O sangue esguichou no jaleco branco e suas mãos moviam-se impotentes, com os dedos empanturrados do rubro liquido que escorria em volumosos filetes em seus braços. No membro esquerdo, seu bíceps encontrava-se em carne viva e no direito, havia um osso da clavícula fugindo ombro afora, com a ponta branca que trespassou músculo e peles até saltar e posar sobre a vista daquela horrenda ferida. As luzes fortes no teto incomodavam seus olhos, mas logo deixou de ser problema, pois já não tinha mais força para abri-los. A dor deixava-o inconsciente. Seu tórax devia ter sido destroçado, pois ao pousar seu braço cansado e semimorto sobre si, sentiu varias costelas quebradas. Não conseguia respirar, e eis seu grande problema. A garganta, por algum motivo fechara e agora havia se cansado de lutar para tomar um ultimo suspiro de ar. O pescoço resumia-se em peles sangrando, arrancada por unhas furiosas, numa feroz luta para respirar. Os gritos e ordens dos médicos e enfermeiros logo se transformaram em ecos confusos e já não os discernia mais. Mas uma voz nervosa e trêmula gritou uma clara ordem, que subitamente foi compreendida: vão anestesiá-lo. Tentou novamente abrir os olhos, mas as dores o deixaram cego. Apenas conseguia ouvir a confusão de sons que aos poucos perdia a importância. E então, o frio atacou-o, golpeando primeiro suas pernas que adormeceram, e em seguida seus braços, com o sangue enrubescendo e secando.
Quando estava sendo levado para a sala de cirurgia, se contorcendo em sua maca que mergulhava às pressas nos infinitos corredores brancos, cobertos pelas luzes fluorescentes dos tetos e paredes, pôde ver por um ligeiro momento a máscara negra em que seu rosto se transformou. O sangue escorrera dos cabelos morenos como a noite, e secou sobre a têmpora, nariz e lábios, formando uma camada escura de coágulo até quase o pescoço.
Conseguiu distinguir mais alguns dos ecos em sua mente. ?Preparem a cânula, a traqueostomia será necessária, e pela bondade de Deus, andem rápido com a anestesia?.
Não tardou e uma máscara de plástico envolvia seu nariz e sua boca, colada ao rosto. Não saía ar dela, não saía nada.
?Ele não respira, não está respirando?, ouviu, e depois: ?Lidocaína, usem a via intravenosa?.
Sentiu uma fisgada perto do punho, uma dor aguda que logo passou, e sentiu-se exausto. Suas ultimas forças estavam indo embora, estavam deixando-o. Era o efeito da anestesia.
Os bips do indicador cardíaco estavam ressoando ainda mais rápidos agora. Dormiu, por fim. E os ecos calaram-se, um silêncio incômodo e tenso instalou-se naquele recinto fechado e frio, cheirando a sangue e a morte.
O ultimo som que pôde ouvir foi um grito agudo ?Tom?. Novamente procurando forças, abriu os olhos por um momento e viu que estava cercado por homens vestidos todos de branco, com jalecos manchados com seu sangue e máscaras tapando suas bocas, mas havia alguém ali fugindo da formalidade. Estava trajando farrapos pretos e um pesado manto de mesma cor. O capuz cobria-lhe o rosto que mais parecia ser um núcleo de sombras infinitas, com ressaltados olhos profundamente azuis, orbitas que flutuavam no escuro, frias e mortas.
E então, o tempo parou e o homem de preto estendeu-lhe a mão. Surpreso, começou a sentir suas pernas e as dores pareciam cessar. Estou sonhando, pensou. Notou que um hálito branco saia da imensidão negra por dentro daquele capuz macabro, mas não estava tão frio assim. Ao menos, não tão frio quanto suas mãos ossudas.
Levantou-se da maca, com a ajuda do estranho e sentiu-se novamente inteiro. Suas feridas haviam sumido, a pele estava novamente limpa. Os médicos não se moviam. Nem mesmo aquele que estava perfurando seu pescoço, em busca de um local para inserir a cânula da traqueostomia. Uma das enfermeiras mais sensíveis havia tentado tomar um pouco de água, mas suas mãos trêmulas deixaram o copo escapar, e agora, porem, estava parado em meio à sua queda, com a água jorrando vidro afora, congelada no ar.
- Olá, Tom. ? disse o homem, se é que realmente era um homem, com seu manto negro pendendo dos ombros e cobrindo-lhe quase todo o corpo, tanto na frente como atrás. Sua voz era fria e morta e até mesmo seu hálito soprava gelado contra o rosto de Tom.
E Tom hesitou. Encarou aqueles brilhantes olhos azuis, que agora pareciam mais vivos do que nunca.
- O...oi... ? gaguejou ? Quem é você?
- Ah... ? suspirou ? Vocês nunca fazem as perguntas certas. ? Encarou o corpo ensangüentado que jazia na maca, rodeado de homens trajando seus impecáveis uniformes brancos.
Thomas compreendeu de imediato.
- Veio me buscar. Eu... Estou morto?
- Morto? ? deu uma suave risada, e passou seu braço pelos ombros de Tom. A roupa negra estava gelada e cheirava à sangue ? Agora você está mais vivo do que nunca, Tom. Não quer vir comigo?
