Procura-se um Marido

  • Aelita
  • Capitulos 6
  • Gêneros Romance e Novela

Tempo estimado de leitura: 2 horas

    18
    Capítulos:

    Capítulo 6

    Capítulo 6

    Álcool, Hentai, Linguagem Imprópria, Sexo

    - Ah, meu Deus! - Mari exclamou ao abrir o jornal e ler a seção de classificados. - Você não fez isso!

    - Ficou bom?

    Ela me lançou um olhar severo antes de começar a ler em voz alta, sentada à mesa da pequena, porém organizada cozinha.

    Procura-se um marido para curta temporada. Homem emtre 21 e 35 anos, que tenha imóvel próprio e emprego estável, disponível para matrimônio. Boa aparência não é exigida. Apresentação de antecedentes criminais obrigatória. Casamento de aparência. Sexo está excluído do acordo. Paga-se bem no término do contrato. Tratar com Lili pelo telefone...

    - O que você acha, Mari? - perguntei, roendo as unhas

    - Acho que você enlouqueceu de vez! - ela baixou o jornal. - Como você vai pagar alguém para ser seu marido? Você está mais dura que o pão da minha mãe!

    Suspirei exasperada

    - No final do acordo, você não prestou atenção? Quando eu tiver a minha fortuna de volta.

    Ela revirou os olhos escuros e bufou.

    - Você ficou doida, só pode ser!

    - Doida não, desesperada - argumentei. - Agora é só esperar pra ver o que aparece.

    - Lucy - ela inspirou profundamente, me encarando com determinação. - Você não pode se casar com total desconhecido. Isso é loucura!

    - E por que não? Casamento arranjado foi uma prática muito comum e bem-sucedida no século passado.

    - Bem-sucedida? Meu Deus, de onde você tirou isso? As pessoas eram infelizes, e os maridos tinham pencas de amantes. - Ela bateu a mão fina no tampo da mesa de maneira imperiosa. - E as coisas mudaram! O mundo mudou. Você não pode morar com um cara que não sabe nada sobre você, ou pior, que você nem conhece. Ele pode ser um psicopata, um pervertido ou coisa pior!

    Revirei os olhos

    - Você acha que eu não sei disso? Foi por isso que pedi o atestado de antecedentes criminais

    Sua boca se escancarou, choque e raiva se estampavam em suas feições delicadas. Mas então ela se recuperou, me lançando um olhar cheio de escárnio.

    - E você vai apresentar o seu? - arqueou uma sobrancelha desafiadoramente. - Porque duvido que algum homem queira se casar com uma mulher que já foi presa em todos os cantos do planeta.

    - Eu não fui presa em todos os cantos do planeta! - reclamei ofendida. - Só aquela vez em Amsterdã... e aquela na Tunísia. E... uma na Bulgária. Mas foi tudo um mal-entendido. Como eu ia saber que não podia chamar o policial de filho da puta fascista? Ele queria confiscar meu MP3, pelo amor de Deus! Além disso, sou eu quem está alugando um marido, não vou precisar apresentar nada - sorri animada. Eu cumpriria a cláusula imposta por vovô, mas do meu jeito!

    Mari se recostou na cadeira, passando a mão pelos cabelos negros.

    - Se é assim, não seria mais seguro casar com alguém que você já conhece? Um amigo ou ex-namorado?

    - De jeito nenhum! Um ex-namorado ia começar a ter ideias depois de um tempo. Um amigo provavelmente ia ter ideias antes mesmo de eu dizer sim perante o juiz. Complicaria tudo. Um conhecido poderia deixar escapar alguma coisa por aí sobre a minha tentativa de burlar o testamento. Com um estranho não coro esse risco. São apenas negócios. É o plano perfeito.

    - Tudo bem. Vamos supor que você esteja certa e que alguém te ligue. Quem responde a anúncios desse tipo? Gente normal é que não é.

    - Não sei - suspirei pesadamente. - Vou torcer pra alguém responder. Esse anúncio custou muito caro. Tive que usar o cartão de crédito pra pagar o jornal ontem à tarde, e graças a Deus ainda funcionou ainda funcionou. Não pense que estou feliz com isso, Mari. Eu não escolhi nada disso. Só estou seguindo o fluxo e me virando como posso.

    Ela sacudiu a cabeça, fazendo os cabelos longos tremularem.

    - Você ficou doida mesmo. Vamos logo pro trabalho antes que você se atrase de novo e tenha mais descontos no seu pagamento.

