A Taverna era um lugar agitado. Naquela noite, havia garotas esbeltas exibindo suas belas pernas no palco, acompanhando a música agitada da banda que tocava ao fundo. Homens embebedavam-se e riam monstruosamente, alguns jogavam e apostavam, e quase sempre, nessa roda de jogos, alguns saiam lutando até ambos caírem bêbados no chão. Nick aplaudia ao ritmo da música, admirando de perto as dançarinas no palco e Kyshme conversava com antigos amigos, próximo ao bar. Selenium estava sentado, com a cadeira equilibrada em dois pés e por sua vez, apoiou os seus sobre a mesa de mogno, onde estava um corno de cerveja vazio. Naquele canto isolado da taverna, a sombra cobria metade dessa mesinha e também, todo o rapaz, deixando a vista da luz apenas suas botas negras e sujas. Esse homem era de longe, o que mais chamava atenção. Sua aparência física era considerada por muitos, sobre-humana. Olhos dourados e cabelos leve e naturalmente azulados não são comumente vistos por aqui. Seus lábios têm um tom entre azul e lilás. E os mitos sobre esse cavalheiro da Dinastia do Sol são incontáveis. Era freqüente esse tipo de conversa em tavernas. Em geral, ouvia-se sobre um suposto pacto com demônios, ou de sua origem divina. Contudo, esse aspecto físico é típico dos nascidos na mítica Terra Das Ilusões. Na época dos seis anciões, esse era um lugar próspero e desenvolvido, mas com a chegada dos monstros e demônios, e com eles a guerra que originou Dong Xuen e as seis academias, o lugar se transformou em ruínas e desertos que abrigam antigos demônios. Por isso era difícil conhecer algum descendente direto de antigos habitantes dessa cidade arrasada. Eles chamavam esse povo de Lazuli.
Selenium encarava uma moça, bem acompanhada de alguns rapazes e lindas amigas. O cavalheiro sabia ler a alma dos homens. Apenas um cruzar de olhares bastava para que identificasse seu caráter, seu passado e ainda, suas intenções. Mas a forma como encarava a garota era diferente. Já havia descoberto que ela não estava ali para dançar, jogar ou beber. Mas seus cabelos negros e ondulados chamavam tanta atenção... Seus olhos escuros como a noite pouco antes da alvorada, olhos meigos... Isso o incomodou. Tratou de desviar o olhar para as dançarinas.
A guarda imperial vive enviando pequenas patrulhas periodicamente na Taverna. Nunca acontecia algo demais, apenas alguns beberrões advertidos aqui e ali.
Na mesa de jogos, alguém estava se dando bem. Olhares desconfiados começaram a ser avistados e gritos de comemoração mais intensos. Era um pequenino bem vestido. Devia ser algum aluno ou coisa do tipo. A Antiga Taverna não é lugar para pequenos. O garoto metia-se entre inúmeros brutamontes e os desafiava no tal jogo. Foi um susto geral quando a guarda imperial rompeu arrombando a porta da Taverna com espadas em punho. Um homem que se diferenciava dos outros através do uniforme olhou de soslaio para a mesa de jogos. Devia ser algum comandante.
- Peguem-no! ? gritou apontando para o garoto das apostas. Selenium não se mostrou surpreso. Levantou o dedo chamando uma serviçal, que lhe deu mais um copo cheio.
Três guardas avançaram lentamente na direção do pequeno. Este pegou seu dinheiro e tentou correr para os fundos. Mas outro guarda já havia se interposto na porta. Então o rapaz deu meia volta exibindo hábeis movimentos, e catou uma cadeira do chão, arremessando-a contra a vidraça e saindo pela janela. Os outros, pouco fizeram além de observar, e alguns caiam em gargalhadas. A cadeira de Selenium agora estava vazia, mergulhada nas sombras da Taverna.
Os guardas montaram e armaram suas bestas. Naquela rua, o jovem escalou um casebre ali perto, e já no teto, escalou ainda mais uma casa ao lado. Acompanhando o garoto correndo no topo das casas geminadas, um dos guardas preparou sua besta e a apontou para o rapaz. Fez o disparo e acertou seu pé, fazendo-o tropeçar e cair, rolando até a borda daquele telhado. Antes da queda, que lhe custaria muitos ossos e com certeza as duas pernas, agarrou-se na laje. Outro guarda mirou sua besta. Talvez fosse apenas derrubá-lo, talvez tornasse o tiro letal. Mas nada aconteceu quando disparou. A flecha que ia cortando o vento na direção do pequeno simplesmente sumiu.
- Algum problema, senhor? ? disse Selenium, saindo das sombras de uma viela.