Hesitante, seguiu o homem pelo corredor. Agora já não pareciam tão brancos e as luzes também enegreceram. Viu uma garota, de cabelos negros como os seus, e o rosto encharcado de lágrimas que escorriam dos olhos até pender no suave queixo de seu rostinho em forma de coração. Elia, minha irmã... Minha querida irmã, reconheceu. Estava sendo agarrada por dois enfermeiros corpulentos, contida e impedida de entrar na sala onde seu irmão estava morrendo.
Também permaneciam congelados. Tudo encontrava-se imóvel, incólume e sereno. Não se ouvia um ruído sequer. O mundo parou de girar.
Chegaram à recepção daquela ala, no quinto andar. Duas enfermeiras loiras cuidavam dos telefones, e agora não tocavam mais. O homem permanecia calado.
- Qual é o seu nome? Quero dizer... Você tem um nome, certo?
Um dedo que mais parecia um grande osso magro e enegrecido tocou suavemente o botão do elevador. As portas duplas se abriram, sem soltar um mínimo ruído. O homem entrou primeiro, e virou-se de volta à recepção, fitando Tom, com suas orbitas azuis, cada vez mais ressaltadas.
Da mesma forma como fizera na sala, o estranho esticou sua mão, agora sobre a clara luz do elevador. Tom pode ver que realmente eram ossos, frios e duros, sobre uma fina camada de pele podre que se desfazia aqui e ali.
Sem tocar nos ossos gelados, Thomas entrou no elevador.
- Chamo-me Morte. Apenas... Morte. Mas não julgue o nome. Morte é apenas um nome como qualquer outro. Você acredita na morte, Thomas?
Estou conversando com ela nesse exato momento.
- Eu a... Acho que sim.
O Morte encarava as portas, postado meio corcunda sobre seu gibão negro de mangas longas, que escondiam por inteiro suas mãos ossudas. Seus únicos movimentos eram a suave tremedeira de suas vestes quando respirava, e o hálito branco que lhe escapava por entre o capuz negro. E não disse mais nada. As portas se abriram e ele deu o primeiro passo para fora. Tom seguiu-o, e continuou seguindo por entre a recepção principal, onde se concentrava uma infinidade de caras melancólicas esperando com paciência por algum atendimento.
Lá fora chovia, mas a chuva, assim como todo o resto, estava petrificada. As gotas não terminavam seu trajeto até o solo, e nem ao menos os molharam quando tocaram nelas. Thomas, curioso, passou a mão alegremente por uma rajada de água, mas tudo o que lhe ocorreu foram as gotas batendo em seus braços nus e brancos, e deslizando por ele até se afastarem e continuarem flutuando a meio metro do chão.
Queria perguntar para onde iriam, mas estava também receoso quanto a isso. Então andaram até o fim da rua, ali no centro de Downtown. A Rua Gold começa em centros administrativos de incontáveis andares e depois se transforma numa reunião de altos conjuntos residenciais. Mas ao virarem na esquina com a Rua Ann, onde antes havia o grande centro de consultoria doméstica, um enorme edifício que tomava todo o quarteirão, agora via-se somente uma pequena capela com grandes vitrais dourados e adornados de detalhes compostos por outras cores. Os carros estavam parados, as pessoas não se moviam.
Havia alguns pequenos degraus até a entrada da igreja, onde estavam dois robustos portões de madeira nobre, com ligas de ferro que terminam em dois enormes elos negros, um para cada portão.
Subiram os degraus, primeiro Morte e depois Thomas. Com um suave toque de seus ossos em um dos elos, o portão se abriu vagarosamente. Tom notou que a cruz metálica que havia no topo da sineira se partiu e agora seus restos jaziam na grama verde e aparada, úmida com o orvalho que as cobria, em plena alvorada. Isso também foi de estranheza para Tom. Quando saíram do hospital, estavam no ápice da madrugada, mas agora, um Sol com tonalidades mortas e fracas surgia por entre os grandes edifícios comerciais e suas enormes janelas envidraçadas, no fim da rua.
Entraram na capela. Não era grande coisa, assim como todas as outras. Possuía um altar, todo de madeira, com mais alguns degraus até a hóstia. Thomas esperou próximo à porta, enquanto Morte andava a passos lentos por entre a coluna de largos bancos de carvalho. Subiu os degraus e encontrou um cálice de bronze fosco. Fez um aceno para Tom, chamando-o para mais perto.
- Aproxime-se, Tom ? disse com sua voz calma e suave, enquanto um de seus dedos ossudos saltava da manga e torcia-se, num gesto convidativo.
Tom avançou hesitante com suas pernas ainda trêmulas. Ainda não entendeu o que estava acontecendo desde que se levantou daquela cama ensangüentada onde acredita que deve ter morrido.
Logo atrás do altar, erguia-se um vitral em tonalidades azuis onde estava representado um rio de águas quase negras, com um corvo pairando sobre ele e três homens de gibões escuros. O primeiro carregava uma cruz, o segundo, uma bíblia e o terceiro parecia segurar uma foice, mas essa parte do vitral estava meio quebrada, e alguns cacos faltavam para completar a imagem.