    - Não fica brava comigo - pedi, colocando a bolsa sobre o ombro.

    - Eu não estou brava. Estou preocupada.

    Suspirei.

    - Eu sei. Prometo ficar atenta a qualquer sinal de perigo.

    Ela sorriu, tristonha.

    - Isso é o que mais me preocupa. Você é fascinada pelo perigo.

    Felizmente, cheguei dois minutos adiantada e, pela primeira vez, bati o ponto na hora certa. E o mundo era cheio de gente doida! Antes mesmo de Joyce me mandar mais uma vez para os confins da sala da copiadora - o que achei totalmente injusto, já que não me atrasei naquele dia - , eu já havia marcado um encontro com meu possível futuro marido. Apesar de estar fula da vida por ter ficado o dia todo colocando papel na geringonça, mal vi a hora passar, ansiosa para ver os resultados do meu plano.

    Na saída do trabalho, recebi mais algumas ligações. Natsu estava no elevador comigo, e foi difícil agendar os encontros sem que ele percebesse. Por algum motivo pareceu... errado que ele soubesse dos meus planos, mas justifiquei isso com o sábio raciocínio de que, se ele descobrisse o que eu estava aprontando, me dedudaria para Clóvis. Eu tinha cinco possíveis futuros maridos na mira. Era só uma questão de tempo para minha vida voltar aos eixos.

    Encontrei-me com o primeiro candidato naquele mesmo fim de tarde, no café próximo à casa de Mari. Eu não seria louca de levar um estranho para a casa dela, claro. Não foi difícil identificá-lo, já que ele havia me passado sua descrição física, e eu pedira que tivesse o jornal em mãos.

    - Lucy, eu prevumo - disse o homem de uns quarenta anos quando parei em frente à sua mesa

    Sua aparência era tão ruim quanto a língua presa. Os cabelos ensebados tinham uma camada de caspa que recobria as laterias e a nuca; os óculos enormes e fundos não ajudavam a disfarçar as orelhas de abano. E, por alguma razão, ele cheirava a naftalina. Não que isso importasse, afinal eu não estava procurando nenhum príncipe encantado. Mas aquela caspa toda era meio... repugnante

    - Mauro?

    - Fi-fim - ele riu nervoso, fazendo um oinc-oinc.

    Ah, Deus

    - Você... trouxe o atestado? - perguntei, enquanto me sentava do outro lado da mesa.

    Ele assentiu apressado, me entregando um papel um pouco amassado.

    - Eu nunca pivei numa delegafia. Fou um homem muito honefto.

    - Certo - eu disse, examinando sua ficha de antecedentes criminais, uma folha totalmente em branco. Imaginei que a maior audácia que Mauro já cometera tinha sido sair de casa sem escovar os dentes. - Humm... Por que você quer casar?

    - E-eu prefivo de uma namorada. Minha mãe eftá me deixando maluco - ele me lançou uma piscadela.

    Reprimi um gemido.

    - Hã... Começo a entender sua mãe. Mas você mora sozinho, certo? Ele se remexeu na cadeira.

    - Praticamente. Meu quarto tem afefo direto à faída da garagem. Vofê mal ia ver minha mãe.

    - Quer dizer que você imaginou que dormiríamos no mesmo quarto - constatei, cruzando os braços.

    - Bom... fi-fim. Vofê dife que fexo não favia parte do acordo. Eu penfei que dormir não teria problema - ele ergueu os ombros pontiagudos.

    - Ah, tem! Tem sim! Tem muito!

    - Eu fou muito fáfil de lidar - ele sorriu nervoso. – Vofê nem ia notar minha prevenfa.

    Eu duvidava muito

    - Ferto... Quer dizer, certo. - Essa coisa pega! - Eu tenho o seu telefone. Preciso entrevistar outros candidatos. Sabe como é... - me levantei e sorri. Ele se apressou em ficar de pé, esbarrando na mesa ao lado.

    - E-eu tenho uma renda muito boa. Poderia te levar ao finema uma vev por femana. A gente poderia jantar fora fempre que quivefe. Tenho vale-refeifão ilimitado.

    - Vou manter isso em mente - encerrei e me obriguei a andar calmamente em direção à saída.

    Mari ainda não tinha voltado para casa quando retornei do meu primeiro encontro. O consultório estava lotado - de clientes de planos de saúde, claro -, devido à onda de calor que se instalara na cidade. Aparentemente, todo mundo queria exibir o corpo em forma nos próximos meses. Ana estava preparando algo com um cheiro muito bom para o jantar quando me viu de banho tomado e remexendo em minha bolsa.

