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A chuva ainda me parecia muito forte lá fora, fosse onde quer que eu estivesse. Meu corpo não se mexeu quando despertei. Abri os olhos com uma sensação terrível. Acreditava que tudo até então tivesse sido um grande pesadelo, um pesadelo idiota de tão assustador. Havia perdido a chance de dizer a Rose o quanto a amava, e agora ela estava morta. Para piorar, havia conseguido encontrar os assassinos e quase ser morto por eles também. E de certa forma estava mesmo morto agora.
Tudo que mais queria era acordar. E rir muito de toda aquela estupidez, talvez até contar para o Tiago o quanto minha imaginação havia ido longe dessa vez, me pregando uma peça em meus sonhos bizarros. Mas não era possível acordar. Eu já estava acordado, e seria sempre assim de agora em diante. E mesmo em meus ''sonos'', estaria acordado mentalmente enquanto meu corpo dormia.
''Então o que diabos aconteceu comigo agora?'', pensei. Não me lembrava do que havia acontecido, não ouvi nada enquanto estive ''inconsciente'', então aquilo não era sono, fosse induzido ou não. Havia apagado completamente e agora despertava em outro lugar, e com Marcos do meu lado, segurando meu braço decepado enquanto ele era unido novamente ao resto de mim. Podia mover os dedos, era fantástico, eu era um monstrinho de verdade. O corte na garganta ainda podia ser sentido mas era como um machucado agora, não uma fenda aberta por onde entrava mais ar que pela minha boca. Era incrível e assustador. Mas havia algo mais assustador ainda.
- Você está fazendo uma... transfusão? Que droga é essa? - falei, assim que tive certeza de que minha garganta me permitia realizar tamanha proeza.
Havia frascos grandes de sangue, dois deles quase pela metade, pendurados um de cada lado de meu corpo. Uma mangueira fina sendo injetada no braço direito e outra com a agulha direto em meu pescoço.
- É para sua recuperação - disse Marcos, sentado ao meu lado, agora soltando meu braço recém concertado. - Agora a pouco você consumiu dois frascos daqueles, e estou abastecendo você até que se cure. O problema é que apesar de se curar numa velocidade alta demais para os padrões dos vampiros comuns, você consome muito sangue para isso. Eu não estava preparado, e por sorte tínhamos o sangue dessa garota para usar em você. Receio que sangue humano seria fraco demais para te curar tão rápido.
A poucos centímetros de mim, do lado que ainda não havia percebido, estava Karen. A garota que havia levado um golpe de estaca pelas costas, que atravessara seu peito e desde então parecia mais morta que o habitual. Também havia frascos conectados a ela, mas estes lhe tiravam o sangue.
- Os dois que te aterrorizaram e arrancaram seu braço fugiram. Só pra você saber... - disse Marcos. - Embora tenhamos conseguido explodir algumas partes deles antes disso. Não acho que vão se recuperar rápido como você está fazendo...
- A estaca ainda está nela... Por que não tirou? - perguntei, interrompendo-o.
- Se tirar, o coração dela volta a bombear sangue, mesmo que seja pouco. Ela se levanta e agarra você, morde e suga seu sangue de vampiro, mesmo que seja apenas um gole. Então irá fugir daqui antes que possamos capturá-la... - disse Marcos, ajeitando seus velhos óculos - Uma estaca não mata um vampiro, apenas o põe em ''torpor'', um estado em que o vampiro se desliga, ou hiberna, pois não há sangue sendo bombeado para parte alguma do corpo. Como aconteceu com você, que entrou em torpor por ter usado todo o sangue para se curar, até que se acabou. No caso da garota, o coração foi praticamente destruído pela estaca, e enquanto ela estiver lá não irá deixá-lo se recuperar. Se o coração não pode bombear sangue, o vampiro permanece em torpor para que guarde sangue suficiente em seu cérebro e não ''morra''.
- Então ela ainda não estava morta... Desde quando faz esse tipo de coisa? - disse, sem poder esperar mais.
- Desde que você ainda nem existia nesse mundo. - respondeu Marcos, levantando-se calmamente.
Percebi finalmente que estávamos em movimento. Era a traseira de uma van, algo assim. Ergui a cabeça um instante, vi mais algumas estacas penduradas nas laterais do carro. Não haviam janelas além das que ficavam na frente. Imaginei quem estaria dirigindo, estava curioso e ansioso para comprovar algo que me veio à cabeça sobre o parceiro de Marcos.
- Me surpreendi muito ao saber que um de meus alunos mais queridos havia se tornado justamente aquilo que vivo para exterminar - disse Marcos, me encarando por cima dos óculos retangulares e estreitos, e por um momento imaginei se nossa antiga amizade era o único e real motivo para que ele me salvasse. - Fiquei sabendo das coisas horríveis que tem ocorrido nesses últimos dias ao redor de você e de seus amigos. Rose está morta, e para muitas pessoas, você poderia muito bem estar também. Tiago, anda triste, muito abalado. Tentei falar com ele, até mesmo saber se tinha alguma idéia de onde você poderia estar, se acaso tivesse decidido se esconder por ai.
- O que ele disse? - questionei.
- Não disse muita coisa. Não está lidando bem com a perda de Rose, mas me disse algo que me deixou intrigado. - Marcos fez uma pausa, olhando para a garota paralisada ao meu lado, no chão gelado da van. - Disse que se você estivesse vivo por ai, talvez não quisesse mais ter contato com ele ou qualquer outra pessoa de sua antiga vida. Que talvez tivesse deixado tudo para trás, abandonado as coisas que te traziam tanta dor. Disse para mim que conversou com uma de suas amigas, Fernanda, a garota que vivia atrás de você...
Não pude deixar de notar um pouco de nostalgia, batendo de leve em alguma parte de meu coração demoníaco. - O que eles tem conversado? - perguntei, pensando talvez pela primeira vez em Nanda, que tanto se preocupava comigo.
- Fernanda disse a Tiago que não era doloroso apenas para ele, mas de igual modo ou mais para você, Leandro. A garota disse ter certeza de que você gostava muito de Rose também, e que temia por sua segurança agora que havia desaparecido. Ela quer que Tiago a ajude a procurá-lo, e tem certeza de que você está vivo. Tiago não parece ter dado muita atenção para ela, aliás, tem agido de forma estranha também. Temo que esteja planejando alguma besteira, seus pais me pediram para lhe dar conselhos à respeito de todo o ocorrido. É uma tragédia para todos os amigos e familiares envolvidos.
Tateei meu braço novo com a outra mão. ''Tragédia'' era pouco demais para definir o que esteve acontecendo. Era um circo dos horrores com direito a sangue por todos os lados.
- Vou direto ao ponto. - disse Marcos novamente, interrompendo meus delírios. - Tenho meus motivos para ser um caçador. E parte de mim está contaminada com sangue de vampiro. Fiz isso comigo mesmo, por necessidade ou não, e aqui estou. E não descanso, até terminar o que comecei meu caro Leandro... Mas e quanto a você? O que te torna um amigo para mim, ou um possível aliado? Soube pelo meu sobrinho, que você não só havia sido ''transformado'' como também se uniu ao Clã de Lucius...
A van havia parado já a alguns segundos mas fiquei ali, tentando ligar algumas coisas. Então tive certeza, antes que ele pudesse descer e abrir as portas traseiras da van. Já sabia dizer quem era o parceiro de Marcos. O motorista da van. Alguém que já tinha tido contato comigo.
A porta se abre com violência e Natan surge na frente da porta com uma arma enorme, uma espingarda calibre doze apoiada no ombro.