Morte levou o cálice até o vitral e trespassou aquele vidro, e quando puxou, o artefato de bronze estava, por completo, cheio de uma água quase negra.
- Feche os olhos e beba, Tom ? disse e Thomas obedeceu. Fechou os olhos e ao sentir o primeiro gole daquela água fria com gosto de sangue, ouviu sussurros gelados soprarem contra seus ouvidos, mas foram dispersos pelo ecoar de sinos na torre sineira. Sentiu o chão tremer e rajadas de brisas frias atingindo seu corpo. E então abriu os olhos.
Ainda era noite lá fora, embora as primeiras luzes da alvorada já alcançassem os andares mais altos dos prédios daquela rua.
Mas agora, Thomas não estava só com Morte. A criatura negra apoiava-se sobre uma enorme foice, com o cabo de madeira escura, quase parecendo ferro, e uma lâmina sombria que reluzia as luzes das velas acesas no altar. Morte fitava a porta. E isso levou Tom a se virar.
Na entrada, estava uma esbelta mulher vestindo sedas finas, de cores escuras, um tom meio azul meio preto. O vestido deixava à mostra parte de seus seios e os ombros nus, mas cobria todo o resto de seu corpo, arrastando as bordas no chão. As mangas brilhavam num azul muito mais claro, e assim como o negro gibão de Morte, cobria-lhe as mãos por inteiro. Ao seu lado, uma criatura um tanto horrenda. Parecia um castor, ou uma fuinha, Tom não soube identificar. Tinha um focinho que começava em enormes dentes afiados e amarelados e terminava numa redonda verruga negra que devia ser seu nariz. A pele era cinzenta e áspera, não possuía cabelos e tinha mais de dois metros de altura, mesmo com sua postura totalmente curva. Dois grossos braços retorcidos estendiam-se até que as garras afiadas das patas arrastassem no chão. Suas pernas eram pequenas e pareciam atrofiadas, mas seus passos retos mostraram que eram saudáveis. Não vestia nada, mas não parecia ser problema, pois era eunuco.
E numa das vigas de madeira que sustentava o teto, estava sentado um homem com enormes asas negras saindo de suas costas, asas de corvo. Fora isso, era quase normal. Estava trajando uma calça preta, com adornos na cintura e nas bainhas, mas seu peito estava nu e mostrava músculos bem trabalhados. Nas costas, uma silhueta negra pendendo de uma cinta, o que parecia ser uma montante.
- Olá, Thomas Dewling ? ouviu uma voz calmante e suave, e um tanto mais viva do que a voz de Morte. No lugar da quietude oca que estava lá fora com o mundo congelado, agora podiam ouvir o cantarolar dos grilos, o crocitar das corujas e o rastejo de vários outros animais e insetos pela grama e pelo mato alto ? meu nome é Tessália. Sabe por que está aqui?
- Não. ? Tom respondeu secamente.
- Chegou sua hora, Dewling. ? a voz veio do teto.
- Minha hora? ? Thomas estava perdido.
- Sim, Tom. Como nos foi prometido. ? a voz de Tessália acalmava seu coração, embora estivesse com medo. Estava rodeado pela própria morte, por uma bela estranha de vestido e olhos azuis, por uma criatura bizarra e por um corvo negro. ? Sou Tessália, Mestra dos Conjurados.
Thomas não precisou fazer mais perguntas. Sua expressão demonstrou que ainda não entendia nada daquilo.
- Não contou a ele, Lorde Morte? ? perguntou Tessália.
Morte antes parecia quase humano, sobre vestes negras, mas agora era um conjunto de sombras que deslizavam de seu capuz negro e se contorciam até se espalharem pelo chão, quase como gelo seco. Planou sobre o altar, e girou em torno do corpo de Thomas, continuando sua pairada até pousar suavemente com suas sombras negras para perto de Tessália.
- A Conjuração reúne almas prometidas e puras, é tudo que posso dizer por enquanto, Tom. Sua mãe prometeu-nos sua alma, em troca de uma segunda chance para que possa viver. Não se lembra, Tom?
A voz de Morte fez com que estremecesse, e eriçou seus pelos da nuca.
- Morte sempre esteve muito perto de você, Thomas. São quase amigos de longa data. ? Tess falava tão calmamente que sua voz quase não era ouvida, ainda mais com a ofegante respiração da coisa cinzenta que estava ao seu lado.
- É melhor que você veja com seus próprios olhos, para que compreenda, Tom ? disse Morte. Em seguida, pairou com seus mantos negros que se desfaziam em sombras para perto de Thomas, e suavemente, roçou a tez de sua testa com um pontiagudo dedo, que mais parecia uma lamina negra.
- Feche os olhos, Thomas Dewling.
Obediente, Tom os fechou e logo sentiu o chão tremer, uma ventania de mais sussurros gelados e brisas rasantes. Ouviu a madeira se desfazer a sua volta e o chão sobre suas pernas rachar e simplesmente sumir, e então pensou estar flutuando no meio do nada. Foi quando as brisas e os sussurros cessaram que novamente sentiu firmeza nas pernas, e deu por si sobre uma terra fofa forrada de grama alta e descuidada, acompanhada por um mato parasita repleto de ervas daninhas, com folhas de mentrasto a tocar-lhe os dedos e cobrir suas pernas.