    - Lucy, vai sair? Você acabou de chegar - ela apontou.

    - Tenho uma entrevista.

    - De emprego? - sua testa vincou.

    - Pode-se dizer que sim - e rezei para que tivesse mais sorte dessa vez. Numa delicatéssen ali perto, encontrei Anderson, um rapaz até que bonito, apesar da baixa estatura. Suas roupas eram bem normais. Suspirei aliviada.

    - Aqui tá a parada - ele disse, deslizando o atestado de antecedentes criminais pela pequena mesa de madeira cor de mel.

    Eu não estava preparada para aquilo.

    - Hã... Você foi preso por porte ilegal de armas - costatei, um pouco desconfortável.

    - Eu devia ter jogado o bagulho no rio. Dei bobeira - ele comentou, desinteressado.

    - Por três vezes?

    - É - deu de ombros. - Falta de sorte

    - Hummm... - corri os olhos pelo documento de três páginas e o devolvi rapidamente. - Por que você respondeu ao anúncio?

    - Você diz que paga bem.

    - Sim, mas aí diz - apontei para o papel - que você tentou agredir sua esposa. Você já é casado.

    - Na verdade, sou viúvo. Um acidente, coitada. Ela acabou caindo em cima de uma faca - ele disse, indiferente.

    Meu Deus!

    - Ok. Eu preciso ir ao banheiro.

    Ele tirou um cigarro - de maconha - do bolso da camisa.

    - Sem pressa - disse e sorriu.

    - Árrã - foi tudo que consegui responder antes de dar no pé.

    Eu ainda estava tremendo quando contei o ocorrido a Mari.

    - Eu avisei, não foi? Mas você não me ouviu? Claro que não! - ela andava de um lado para o outro no quarto entulhado, abrindo e fechando gavetas e portas e atirando uma quantidade imensa de roupas sobre a cama de casal, que dividimos desde a noite anterior.

    - Foi falta de sorte. O Mauro era inofensivo. Meio sujinho, mas não faria mal a uma mosca. Esse Anderson foi só um golpe de azar. Só isso. - Se continuasse repetindo isso, talvez eu mesma acreditasse.

    - Ou talvez tenha sido um sinal pra você esquecer essa besteira! - apontou ela. - O que acha desse? - me mostrou um vestido preto simples, com alças finas.

    - sexy!

    - Perfeito! - ela começou a vesti-lo. - No mínimo você tinha que ter perguntado mais coisas antes de encontrar pessoalmente qualquer um deles.

    - Ah, não, Mari. Sem sermão. Tudo que eu quero é cair na cama e descansar. Meus dedos estão latejando. Aquela copiadora está acabando comigo. Acho que nunca mais vou poder tocar piano.

    - Você não toca piano. Nunca suportou as aulas.

    - Sim, mas se eu soubesse não poderia... - mostrei minhas mãos em frangalhos. - Minhas unhas estão detonadas. Preciso me livrar da Joyce

    - Acho difícil. Ela está na B&L desde quando? Do Big Bang?

    - Por aí - eu ri.

    - E aquele cara? O que você detesta? Ele parou de te perturbar? - ela começou a aplicar camadas de máscara nos cílios.

    - O Natsu? Nem me fale - me joguei na cama e abracei o travesseiro contra o peito. - Hoje ele me viu toda enrolada com a copiadora e riu! Juro que só não joguei um sapato naquela cara debochada porque fiquei com medo de acertar o vidro atrás dele e descontarem o prejuízo do meu salário. Eu detesto aquele cara!

    - Mas você disse que ele foi legal ontem. - Ela aplicou uma camada generosa de gloss vermelho nos lábios cheios. - Pagou a sua gasolina e te convidou para um café. Não pode ser tão ruim quanto você diz

    - O Natsu é bipolar. Ou louco. Talvez seja os dois. Aonde você vai?

    - Encontrei o Breno na saída do trabalho. Ele me convidou para sair. Decidi aceitar dessa vez - ela comentou casualmente.

    Casualmente demais!

    - Sair tipo...

    - Sair tipo - ela abriu um sorriso enorme e girou com os braços abertos. - Como estou?

    Os cabelos negros, que alcançavam o meio das costas, pareciam emitir luz própria. Os olhos castanhos brilhavam de sensualidade e mistério. O vestido preto reto marcava as curvas generosas e, aliado ao sorriso angelical, a deixou sexy, fatal. Pobre Breno...

