratera em sua face angelical. Ainda vivo, o celeste tentou continuar a luta, mas recebeu um tiro que lhe fez o cérebro vazar como resposta. Ainda sentindo a dor dos projeteis e as tripas fugindo-lhe cabeça afora, fez um último esforço para se reerguer, mas Desmond disparou contra seu coração e assim, o alado desistiu e morreu.

    O padre começou a recitar Hebreus. Mas o tempo parou. Com o dissolver do cadáver do último anjo a cair, a fronteira entre mundo físico e mundo espiritual deixou de existir, mas agora Thomas sabia que o efeito era temporário.

    - Rápido, me ajudem. ? Desmond gritou. Eldrion correu até ele e o ajudou a levantar o caixão. ? Você pesa, Tom.

    Usando a montante como pé-de-cabra, arrombaram o túmulo, que já havia sido lacrado, e puderam ver o corpo de Thomas, restaurado da melhor maneira possível. Os cortes haviam sido fechados, costurados. Agora só restavam cicatrizes feias e a marca deixada pela cânula.

    - Até que você não está tão mal assim ? Eldrion conseguia manter seu humor sombrio até nas horas de maior seriedade.

    Desmond puxou o corpo, tirando-o do caixão e apoiando-o entre os ombros. O Ceifador fechou o caixão e o devolveu a seu lugar original, ao lado da cova.

    - Vamos, Eldrion. Meu apartamento.

    O Senhor estará conosco quando enfrentarmos a morte e quando entristecermos pela morte dos outros, ouviram o padre dizer. Acabou o tempo. Mas já deram por si no apartamento de Desmond Redville.

    - Obrigado, Eldrion. Volte para a Torre. Deixe-nos a sós.

    - Como quiser, Red. Boa sorte com o garoto ? e dizendo isso, se desfez em cinzas e sombras, que voaram seguindo o vento encanado que entrava pela entre abertura da porta.

    Quando o ceifador se foi, Desmond tratou de guardar as armas. Escondeu-as em seus devidos lugares, mas continuou com o cabo da montante em mãos.

    - Percebeu algo de diferente, Thomas? ? perguntou deixando o corpo do garoto sobre a cama, a qual acabou de revestir com o colchão.

    - Não, eu não... Espera. ? Tom respirou fundo. Passou a palma da mão sobre a superfície de uma escrivaninha empoeirada. Sentiu a sujeira na ponta dos dedos. Sentiu o ar puro da manhã. Os sons eram mais nítidos, as cores eram mais vivas. ? Estamos no mundo físico. E não somos reflexos. Somos... Nós somos reais?

    Ao menos não era tão ignorante assim.

    - Sim, Thomas. Ao menos, eu sou. Se algum adolescente idiota entrar por aquela porta, vão olhar para mim, assustados por ver alguém aqui depois de anos. Mas não vão te ver, é claro. Porque o seu corpo está ali.

    - E como faço para voltar para o meu corpo?

    - Isso apenas Lorde Morte pode fazer. ? Desmond abriu as janelas, para o ar circular. Foi até a sala e voltou ao quarto com um espanador em mãos. ? Só voltaremos para a Torre Sineira quando anoitecer. Os portais só abrem durante a noite. Estipulamos isso porque, se formos viver no mundo dos homens, não podemos ser reconhecidos. E por isso, caçamos demônios durante a noite. Quero dizer, a sua função vai depender muito das suas habilidades. Alguns conjurados caçam demônios, outros, servem como protetores de pessoas cuja alma será importante em outro plano.

    - Quer dizer... Demônios da guarda?

    Desmond riu. E com a risada, tossiu. Estava remexendo toda a poeira dos seus moveis, e Thomas logo começou a espirrar.

    - É tudo muito confuso, Desmond. Como estou aqui se não estou?

    - Thomas, agora que você não está mais preso ao mundo físico, sua visão deve se ampliar. Não basta enxergar o que os homens não enxergam. Para entender, você precisa acreditar no que está vendo. Agora, me traga uma vassoura. E o aspirador de pó. Se me lembro bem, está na despensa, ali na cozinha.

    O sol se põe. Desce lentamente sobre as montanhas do oeste. Do topo do prédio de Desmond, podiam ver o mar. Era lindo colorado naquele tom laranja.

    - São coisas do tipo que compensam vivermos assim. De volta entre os homens.

    Thomas entendeu o comentário do rapaz. Talvez estivesse pronto para dizer a mesma coisa.

    - Desmond, por que os mestres não respondem nossas perguntas?

    O conjurado estava adorando tudo aquilo. A curiosidade do garoto, sua personalidade ingênua e alegre até mesmo depois de morto, tornavam-no o filho que nunca teve, ou o irmão que um dia conhecera.

    - Eles têm medo que você acabe sabendo demais, Tom. Aquela garota no funeral... Perto do seu túmulo... Ela...

    - Era minha irmã. Elia. Sempre fomos bastante... Unidos. Ou melhor, inseparáveis. Minha morte a abalou demais. Ela não tem a mais ninguém, Desmond. Papai sumiu quando éramos crianças e a mamãe... ? Lembrou-se de quando Morte o levou para a estrada, para viver, presenciar o que acontecera a sua mãe. ? Ele a levou.

    - Seu pai? ? O por do sol desconcentrava Desmond.

    - Não. Morte.

    Estavam sentados na beira do parapeito da cobertura. As pernas pendiam soltas da beirada.

    - Sinto muito. É muito difícil. Para eles. E para nós também. Seu corpo... Estava bastante... Machucado.

    - Ah, sim. Eu acho que fui atropelado. Não consigo me lembrar ao certo. Na verdade, acho que nunca parei para pensar nisso. Em como eu morri. E você? Como você morreu?

    Desmond tirou os olhos do sol. Agora, ele já se escondia sobre o cume das escarpas.

    - Não me recordo. Faz uns trinta, ou quarenta anos. Não é importante lembrarmo-nos das nossas mortes. Porque a morte não existe de fato. Existe a dispersão da alma. O que os ceifadores chamam de Passagem. E Thomas, quando se pergunta a uma alma conjurada como ela morreu, ela entende como uma mulher que foi questionada sobre seu peso. É quase antiético.

    E quando Thomas Dewling e Desmond Redville olharam novamente para as montanhas, o sol já havia se escondido por completo, e a noite agora imperava sobre os céus da Inglaterra.


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