Abriu os olhos e o que viu fez com que quase chorasse.
- Elia... E... Eu estou ali também... Aquele sou eu, certo?
- Apenas observe, Tom ? disse Morte, agora novamente parecendo quase humano, rijo ao seu lado.
Duas pequenas crianças, que não deveriam ter mais que nove ou dez anos, brincavam à beira de um pequeno lago, que não deveria ser muito fundo. O mato crescia alto em volta dele. Thomas e Morte não estavam muito distantes, mas pareciam nem sequer estar lá, pois as crianças não deram importância a ambos. Era uma tarde de sol forte, e deviam estar sentindo calor. O garotinho se encontrava com o peito nu e vestia apenas uma bermuda largada.
- Eu me lembro desse dia ? disse Tom à Morte ? estávamos de férias no Texas, com o vovô. Ele morava em algum lugar de Austin e fazia muito calor lá... Foram bons tempos...
- Apenas observe, Tom. ? respondeu Morte, friamente.
Tom tornou a observar as crianças brincando. Já sabia que a garota era sua irmã Elia, e o garoto era ele mesmo. E então, o pequeno Tom, todo sorrisos, entrou no lago, vagarosamente.
?Não está tão fria?, ouviu o garoto dizer. Continuou andando para o centro, afastando-se da margem. Deu um mergulho, molhou seus cabelos morenos e tornou a reaparecer. Elia estava sentada na borda do lago, com as pernas afogadas na água rasa. Tom ainda dirigia-se para o centro, a água já batia em sua cintura e então aconteceu.
O pequeno foi engolido pelo lago e começava a projetar-se violentamente contra a superfície, batendo os braços debilmente. Gritava por socorro e cuspia aquele líquido lamacento. Elia estava desesperada e desatou a chorar, mas pouco depois, Tom estava novamente em pé, com a água batendo na cintura, gargalhando.
?Vou contar pra mamãe, Tom!?, ouviu Elia gritar. O Tom que estava do lado de Morte também riu, mas seu sorriso fechou-se com a rígida expressão que Morte fazia.
- Então, tem algo mais? Eu não me lembro de mais nada importante nesse dia ? disse o Tom adulto.
- Apenas observe, Tom ? insistiu Morte.
O garoto deu mais alguns passos para frente e a esta altura, a água batia em seu queixo. Seus cabelos molhados cobriam-lhe quase todo o rosto. E novamente, aconteceu.
De repente, sua cabeça submergiu naquela parte lamacenta da pequena lagoa, onde não se enxergava o fundo.
?Não vou acreditar nessa, Tom? disse Elia.
Tom estava ficando nervoso ao lado de Morte, que nem sequer se movia, exceto para respirar, mas seu hálito branco era imperceptível à luz daquele sol forte. O centro do lago estava ficando ainda mais lamacento, pois a agitação no fundo estava levantando a terra.
Tom enxergou uma silhueta negra surgindo do mato alto e então viu que era Morte.
- Você também está lá? ? perguntou Thomas.
- Apenas observe, Tom.
- Eu vou morrer? Eu não vou morrer, não é possível, eu...
- Thomas Dewling, preste atenção ? disse a Morte, sem mais rodeios.
Aquele outro Morte estava caminhando até onde o garoto estava se afogando. Ainda não tinham sinal da cabeça de Thomas, mas era possível ver a agitação que seus braços faziam no fundo da água.
- Seu pé havia ficado agarrado numa fenda que o puxou para baixo ? disse Morte.
Elia sumira e pouco depois retornou com uma mulher que devia ser a mãe deles, que desesperadamente mergulhou com roupa na lagoa e não tardou muito, surgiu com o garoto inconsciente no colo. Levou-o para a margem e com o rosto coberto de lagrimas, iniciou uma respiração boca a boca, sem sucesso. Fez pressão contra seus pulmões e coração, mas não parecia funcionar. Morte estava chegando perto, e assim como fizera na maca do hospital, estendeu a mão para a criança enquanto sua mãe batia desesperadamente em seu peito, sem resultando em reanimá-lo.
Mas antes que o pequeno Tom pudesse aceitar a mão ossuda de Morte, esta caminhou para trás até se desfazer em sombras e cinzas. Goles de água saíram de sua boca e sentou-se sobre o mato. Abraçou sua mãe e ao vê-la chorando, chorou junto com ela.
- Essa foi a primeira vez em que nos encontramos, Tom ? disse Morte.
- Tiveram outras vezes? ? perguntou Thomas, mas a Morte não respondeu, pois novamente, tudo ao seu redor estava se desfazendo em cinzas, e então, Tom deu por si novamente num hospital.
- Sim, Tom ? respondeu Morte com sua voz fria ? Lembra-se de quando teve pneumonia?
Thomas não respondeu. As palavras ficaram sufocadas em sua garganta quando viu uma maca passando ligeira pelo corredor branco, com um garoto que não devia ter mais de quinze anos, respirando através de uma máscara. Uma mulher seguia todo aquele movimento, as lágrimas escorrendo.