O homem viu a insígnia da dinastia do sol no sobretudo do Cavalheiro.
- Este jovem está sendo procurado pela guarda imperial por vandalismo, devemos prendê-lo na casa de sombras, como nos foi ordenado.
'A temível casa de sombras', pensou. Era, realmente, um lugar horrendo. Uma espécie de solitária, mas coletiva. Lá era onde colocavam os mais insanos e doentios bandidos, ladrões e estupradores, condenados a ficar confinados por anos à deriva das sombras. A loucura tomava conta desses condenados, e os relatos do que acontece naquela casa são facilmente achados em histórias de terror que se contam ao redor de fogueiras, ou em antigos livros confiscados pela guarda imperial.
Então o outro cavalo, que havia sido deixado para trás, alcançou o restante do grupo. O garoto acabou caindo, mas Selenium o segurou e o manteve em pé, imobilizando-o com a mão em seu ombro. Seu pé estava vazando sangue e a flecha ainda estava lá. Sua bota ficou quase por completa vermelha. A dor devia ser infernal.
- Diga-me senhor, comandante, o que leva um jovem de não mais de dezesseis anos a ser condenado à casa de sombras? ? disse o Cavalheiro. O garoto estava ficando inquieto, intimado pelas bestas apontadas para o seu rosto.
- Este pirralho destruiu nosso bar. Foi o único que estava presente na hora, só pode ter sido ele.
- Bar Ou Yang, você diz? Destruído?
Ainda não eram motivos para uma pena tão grave.
- E alguém morreu ou ficou ferido? ? disse calma e friamente. Selenium não era do tipo que exibia expressões ou sentimentos tão facilmente.
O Senhor Comandante olhou para o garoto.
- Este verme matou dois de nossos superiores que almoçavam lá. E ainda encontramos incontáveis corpos carbonizados! Jovens alunos, garotos inocentes! Esse pequeno é um monstro, merece ser punido! ? rosnou, perdendo a paciência.
- Por que eu faria algo assim? ? intrometeu-se Uchiha. ? Eu só estava almoçando, não fiz nada, absolutamente nada. Meu único erro foi ter rejeitado a comida da minha cantina.
Selenium sabia que o pequeno era inocente. Sua alma era pura.
- Você foi visto por vários matando inocentes. Todas nossas testemunhas dizem o mesmo. ? prosseguiu o Senhor Comandante Mota.
Selenium olhou para o garoto, que por sua vez, olhou de volta para o Cavalheiro.
- Diga para eles, senhor, diga que não dão armas com gume para alunos ? disse desesperado.
- Não posso. ? respondeu Selenium ? Levem-no.
O garoto começou a gritar e a chutar, seu pé jorrava sangue da flecha atravessada, mas o desespero o fez ignorar a dor. Gritava que era inocente, alegava, mas os violentos guardas o silenciaram com uma bofetada na cara, usando o pomo da espada. Desmaiado e babando sangue, amarraram o jovem no cavalo e foram embora para o centro da cidade. Selenium assistiu aquilo tudo calado.
Mais ou menos uma hora depois do pequeno vândalo fugir alucinadamente, Kyshme e Nick decidiram que já era hora de deixar a Taverna. Faltavam três horas para a alvorada e precisavam descansar. Procuraram por Selenium em todos os cantos, mas só quando saíram que esbarraram com ele naquela rua. Montaram seus cavalos, que foram dados sob as ordens de Martini, Senhor Intendente da Dinastia do Sol. Pouco conversaram sobre o que tinham visto. Não era grande coisa, afinal, nunca houve uma noite pacata naquela Taverna. O sobretudo de Selenium estava manchado de sangue, mas mesmo na escuridão da rua deserta, Kyshme notou isso. Não ousou perguntar. Estavam passando no Palácio Imperial quando Nick parou para ajeitar as rédeas. Aquela praça era bem iluminada assim como todo o palácio. Naquela mesma hora, uma carroça negra e comprida, puxada por seis alazões também negros parou em frente à grande porta da magnífica sede do império. Kyshme e Selenium pararam para admirar, montados, enquanto Nick pouco se importava. As rédeas eram sua preferência. As quatro portas da carroça, com detalhes dourados, se abriram, e de lá saíram figuras um tanto interessantes. Todos se pareciam com Guardas Imperiais, exceto um. Este se vestia todo de negro e nas costas carregava uma manta comprida e bem trabalhada, com a insígnia de Dong Xuen. Estava muito bem vestido, e além da espada embainhada, escondida entre as vestes e a manta, carregava uma magnífica Montante ? uma espada de duas mãos ? feita de aço Noraniano, o mais nobre dos aços, feito na Cidade Da Saudade. Caminhou com ar superior por entre os degraus do palácio até ser recebido na porta por Puma e Feng.