    - Deslumbrante!

    Mesmo? Esse vestido não me deixa gorda?

    Mari sempre teve suas neuras com relação ao próprio peso. Ela tinha uma visão distorcida do próprio corpo, mas nunca admitiu. Por isso, quando me contou que planejava cursar nutrição, achei uma ótima ideia. Talvez isso a fizesse entender de uma vez por todas que mulheres com corpo violão não são necessariamente gordas. No entanto, o tiro saiu pela culatra, porque o entra e sai de mulheres anoréxicas de seu consultório acabou fazendo com que sentisse imensa. O mais engraçado era que ela e eu tínhamos praticamente o mesmo peso - mesmo ela sendo uns bons centímetros mais alta -, mas ela sempre me achou magra demais. Vivia calculando meu IMC, preocupada que eu pudesse estar abaixo do peso saudável. Vai entender!

    - Você não é gorda. Que mania!

    - Me deseja sorte

    - Você não precisa de sorte, já tem todo o resto. Não vai matar o coitado do Breno! Ele é gente boa, bem lá no fundo...

    - Vou tentar - ela me abraçou antes de sair do quarto numa nuvem de euforia.

    Joguei a bagunça de roupas sobre a poltrona e voltei para a cama, esperando ter uma noite revigorante. Mal fechei os olhos e apaguei; segundos depois, eu estava em casa. Não na casa da Mari, mas em casa. Tudo na mansão estava mais claro, mais branco e brilhante que de costume. Uma figura me observava, imóvel. Os braços estavam cruzados sobre o peito. O rosto, franzido numa careta triste. Atirei-me contra ele imediatamente, abraçando sua cintura, enterrando a cabeça em seu peito.

    - Eu senti tanto a sua falta! - chorei.

    Vovô não respondeu, mas passou a mão delicadamente em meus cabelos.

    - Você está bem? - perguntei.

    Nenhuma resposta.

    Levantei a cabeça para observá-lo. Vô Narciso estava triste.

    - Você está infeliz?

    Dessa vez ele assentiu.

    - Oh, Deus! Você foi pro andar de baixo? - perguntei horrorizada.

    Ele suspirou e sacudiu a cabeça.

    Suspirei também e me soltei dele, recuando, subitamente ciente da confusão em que ele me deixara.

    - Muito bem, sr. Narciso. Tenho algumas coisas para discutir com o senhor. Sabia que você me deixou numa situação bem difícil? Ainda não acredito que deixou aquele testamento. Eu confiava em você. Pensei que me protegeria. Mas não. Você me jogou aos lobos, e isso não foi legal.

    Ele continuou impassível.

    - Tudo bem. Estou dando um jeito de arrumar a bagunça que você deixou - dei de ombros, seguindo com meu monólogo. - No estilo Lucy.

    Lentamente, ele ergueu o braço e colocou a mão sobre meu ombro. Esperei ansiosa quando vi seus lábios se entreabrirem

    - A vitória está reservada para aqueles que estão dispostos a pagar o preço - ele sussurrou com a voz carinhosa e macia.

    Então eu acordei.

    - O que você tem hoje garota? - questionou Joyce, jogando uma infinidade de documentos sobre minha pequena mesa. Coloquei os papéis de lado, para que não se misturassem com os que eu estava organizando. Eu já havia feito confusão demais com contratos por um dia. - Você está ainda mais distraída que de costume.

    - Eu...sonhei com meu avô - me ouvi dizendo.

    Ela franziu a testa.

    - Isso é ruim?

    - Não sei - respondi sinceramente. - Ele estava triste e acho que era comigo.

    - Nãããão! Por que ele estaria triste? Será que é por causa da confusão sem tamanho que você causou com os contratos dos chineses, perdendo todos os documentos recentes e deixando a ouvidoria da empresa de cabelo em pé hoje de manhã? - Eu me encolhi, um pouco arrependida por não ter prestado atenção no que estava fazendo quando arquivei os contratos no dia anterior. Ainda bem que agora eu tinha tudo sob controle. - Ou será que ele estaria triste porque você enviou o e-mail com a proposta errada para o nosso cliente mais importante da América Latina, e que, aliás, cancelou o pedido de milhares de caixas de produtos? - Como eu poderia saber que aqueles números não eram os valores dos produtos, e sim os códigos? Não me admirava que o cliente tivesse desistido ao ver aquela quantidade astronômica de zeros. Se alguém tivesse me explicado alguma coisa sobre planilhas... - Não deve ser por isso. Não faço ideia do fez seu avô ficar chateado com você.