Tom e Morte acompanharam os médicos até o fim do corredor, onde entraram numa sala parecida com a qual onde Thomas morrera. Irromperam no quarto, mas já havia outro Lorde Morte ali. E dessa vez, o homem de mantos negros chegou ainda mais perto do que chegara quando estava às margens do lago, para estender a mão ao garoto que jazia na cama.
- Nós sempre estivemos muito perto um do outro, Tom ? sussurrou Morte ? e novamente, sua mãe o salvou. Não precisa ver o resto ? cobriu o rosto de Thomas com seu pesado manto negro e frio e o rapaz mergulhou na profunda escuridão de Morte. Mas logo, o frio foi se transformando num calor abafado. O fúnebre tom fluorescente das luzes do corredor tornara-se um aconchegante crepitar de velas e mais velas, num altar de alguma pequena igreja. Uma mulher estava ajoelhada sobre esse altar, rezando para a imagem de Nossa Senhora.
- Foi aqui Tom, onde sua mãe trocou a vida dela pela sua. Você estava internado e eu estive sempre ao seu lado naquela sala, esperando para tomar sua mão e levá-lo comigo. A morte não existe Thomas Dewling. O que existe é uma passagem. Uma passagem para que suas almas caminhem numa nova jornada, uma jornada para a paz e a salvação. ? Thomas viu vários homens loiros vestidos de túnicas brancas com grandes asas de mesma cor saindo de suas costas, e penas suaves arrastando no chão. O mais alto, apoiou uma das mãos no ombro da mulher, que era na verdade, a senhora Dewling. - Sua mãe prometeu-nos sua alma, para que receba uma segunda chance de viver.
Mais uma vez, o chão começou a tremer, as paredes racharam, as velas apagaram e tudo se desfez. Tom já estava se acostumando com aquilo e quando novamente abriu os olhos, estava iluminado por um par de fortes faróis incandescentes. E mais um par destes surgiu atrás de si. Ouviu uma buzina grave e o som de um motor potente. Ouviu o movimento de pneus grossos e engrenagens trabalhando para manter o caminhão em movimento. E ouviu também a voz de Morte.
- Veja, Tom.
O caminhão chocou-se contra o carro que vinha na direção contrária, mas o primeiro prosseguiu seu caminho até sumir de vista naquela estrada. A noite era sombria e o céu estrelado parecia triste, com brilhos foscos e mortos. O carro foi jogado pela ribanceira e capotou até a estrada de baixo. Quando Tom deu por si, já estava novamente em frente ao carro capotado. Havia um pouco de sangue escorrendo da janela quebrada, e cacos de vidro por toda a parte. O outro Lorde Morte também estava ali. Aproximou-se do carro e estendeu a mão para quem quer que estivesse ali dentro. E este não hesitou. Segurou de uma vez a mão ossuda e quando saiu do carro, Tom pôde ver que era sua mãe.
- Então foi assim. ? suspirou - Nunca... Nunca me contaram.
- Sua mãe está muito bem, Thomas. Mas foi nesse dia, em que a promessa foi selada. A alma dela estava conosco, direcionada para o julgamento. Hoje, ela caminha sobre os templos sagrados do Éden. ? Morte não esperava que o rapaz fosse compreender, então prosseguiu a explicação ? Éden é um nível do paraíso, onde os desencarnados encontram a verdadeira felicidade.
- Me tire daqui! Leve-me de volta! Por favor... ? Tom estava se controlando, não queria chorar perante a própria morte.
E então estavam novamente na capela.
- O que eu devo fazer? ? perguntou à Tessália, que estava sentada num dos bancos de carvalho, não muito longe da entrada e nem muito perto do altar.
- Deve vestir seu manto e unir-se à conjuração. Deve nos servir e assim receberá seu direito de viver entre os vivos. Diga-me, Thomas Dewling, o que deseja para sua alma?
Tom sentiu suas pernas voltarem a tremer. Hesitou, pensou, escolheu suas palavras. Seu coração batia forte, mesmo sabendo que já não precisava mais dele. Tomou coragem e por fim, disse:
- Vou servi-los. Vou me unir à conjuração. Mas... Eu não...
- Tudo será explicado na hora certa. ? ressoou a calmante voz de Tessália.
Um estrondoso trovão iluminou toda a capela, trespassando os vitrais. Morte estava novamente pairando em sua forma mais absurda, feita de mantos negros desfazendo-se em sombras e então, sentiu um frio toque em sua garganta.
Acordou. Estava numa espécie de torre sineira. Chovia torrencialmente lá fora, uma tormenta acompanhada de trovões barulhentos e relâmpagos luminosos. Conseguia ver toda a cidade em seu refugio de luz e via também a penetrante escuridão da mais obscura madrugada que já vivera. E uma rajada de vento frio fez com que notasse que estava completamente nu. Olhou ao redor daquele cômodo e viu que havia roupas penduradas numa das paredes. Uma camisa preta, uma calça jeans enegrecida, uma faixa dourada, com duas pontas adornadas de rubis lilases e um grande sobretudo preto, onde pendia um pequeno bilhete do bolso interno.
?Bem vindo à Conjuração, Thomas Dewling?.