- Deve ser o novo capitão da guarda. ? disse Kyshme. ? E veio bem preparado. Pelo visto, já deve estar ciente do que o aguarda nesse cargo.
Selenium riu suavemente.
- Esses demônios... Adoram homens com manta. Esse aí não durará muito.
- Precisa de ajuda, Nick? ? Kyshme estava ficando impaciente.
- Não, estou perfeitamente dando conta dessa maldita rédea.
Pouco depois, saíram dali e foram para o pequeno castelo da Dinastia do Sol, próximo a muralha da cidade. O homem de preto entrou no palácio, reverenciado por Puma e por Feng. Os outros quatro homens foram levados para o quartel atrás do Palácio. Guiaram o cavalheiro pelo corredor, até o Salão principal. Puma abriu a porta da direita e Feng da esquerda e se posicionaram ali perto. Havia um homem ensangüentado, acorrentado, seminu e de joelhos. Na mesma sala estavam os mais importantes ministros e conselheiros, entre eles Bushido, mestre das armas e Lucário, mestre da moeda. Feng andou vagarosamente para perto do homem ajoelhado.
- Este homem é um desertor. Ele foi capitão da Guarda Imperial e você o substituirá. Agora cabe a você julgá-lo, para provar que tem potencial. ? disse Feng para o homem de preto.
- Você sabe a pena dos desertores, senhor? ? disse Puma, desafiadoramente.
É claro que o homem sabia. Todos sabiam. Desembainhou a Montante e a segurou com apenas uma mão. O metal de quase três quilos tiniu no chão. 'A Lendária Espada Pesada', invejou Puma. Avançou contra o homem ajoelhado e ergueu a espada sobre sua cabeça. E agora ia desferir o golpe fatal. Quando desceu a arma até o frio da morte eriçar os pelos da nuca do homem ajoelhado, o golpe foi interrompido.
- Espere! ? gritou Puma. ? Não vai permitir que diga suas últimas palavras?
O homem de preto encarou-o.
- Prossiga ? disse para o condenado.
A princípio pensaram que ele não falaria nada, mas logo começou a gaguejar e murmurar palavras.
- Todos... Todos nessa sala...
Alguns ali começaram a trocar olhares, e o pobre condenado continuou.
- Todos... ? riu ? Estão mortos.
Em seguida, o aço verde azulado da Espada Lendária cruzou seu pescoço e sua cabeça caiu e rolou no chão. O corpo esticou-se no carpete vermelho e o sangue jorrou nas botas negras do homem sinistro.
- Como o chamam na Terra Da Luz perdida? ? perguntou Feng.
Embainhou a espada melada de sangue nas costas e ergueu a cabeça encarando o Capitão de Proteção.
- Sargento Zero.
Feng fez uma breve pausa e então prosseguiu:
- Sargento Zero, eu o nomeio Capitão da Guarda Imperial. Deverá fazer o juramento diante de seu exército e de sua patrulha, deverá vestir o manto Imperial. Seu dever será sua prioridade e sempre me obedecerá.
- Sim, senhor Capitão. ? respondeu obediente.
Quando foram dispensados, os ministros e conselheiros voltaram a seus afazeres. Lucário foi apressadamente ao banheiro. Apoiou-se na pia e vomitou. Quando recuperou as forças, lavou o rosto e se olhou no espelho. "Pouco tempo. Já devem estar chegando. Estão atrasados. Estão atrasados, isso. Eles vêm, eu sei que vêm, só estão atrasados". Secou o rosto na veste azulada ? negra. Voltou para seus aposentos e desesperadamente pegou numa pena e começou a escrever uma carta. Recolheu seu corvo da gaiola e amarrou a carta nele.
Na manhã seguinte, Kyshme acordou com fortes batinas na porta do quarto. Levantou e se vestiu para atender a porta.
- Feng, eu não o esperava.
- Claro que não! ? estava sozinho. O Senhor Capitão de Proteção nunca anda completamente sozinho. Em geral, está cavalgando com seus guardas de manto azulado-negro. ? Posso entrar?
- Você já está aqui. ? Kyshme respondeu em tom sério. ? Diga, meu amigo, o motivo dessa... 'Inesperada' visita.
- Ontem de noite nomeei o novo Capitão da Guarda Imperial.
- Já estava na hora. Os vândalos tomam conta da cidade hoje em dia. E o que fizeram com o antigo Capitão?
- O desertor? ? perguntou com desprezo ? Ele teve o julgamento de um desertor e a punição de um desertor.