    - O vovô perdeu o direito de ficar chateado comigo quando morreu - resmunguei.

    Por mais que eu quisesse me enganar, sabia que a razão da tristeza estampada em suas feições não era nenhuma daquelas apontadas por Joyce. Nada tinha a ver com chineses ou argentinos. Entretanto, eu não tinha certeza se havia entendido sua única frase. A vitória está reservada para aqueles que estão dispostos a pagar o preço. O que ele quis dizer com isso?

    Sacudi a cabeça e dei de ombros. Foi apenas um sonho. Sonhos normalmente são incompreensíveis. Natsu entrou na sala, o que até então não havia acontecido. Pelo menos desde que eu começara minha escravidão sem voluntária na B&L.

    - Joyce, preciso que você arrume algumas coisas - pediu ele, me cumprimentando com um rápido aceno de cabeça. Como senão tivesse me visto naquela situação embaraçosa no posto de gasolina algumas noites antes. Como se não tivesse pagado minha dívida e depois me convidado para um café.

    Ela sorriu. Obviamente. Quem não sorriria para o Sr-Eu-Sou-o-Natsu?

    -Claro Natsu. Do que você precisa? - ela perguntou, toda oferecida.

    - De todos os contratos dos chineses. Os antigos e os novos, se possível. Tudo que você puder encontrar. Parece que a A... - ele me olhou de esguelha e sacudiu a cabeça - alguém fez uma confusão e a ouvidoria quer abrir sindicância para apurar o caso. Os chineses estão furiosos e ameaçaram quebrar o contrato. Isso nos deixaria em péssimos lençóis.

    Joyce fechou a cara.

    - Imaginei que as coisas fossem piorar - ela me lançou um olhar frio.

    - Olha só, eu fui... - comecei.

    - Agora não, Lucy. Você já causou danos demais - Joyce me interrompeu.

    - Eu avisei que não era uma boa ideia me deixar sozinha com aquele monte de arquivos - me defendi.

    - E o que é uma boa ideia deixar perto de você, Lucy? Você só... - O telefone em sua mesa tocou e ela correu para atender. - B&L Cosméticos, bom dia.

    Enquanto Joyce anotava, sorridente, um amontoado de números e nomes, Natsu me avaliava a distância. Concentrei-me em grampear os papéis e não os dedos. Eu não gostava do jeito que ele me olhava. Era estranho, invasivo, como se pudesse ver minha alma e não gostasse do que visse. Pelo menos era o que parecia. Ele sempre tinha o cenho franzido quando me observava.

    - Natsu - chamou Joyce. - Desculpa , mas preciso providenciar alguns documentos para o Dr. Clovis com urgência. Você pode esperar um pouco?

    O rosto dele se contorceu com angústia.

    - Joyce, é muito importante encontrar esses contratos. Não posso esperar.

    - Não vai ser necess... - tentei, mas ela me interrompeu novamente.

    - Desculpa, Natsu. Você vai ter que fazer isso sozinho. Por que não leva a cabeça de vento? - ela apontou para mim. - Quem sabe ela lembra onde guardou os contratos.

    - Ela? - ele perguntou horrorizado. - A Lucy mal sabe tirar cópias!

    Empertiguei-me, pensando se, caso eu grampeasse a cabeça de Natsu, os grampos seriam descontados do meu salário. As chances eram grandes.

    - Eu sei. Mil desculpas - disse ela com pesar. - Se eu terminar rápido o que preciso fazer, vou te ajudar.

    - Mas a Lucy não tem ideia do que está fazendo aqui. Ela vai ser ... de pouca ajuda. Por favor, Joyce!

    Estreitei os olhos. Que descontassem os grampos. Eu receberia o abatimento com prazer!

    - Talvez ela se lembre em qual das pastas e em qual dos arquivos colocou os contratos dos chineses. Vale a pena tentar. Sinto muito, Natsu. Preciso ir. - Joyce se virou para mim. - Ajude o Natsu e não estrague tudo dessa vez - e desapareceu no corredor.

    Ele ficou ali parado, encarando a porta sem parecer acreditar. Depois pressionou a ponte do nariz reto com o polegar e o indicador.

    - Muito bem, vai ter que ser você - anunciou, desanimado.

    - Não tô muito a fim, sabia? Além disso, eu sou de pouca ajuda , não é mesmo? Mas obrigada pelo convite. Quem sabe outro dia... - e continuei a grampear calmamente os papéis

    -Por favor, Lucy, não seja infantil. Você vai até a sala de arquivos me ajudar. Agora. - uma veia pulsou em sua têmpora.