Quando terminou de se vestir, notou que só havia uma porta ali. Outro modo de sair do cômodo era a escada logo abaixo do enorme sino, mas preferiu a porta. Abriu-a vagarosamente, ainda receoso quanto ao que estava acontecendo e o que poderia acontecer.
Thomas viu que do outro lado da porta branca estendia-se um corredor com umas cinco ou seis portas de cada lado. Estavam todas abertas, e a cada relâmpago que iluminava o local, Thomas podia ver rostos e mais rostos rindo e chorando em cada quarto. Estava atravessando uma das portas, quando um relâmpago iluminou-o e acabou esbarrando em uma das almas, que logo se desfez quando a escuridão voltou a tomar conta do cômodo. Prosseguiu seu caminho até o final do corredor, onde descobriu uma porta dupla, feita de ferro e bronze, não muito trabalhada em mais detalhes.
Quando chegou perto, a dois passos da grande porta, esta se abriu e revelou uma sala oval, com uma grande mesa de mogno que ia de um canto a outro. Archotes com um fogo azul crepitando iluminava o local no tom mais melancólico que Thomas jamais vira. Ali estava, na extrema esquerda, Lorde Morte em seus mantos negros, depois um homem atarracado de grandes asas negras de corvo. No meio estava Tessália, ainda mais linda e elegante em seu vestido azul, seguida por outro homem corpulento, que usava um elmo vermelho no formato de cabo de montante.
Outros três rapazes de sobretudo e roupas negras estavam sentados em pequenas cadeiras de balsa e fitavam Tom com olhares desconfiados.
- Sente-se, Thomas Dewling ? disse Tessália e Tom obedeceu. Havia uma cadeira de carvalho negro naquela sala, de frente para os quatro pequenos tronos onde estavam Morte, Tess e os outros dois homens. ? Primeiramente vamos responder suas perguntas.
Thomas encarou os quatro, um por um e se sentou no trono negro. Um silêncio incômodo se estabeleceu ali e parecia que Tom estava escolhendo com cuidado cada palavra que diria em seguida.
- Morte me disse que nós nunca fazemos as perguntas certas. Pois bem. Como minha mãe sabia da conjuração?
O homem de asas negras remexeu-se desconfortavelmente na cadeira enquanto Tess e Morte trocavam olhares receosos. O outro varão, que usava seu elmo vermelho carmesim, acabou por soltar uma ávida gargalhada.
- Dêem logo um mestre a esse aí ? disse.
- Eu sei quem poderia ensiná-lo ? sussurrou Morte à Tess.
A mulher cruzou as mãos embaixo do queixo e fitou Thomas pelo que parecia uma eternidade. Por fim, disse:
- Desmond Redville.
Ouvir esse nome fez com que os três rapazes ao lado de Thomas sussurrassem euforicamente.
- Senhora, Desmond dorme desde a última redenção. ? respondeu um dos homens de sobretudo.
- Eu posso acordá-lo ? Morte levantou-se suavemente de seu acento negro, contornando-o em passos firmes, e desceu a escada lateral, andando na direção de Thomas. ? Sim, eu posso. Desmond seria bom para ele, Tess.
- Desmond nos traiu. Vossa Mestra condenou sua mente ao purgatório por mais seis anos ? O corvo estava revoltado. Suas asas faziam com que fossem abrir, mas logo tornavam a se fechar em suas costas.
O olhar de Tessália o silenciou. Voltou a dirigir-se para Tom e depois para Morte.
- Pois então, leve-o consigo, Lorde. Leve-o para o Cemitério e acorde Desmond. Mas venha para cá antes de qualquer outro lugar, assim que o fizer. Desmond pode reagir mal com o Despertar, todos estamos cientes.
Com uma reverência, Morte consentiu com a decisão e guiou Thomas para fora daquela sala. Mas quando atravessaram as portas brancas, não era um corredor negro que se estendia do outro lado, mas uma escadaria de pedra de basalto, que levava para cima. Tom já estava se acostumando a seguir aquela criatura de manto negro, sem saber para onde iriam e sem dizer uma palavra no caminho. Agora, embora ainda estivesse com a mente transbordando de dúvidas e perguntas, não fazia caso de questionar mais nada. Subiram, subiram e subiram e os degraus pareciam não acabar. A pedra úmida estava se tornando cada vez mais escorregadia, à medida que subiam, com o musgo que se acumulava nelas. O calor também aumentava. Pouco depois, Thomas pôde ver os primeiros feixes de luz desde que começara a subir e após mais alguns degraus, notou que estavam abaixo de um alçapão. Antes que tocassem as portas dobradiças, estas se abriram e revelaram uma chuvosa manhã de um novo dia.
Atrás de onde desembocaram, estava a Torre Sineira, onde Tom acordara e vestira suas roupas novas.
- Nós estamos em cima, e subimos mais até sair do chão ? disse para si mesmo.- Nunca pensei que seria tão confuso.
- Não é nada confuso, Thomas Dewling. Sua visão que é demasiado limitada.
- Onde estamos? Não vi esse campo de lá de cima. Tinha uma cidade inteira aqui, eu vi. ? por mais que não quisesse fazer perguntas, as palavras fugiam-lhe de sua boca.