'A morte', murmurou Kyshme.
- Estou indo para o Bar Ou Yang. Ou o que restou dele. Quero entender o que aconteceu lá. Você vem?
Kyshme hesitou em responder, mas acabou indo também. Por outro lado, Selenium cheirou o pequeno pedaço de concreto carbonizado.
- Fogo azul. ? disse largando o objeto.
- Como é? ? perguntou Nick, pouco preocupado.
- Fogo azul. Apenas demônios produzem fogo azul. Esse lugar foi destruído por demônios e sobrou para o pobre garoto.
- Não acha que se demônios tivessem passado por aqui matando todos, não iriam notar?
- Não esse tipo de demônio, Nick. Raposas Malignas entram no corpo dos homens e os levam a fazer coisas horríveis. Isso explicaria muita coisa.
Feng aplaudiu ao fundo, de cima de seu cavalo.
- Vejam só nosso, Demonólogo. E então senhor imortal, encontrou algo útil?
Kyshme olhou de soslaio para o Capitão. Era um dos poucos que sabiam a verdade sobre Selenium, e Feng abusava disso. E chamá-lo de Senhor Imortal o irritava profundamente.
- Eu soltaria o garoto no seu lugar, Senhor Capitão. ? respondeu o Lazuli. ? Prender um menor de idade numa casa de sombras pode custar seu cargo.
Feng riu daquilo.
- O garoto fez uma chacina por aqui, ainda existem restos carbonizados por todos os cantos. E esse cheiro de morte que me enjoa. Esse pequeno vai apodrecer nas sombras, guarde minhas palavras.
Os lábios azuis de Selenium se mexeram desconfortavelmente. O rapaz estava irritado. Odiava Feng. Permaneceu calado e se retirou, sem virar para trás enquanto o Senhor Capitão se desculpava sarcasticamente. Kyshme ficou calado. Feng era um sujeito fácil de irritar, e contrariá-lo era uma estupidez.
- Demônios ? o Capitão cuspiu no chão ? Como eu odeio demônios.
Kyshme, Nick e Feng ficaram duas, talvez três horas a fio nas ruínas do bar.
- Pobre Ou Yang. Nunca encontraremos um mestre cozinheiro tão talentoso. ? disse Nick, em tom seco e triste. Kyshme ignorou o comentário.
- Vou voltar para os palacetes. Arrumarei nossas coisas.
- Pretendem partir?
- A formatura é em duas semanas, Feng. Precisamos tomar rumo a Estrela de Fogo o quanto antes possível.
- Formatura.. Tinha me esquecido completamente. Fico surpreso que vocês foram convidados. Mas não posso deixar que partam.
Kyshme se surpreendeu com o que ouviu.
- O QUÊ? COMO ASSIM?
- Abaixe o tom de voz, rapaz. Não posso deixar que partam. Os ataques de Demônios têm sido cada vez mais freqüentes. Estamos planejando uma investida contra as Terras Prósperas. Queremos acabar com essa ameaça de uma vez por todas.
Agora era a vez de Kyshme rir.
- Quer colocar homens nas Terras Prósperas? Faça-me rir, senhor Capitão. ? virou as costas ? vamos Nick, o tempo está fechando.
- NÃO VIRE AS COSTAS PARA MIM! ? gritou Feng desembainhando bruscamente a espada e apontando-a para Kyshme, que se virou sem dar importância para o metal precioso quase roçando seu rosto.
- Ou o quê? ? desafiou ? Vai mesmo ferir um cavalheiro da Dinastia do Sol? Escute, senhor Capitão de Proteção, minha dinastia está muito acima desse império. Enquanto você não carregar a insígnia Solar no peitoral da sua armadura, não será você que me dirá o que fazer.
Feng abaixou os ombros e embainhou lentamente a espada. Kyshme virou-se novamente e já estava se preparando para montar.
- Kysh.. Eu peço... Por favor... Sua dinastia está ocupada com as próprias guerras, vocês são os últimos com quem podemos contar. Por favor, Kysh...
"Ele está com medo", pensou encarando a expressão no rosto do Capitão Feng.
- Descarte qualquer plano que você tiver. Levar homens para as Terras Prósperas é suicídio. ? disse, por fim, o Cavalheiro.
- Quero você no meu conselho, Kyshme.
Isso irritou Kyshme profundamente.
- Não sou eu quem você deve chamar. Nós dois sabemos muito bem quem seria melhor para combater demônios.
- Ele não pode ser do conselho imperial. Ele é um Lazuli.
Agora o cavalheiro encarou o Capitão de Proteção.