    - Estou ocupada, não está vendo? - levantei o grampeador.

    - Será que você entende que a empresa vai entrar em crise se eu não apresentar esses documentos em meia hora? - ele vociferou. - Espero que você fique feliz quando a B&L falir e milhares de funcionários ficarem desempregados.

    - Nossa, parece meu avô falando. Lucy a irresponsável, estragando tudo outra vez! Só faltou a parte em que sou enterrada como indigente e minha alma fica vagando por aí. - Grampeei o último bloco e olhei para o rosto irritado de Natsu. - Ou essa seria a segunda parte do seu discurso?

    Ele me encarou por um instante. Seu rosto era uma máscara de fúria e incredulidade

    - Você é... - ele bufou e em seguida me deu as costas.

    - Natsu - cantarolei.

    Ele se virou lentamente.

    - O que? - disse com os dentes trincados.

    Levantei-me da mesa, peguei o bloco de papéis devidamente grampeados e me aproximei dele.

    Atirei o calhamaço contra seu peito.

    - O que é isso? - ele pegou a pilha. Analisou a primeira página, voltou os olhos para os meus, depois para os papéis, e começou a folhea-los. - Isso...isso... está tudo aqui? - ele virava as páginas freneticamente.

    - E organizado em ordem cronológica. Não falta nada, pode conferir. Grampeei tudo porque acho que assim fica mais fácil manter tudo junto. Não sei como ninguém pensou nisso antes.

    - Gostamos de usar pastas com ganchos - ele balbuciou, piscando algumas vezes, ainda atônito, encarando os documentos. - Mas...como...quando...?

    - Assim que cheguei e a Joyce me informou o ocorrido, voltei ao arquivo e procurei os contratos. Eu tentei avisar quando vocês tocaram no assunto, mas não quiseram me ouvir - dei de ombros. - O que, de certa forma, foi ótimo. Me deu uma boa perspectiva do que vocês dois pensam ao meu respeito. E só para deixar bem claro, eu não sou burra. Apenas não sabia o que fazer, já que ninguém se deu ao trabalho de me explicar. - Eu me aproximei dele, encarando-o, até que meu nariz ficou a centímetros de seu queixo. Caramba, ele era enorme! E me encarava de volta. Assim de perto, suas íris verdes pareciam ainda mais bonitas. As pequenas pintinhas amarelas brincavam ao redor delas. - A de pouca ajuda aqui acabou de salvar o seu rabo.

    Uma explosão de luz brilhou em seus olhos. Eu não sabia dizer se era de fúria, humilhação, admiração ou outra coisa. Ele parecia bastante alterado.

    - De nada, Natsu - sorri. - Estamos quites agora.

    Com deleite, o vi tentar dizer alguma coisa, mas não passou de um balbuciar incompreensível, cheio de "hãs" e "errs" e "eu-eu-eu". Pela primeira vez, Natsu não tinha resposta. Sorri satisfeita e o deixei plantado no assoalho de madeira, com a surpresa estampada na cara. Ninguém era obrigado a almoçar no refeitório da B&L, mas, apesar de a comida ser intragável, a maioria dos funcionários preferia comer por lá, já que não precisavam pagar pela refeição. Eu também optava pelo almoço grátis, mas naquele dia tinha um candidato para entrevistar e estava com bom pressentimento.

    Foi fácil identificar Leandro. Ele usava - como havia me avisado previamente - camiseta preta e boné. assim que o avistei, no entanto, minhas expectativas começaram a murchar. Não eram uma camiseta e um boné quaisquer, mas itens promocionais do filme Jornada nas Estrelas.

    - Vida longa e próspera - disse ele, estendendo a mão naquele cumprimento nerd esquisito

    - Ok, vamos acabar logo com isso - me joguei na cadeira da lanchonete. Eu tinha pouco tempo e quase nenhuma paciência. - Você mora sozinho?

    - Moro. Quer dizer, mais ou menos. Divido o apartamento com dois amig...

    - Tchau.