A chuva banhava os dois enquanto andavam naquele campo de grama rasa com algumas ruínas de tijolos e concretos e vários pedaços do que deveria ser uma cerca de madeira, nos limites do perímetro. As gotas pareciam se dissolver nos mantos negros de Morte. Logo abaixo de um salgueiro por onde estavam passando, encontraram dois guarda-chuvas.
- Existem dois planos na Terra. O plano físico e o plano astral. O primeiro é onde os encarnados nascem e vivem. O segundo é a passagem. É pelo plano astral que as almas são direcionadas ao julgamento. Os ceifadores atuam no plano astral. Mas é possível se transferir para o plano físico através dos portais. Existem vários portais, em vários lugares de ambos os planos. Saiba, Tom, que o plano astral é o reflexo do plano físico, assim como, você, que teoricamente já está morto, caso vá para o plano físico, seria um reflexo do plano astral. Sei que parece confuso, mas vai entender. Estamos indo para o portal mais próximo. Vai nos levar para o Cemitério.
Thomas consentiu calado, apenas seguindo Morte, protegido pelo grande guarda-chuva preto, cruzando aquele campo deserto. A chuva não era tão forte, mas ainda sim, chovia bastante, transformando a grama em poços de lama, que sujavam as botas de Tom quando pisava neles. Avistou mais algumas ruínas, que deviam ter sido uma estância. Entraram pelo arco de madeira onde um dia teve uma porta. O assoalho estava corroído, o sinteco já não existia. As paredes descascavam, ao menos onde havia parede. Parte do segundo andar desmoronou sobre o térreo, arruinando o teto e jogando uma pilha de entulhos no meio da sala. Pararam em frente a um espelho meio rachado nas bordas, mas refletia-os perfeitamente.
- É aqui, Tom.
Thomas analisou o espelho, encarou seu reflexo e levantou a mão direita. O reflexo permaneceu parado.
- Não é um reflexo Thomas. É uma projeção. É a imagem da sua alma no plano físico. Alguns espelhos refletem passagens e imagens do plano oposto. Eles podem ser usados como portais. Vamos, toque-o.
Hesitante, Tom esticou um braço na direção do espelho. Estendeu o indicador e suavemente, tocou a borda do vidro. Quando recolheu o braço, viu que já não estava mais sobre as ruínas de uma antiga mansão.
- Meu quarto. Estamos na minha casa. - E então viu Morte saindo de seu armário. - Eu sempre soube que algo se escondia aí de vez em quando. Estamos no plano físico?
- Sim, estamos. Mas não podem nos ver, porque somos apenas reflexos. Agora, venha comigo.
Saíram da casa de Thomas. No plano físico, era noite, mas não chovia. Tom parou por um instante ao ver um Chevrolet Meriva se aproximar da casa. Subiu a rampa da garagem e estacionou.
- Elia. ? murmurou, ao vê-la saindo do carro. Parecia triste, acabada. Seus passos eram lentos, sua postura estava curva e cansada. Puxou um chaveiro do bolso, escolheu uma das chaves e abriu a porta. Quando a fechou, Tom desviou o olhar. Viu que Morte também fitara sua irmã, sem dizer uma palavra. Talvez a grande criatura negra compreendesse a aflição que Tom sentira. Mas logo após Elia sumir, tudo o que disse foi:
- Vamos, Tom. Temos que ir.
Atravessaram a rua. Era um bairro suburbano, onde quase não havia prédios ou construções mais altas que as aconchegantes casinhas de dois ou três andares.
- Não me lembro de nenhum Cemitério por aqui ? disse Tom.
Já do outro lado da rua, viraram a esquina, à primeira esquerda. Se seguissem até o final, chegariam numa pequena vila de cinco ou mais casas, onde se encontra uma grande mansão de arquitetura típica da antiga Inglaterra.
Poucos minutos depois, deram por si perante os portões da mansão. Um muro, não muito alto, de concreto e barras de ferro, que projetavam-se para cima culminando numa afiada ponta de lança negra. Os portões eram compostos das mesmas barras de ferro e formavam um arco.
- É a mansão do velho Franklin. Samwell Franklin. Quando éramos crianças, diziam que era assombrada. Vir até aqui, na verdade, não me surpreende hoje. Conheceu o velho Franklin?
- Samwell Jay Franklin nunca existiu. Foi um disfarce de um conjurado. Era o antigo nosso Zelador. O Zelador é quem guarda o cemitério. Veja, Tom. Enquanto vivia como uma alma encarnada, sua visão limitava-se apenas ao plano físico, ou seja, não podia ver os reflexos do plano astral. Mas agora, você próprio é um reflexo e sua visão sobre os dois mundos é mais ampliada.
Thomas entendeu o que Morte queria dizer assim que olhou para a mansão. Não era só uma mansão. Era agora um conjunto de estruturas semelhantes a pequenas basílicas de arquitetura gótica. Estavam todas ligadas por corredores de pedra cobertos de musgo.
Quando entraram pelos robustos portões principais, deram num salão comunal imenso, de formato oval, que ligava cinco corredores. A textura das paredes estava gasta, mas apesar do ar de abandono, o interior da mansão encontrava-se conservado. Dos cinco corredores, apenas um ficava abaixo das escadas que levavam à outros salões e quartos no andar superior. Morte seguiu justo por este corredor.