- Você me dá nojo, Feng.
Montou no cavalo.
- Vai nos ajudar? Vai ajudar seu reino?
Nick riu de leve, montado no cavalo ao lado.
- Vamos nos reunir no Palácio do Senhor Bei Si. Selenium estará lá. ? disse Kyshme.
- Pretende por o Lazuli na presença do vosso Diretor?
- Este não é meu reino, senhor. É do vosso Diretor. Se quer mesmo salvá-lo, dará ouvidos a um Lazuli.
Nick e Kyshme partiram ao trote dos cavalos.
Observava o Sol se escondendo no lago gigante ao fundo, muito atrás da muralha. Seus olhos dourados podiam observar-lo pelo tempo que fosse, sem que se incomodassem com o excesso de luz. Mas agora, o gigante símbolo da mais poderosa Dinastia dos cinco impérios estava num tom alaranjado e já não incomodava mais a vista de homens normais. Olhou um corvo preto que pairou em frente à torre e depois pousou na borda da cobertura, perto de onde Selenium estava sentado. Um comportamento estranho, já que corvos não gostam de homens e a presença de um Lazuli desconforta qualquer animal.
- Olá, Altharie. ? disse ao corvo preto.
Sombras negras circularam o corvo e logo, a ave criou pernas e braços, e por entre a roda de sombras já se via um rosto humano.
- Faz muito tempo... ? disse o corvo humano. Agora estava quase um humano, se não fosse o gigante par de asas negras em suas costas nuas.
Selenium deixou que terminasse a frase.
- Que não vejo o Sol. ? completou o demônio.
- Está o vendo agora.
- Não esse sol, meu caro Lazuli. Estou falando da Dinastia. Há muito tempo não sinto o gosto de sangue dos guardiões sagrados.
- A Dinastia do Sol está em guerra com a Dinastia do Lenço Preto. Não vai vê-los tão cedo no Norte.
Altharie suspirou.
- Essas coisas não nos contam.
- Vocês andam por esses lugares todas as noites, visitam bordéis e tavernas como se fossem homens, e ainda vejo muitos encantando mulheres humanas. Com essa convivência, acho difícil esperar que estejam por fora das coisas... Agora, conte-me, velho amigo, quem é a moça dos cabelos negros e ondulados?
O demônio alado pareceu surpreso.
- Do que estás falando?
- Na madrugada de hoje, na Antiga Taverna, eu vi uma garota um tanto interessante. Linda, por sinal, mas não era humana.
Sua alma era negra.
- Sese... Não sabe que é feio espiar na alma dos outros?
Selenium deu um risinho e continuou:
- Primeiro uma Enviada aparece na Antiga Taverna, e depois ficamos sabendo que o bar Ou Yang pegou fogo. Diga-me, a garota tem algo haver com isso?
Altharie não respondeu. O Lazuli prosseguiu:
- Quando entrei pra Dinastia do Sol, fiz meu juramento, e você sabe disso. Sabe que preciso matar todos os demônios que surgem nas cidades da Dinastia. Enviou uma garota porque acha que não posso matá-la. Muito esperto.
O corvo riu.
- éembro da época em que eu tinha que explicar as coisas pra você... Agora vejo que os papéis se inverteram...
- Se essa garota não sumir até amanhã, juro que vou matá-la. Nosso Capitão de Proteção me odeia por puro preconceito.
- Esses humanos... ? interrompeu Altharie, mas logo Selenium tratou de continuar.
- Queimar bares e tavernas só piora minha situação.
- Terminou? ? disse Altharie, em tom brincalhão. ? Ótimo. Agora me escute. Viktor está irritado. Não são nossos demônios que estão atacando vocês. Seus homens não podem ir as Terras Prósperas. Somos inocentes.
Altharie é um poderoso demônio caçador. Ele é um cachorro louco, mas domesticado. Se o dono decide libertá-lo da coleira, então os humanos terão um grande problema. Demônios são falsos e mentirosos, e o fato de não possuírem alma deixa Selenium ainda mais desconfiado. Tudo é mais fácil quando se pode ler a alma do indivíduo. Mas Selenium sabia que não estava mentindo. Conhecia Altharie de longa data.
Agora o Sol se pôs por completo e a escuridão estava tomando conta do Norte.
- Não mate a garota, Selenium. Ela está aqui por outros motivos.
- Posso pelo menos saber o nome dela?
Altharie se levantou. A vista do topo daquela torre, onde estavam, era magnífica. Sombras rodearam o corpo e as asas do demônio e ele foi se desfazendo, e penas negras foram sendo levadas pelo vento. E ouviu um sussurro:
- Andreza.