    Não era culpa dele que eu já estivesse saturada de caras estranhos. Na verdade, a culpa era toda minha. Eu devia ter especificado no anúncio: malucos, não. Voltei para a B&L mal-humorada e inquieta e permaneci assim até o fim do expediente. Detestava quando meus planos falhavam. Para piorar, Clóvis ligou exigindo que eu voltasse para casa naquele mesmo dia. Depois de eu deixar bem claro que não voltaria - ainda mais agora que eu tinha uma perspectiva de salvação, com a qual ele não podia nem sonhar, - ele apelou para meu bom- senso, dizendo que, caso eu não voltasse e me metesse em confusões de qualquer espécie, ele se recusaria a me ajudar, o que não me surpreendeu. Ainda bem que nunca tive bomsenso.

    Apesar disso, a conversa aos berros com Clóvis me deu novo ânimo, então decidi mudar de estratégia com relação aos meus possíveis futuros maridos.

    Mari gostou da ideia.

    - Quer dizer que você vai primeiro observar e, se não achar o cara normal, vai embora? É mais seguro, eu acho - ela comentou ao telefone, enquanto eu estacionava meu cupê e desligava os faróis para encarar ,ais uma entrevista marital. Dessa vez, na praça de alimentação do shopping.

    - Não estou em condições de enfrentar mais um esquisito. Não tenho estrutura pra isso, Mari. Honestamente, acho que ele nem vai notar se eu não aparecer.

    E eu não apareci. Nem nesse encontro, nem nos seguintes. Nenhum dos caras parecia remotamente normal a distância. Mari tinha razão - havia sido um erro publicar o anúncio, tive que admitir. Mas eu não podia simplesmente pedir a Breno, meu único quase amigo, que se casasse comigo, não agora que ele estava finalmente saindo com Mari, depois de tantos anos de amor platônico. Ainda que o casamento fosse uma grande encenação, isso acabaria com o romance dos dois, que mal começara.

    Eu estava tomando banho, exausta depois de passar a tarde tentando montar uma planilha para Joyce e frustrada por não ter conseguido - qual era o truque para montar aquelas porcarias, afinal? - , quando Mari irrompeu no banheiro, animada

    Ela afastou bruscamente a cortina de patinhos.

    - Um candidato! - sibilou, tapando com a mão o bocal do meu celular. - O que eu falo?

    - Fala que eu já encontrei o meu príncipe - revirei os olhos, fechando a cortina.

    - Hã... Escuta, você se importa de responder algumas perguntas antes de marcarmos a entrevista pessoalmente? Só para garantir que nenhum de nós vai perder tempo - ela propôs, se passando por mim.

    Abri a cortina.

    Mari, o que você está fazendo?

    - Marcando um encontro - ela sussurrou.

    - Você foi a primeira que me incentivou a desistir desse plano.

    - Sim, mas eu senti algo bom vindo desse aqui - ela sorriu, me mostrando o polegar, entusiasmada

    - Maravilha - fechei a cortina abruptamente.

    - Certo - continuou ela. - Você mora sozinho? Ótimo. É fã de algum filme ou série de TV? Ah, trabalha demais e não tem muito tempo para isso... - ela enfiou a cabeça dentro do boxe por um pequeno vão e piscou sorridente. - Você tem algum tipo de problema de pele, como caspa ou... Sim, eu seu que boa aparência não é pré-requisito, mas higiene é primordial. -Uma pausa. - Muito bom! Humm... Seu último relacionamento terminou de maneira trágica ou... Ah, você não tem um relacionamento sério há anos. Muito ocupado. Entendo. Bom... acho que é isso. Pode me encontrar amanhã à noite?

    Abri a cortina.

    - Mari, não! Eu não vou a lug...

    - Conheço esse café - continuou ela, me ignorando. - Ok, às sete então. Tchau - e desligou.

    - Por que você fez isso? - indaguei revoltada. - Pensei que você achasse que colocar o anúncio tinha sido uma tremenda roubada!

    - E foi, mas você não ouviu a voz desse cara - ela suspirou, se apoiando na pia. - Lucy, é daquelas que fazem a gente derreter por dentro. Você precisa encontrar esse homem.

    - Não, não preciso. O anúncio não foi tão genial assim, ok? Chega de tipos esquisitos

    - Ele não me pareceu esquisito. E o que custa ir, nem que seja pra dar uma olhadinha de longe?

    - Eu não vou - teimei.

    - Por favor, Lucy - ela pediu melosa, os olhos castanhos enormes e brilhantes. - Estou tendo aquele pressentimento. Vai por mim.