No mínimo termina na sala da conjuração, de volta à torre sineira.
Mas quando as portas de término foram empurradas por aquelas mão ossudas, o mais inimaginável foi presenciado por Tom.
A escada começava logo do outro lado das portas brancas, e era ali que agora estavam. Descia em espiral contornando aquele recinto cilíndrico, que parecia não terminar de descer. Mais e mais quartos, iluminados por luzes de tons avermelhados que não vinham de lugar algum, mas alcançavam tudo. Os cômodos preenchiam-se de uma infinidade de estantes que pareciam como macas de necrotério. Desceram três andares e entraram no anexo à esquerda, seguiram por mais longos corredores naquele labirinto de quartos.
- Isso é o que chamamos de Cemitério. Um complexo armazém de almas conjuradas. Aqui elas seguem seu descanso rumo à nova jornada, a liberdade. Mas aqui, também podem sofrer punições. Desmond Redville infringiu muitas de nossas leis, e foi enviado para o purgatório, que pode ser alcançado através do descanso. ? explicou Morte.
- Então as almas que morrem podem ser acordadas?
- Só as almas conjuradas que não terminaram sua tarefa carnal.
Seguiram por tantos cômodos e viraram em tantos corredores, que Tom já havia se esquecido de como voltariam para a escadaria. Apenas seguia Morte, como estava fazendo desde que falecera. Por fim, um molho de chaves surgiu da negritude por dentro das vestes do Lorde, e logo, fincou uma delas na fechadura de uma porta de metal enferrujado.
Entraram no quarto. Thomas não sabia se aquele colossal tamanho era normal para um cômodo do Cemitério, mas deveria ser. Pelo menos mil almas estariam descansando ali.
- Abner, Andrew, Anser, Bay, Boole ? Morte estava sussurrando nomes em ordem alfabética. Tom, ouvindo os múrmuros, entendeu que eram, na verdade sobrenomes. Andaram até o ?R? quando por fim ouviu Morte soprar:
- Redville, Desmond. É aqui, Thomas.
Foi nesse instante que os mesmos sopros gelados da capela onde viu Tess pela primeira vez sopraram sobre o corpo de Morte, fazendo suas vestes balançarem em varias direções. Seu manto esvoaçou pendendo dos ombros. Jogou os braços para frente e as mangas para trás, e mesmo perante aquelas luzes avermelhadas, Thomas não conseguiu enxergar o que envolvia o corpo do Lorde. Parecia ser uma escuridão concreta, uma massa de sombras obscuras.
Os ventos foram se transformando numa névoa macabra e com o gesto de Morte, puxaram a maca número 658 da seção R. Thomas e o Mestre dos Ceifadores se aproximaram da cama estendida.
Desmond era mais novo do que Tom esperava. Cabelos castanhos, feições delicadas, não muito corpulento, membros longos. Os olhos estavam fechados, mas deveria ter a mesma cor dos cabelos. Estava dormindo com um sobretudo branco, e roupas mais brancas por baixo.
- Acorde, Desmond ? Morte apoiou uma das mãos frias no rosto dormente do rapaz. O Redville não deveria ter mais de trinta anos. Talvez não esteja muito longe dos vinte, mas isso pouco importa. A outra mão do Mestre segurava a foice, que surgira junto com os sopros gelados, e com ela, deu um baque surdo no chão. Uma certa energia, sentida por Tom, subiu por entre a haste negra da ferramenta mortal, seguiu pelas sombras e ossos de Morte até se libertar já na outra mão, sobre o rosto de Desmond. O sujeito estremeceu. Seus olhos se abriram. Thomas estava certo, eram castanhos, mas ainda mais claros que seus cabelos. Levantou-se devagar e se pôs sentado. Ergueu os braços se espreguiçando e só então pareceu perceber onde estava. Olhou para Morte e em seguida para Tom. E surpreendentemente, riu. E riu euforicamente, até quase perder o fôlego.
- Dez anos passam mais rápido do que parece ? sua voz estava rouca. As cordas vocais devem ter atrofiado.
- Foram apenas quatro anos, Redville. Acordamo-nos mais cedo. Tem outro dever agora. O pequeno Thomas Dewling aqui acabou de morrer. Queremos que seja seu mestre, mas antes, deve falar com Tessália.
Desmond esfregou o rosto.
- O que aquela vaca azulada deseja comigo? ? bocejou.
O forte suspiro de Morte exibiu sua irritação. Talvez não conseguisse tolerar Desmond, e pelo jeito, era de fato uma tarefa difícil com o gênio forte do rapaz.
Com bastante esforço, Desmond Redville mexeu suas pernas, se apoiou sobre elas e se levantou, saltando da maca. Novamente se espreguiçou, dessa vez enrijecendo as pernas.
- Pois bem. Leve-me à cadela que atende por Tessália.
- Eu mudaria seu tom de voz. Na próxima vez ela pode te entregar aos barqueiros.
- Ora, Lorde Morte, vosso Mestre dos Ceifadores. ? o sarcasmo em seu tom era realmente irritante ? Aprende-se muito com quatro longos anos no purgatório. Ao menos, minha alma está limpinha agora, não é? ? e riu novamente.