    - Ah! Aquele pressentimento - zombei, desligando o chuveiro e alcançando a toalha. - Claro. Isso muda tudo. É aquele mesmo pressentimento que você teve quando fomos consultar com Tara, a vidente, e ele disse que você ia encontrar seu grande amor num necrotério? Ou como daquela vez em que você teve certeza, baseada naquele pressentimento, que devia cortar o cabelo em estilo chanel bem curto atrás, pois assim ia conseguir melhores notas na faculdade? Você tomou bomba em anatomia e chorou por meses até seu cabelo crescer.

    - Aquilo foi um equívoco. Eu interpretei mal. Mas, se você pensar bem, eu conheci Breno no antiquário, que não deixa de ser um necrotério de objetos... - apontou ela.

    Revirei os olhos

    - Agora o Breno é o amor da sua vida?

    - Não! Não sei ainda. Mas vai que... - ela sorriu, um pouco tímida. - Ele é bem legal.

    - Eu sei que é... na maior parte do tempo - acrescentei, me enrolando na toalha. - Vocês vão sair de novo?

    O sorriso se tornou imenso.

    -Ãrrã! cineminha amanhã. Última sessão. E depois ele quer me levar até a casa dele para me mostrar o equipamento de mergulho. Ele está superempolgado com o curso.

    - Ah, é? - ergui uma sobrancelha. - Pensei que ele morasse coma irmã.

    - E mora. Mas ela vai visitar a sogra no interior. Vai ficar fora por três dias - ela comentou, desviando os olhos.

    - E qual é o problema então?

    - Bom... não sei se estou pronta pra isso. A gente saiu só uma vez, e depois ele me ligou três ou quatro vezes...

    - Oito, mas quem está contando? - dei de ombros, sorrindo.

    - Que seja! - ela revirou os olhos. - Mas será que não é um pouco cedo demais? Não quero que ele pense que eu sou...fácil.

    - Fácil? Mari! O Breno esta de quatro por você há pelo menos dois séculos! Ele foi tão insistente, te convidando esse tempo todo pra sair mesmo sabendo que ia receber um enorme não como resposta. Que bom que tanta teimosia acabou funcionando. Agora, se você está a fim também, qual o problema de deixar rolar o que tiver que rolar? O Breno é meio nerd, todo sério. Não acho que ele esteja interessado só em curtição

    - Eu também não - ela confidenciou.

    Passei o braço por seus ombros e a apertei ligeiramente.

    - Então qual o problema? Vai ser feliz!

    Ela mordeu o lábio, parecendo a ponto de quicar no lugar como se tivesse cinco anos, e por um momento acreditei que tinha me safado. Mas então ela sacudiu a cabeça e me deu uma cotovelada nas costelas.

    - Ai!

    - Você está tentando me enrolar. Não adianta mudar de assunto, Lucy. Você vai encontrar esse cara e está acabado.

    - Não vou, não!

    Mas eu fui.

    Não que eu tivesse a mais remota esperança de encontrar um homem que beirasse a normalidade, fosse apresentável e não tivesse passagem pela polícia. Claro que não. Mas Mari deu um golpe baixo - sequestrou a chave do meu carro e disse que, se eu não fosse encontrar o tal cara, teria que ir trabalhar de ônibus, porque ela não me daria carona. Diante dessa possibilidade, cedi. De qualquer forma, eu não pretendia falar com o sr. N. - como ele havia se identificado. Apenas uma olhadinha não mataria.

    - Ele disse que ia usar terno e gravata e ficar com o jornal nas mãos - ela contou enquanto eu estacionava meu cupê na vaga em frente ao café. - Não deve ser difícil encontrar um homem de roupa social segurando um jornal. Não nesse café.

    Apenas suspirei. Descemos do carro. Mari estava superempolgada; eu, nem tanto.

    O café, o mesmo em que me encontrara com Mauro, o sr. Caspa, ficava numa esquina, e grande parte da fachada era composta de vidros escuros. Mari examinou descaradamente o interior do estabelecimento através da janela, colando-se ao vidro sem se importar com os olhares reprovadores dos clientes que entravam ali.

    - Achei! Ele está ali. Ai, meu Deus, ele é lindo! Mais que lindo, ele é um tesão! - ela exclamou.

    - Isso não importa. Ele parece normal? - questionei sem ânimo.

    - Normal? Como um homem desses pode ser normal? Imponente, um ar rústico, testosterona pura. Olha aquele queixo! - gemeu ela.

    A curiosidade me venceu. Virei-me para procurá-lo, mas o reflexo no vidro fumê atrapalhava.

    - Onde? - eu me grudei ao vidro como uma ventosa.

    - Ali! - ela apontou para uma mesa num canto.

    Quase tive um treco quando vi o candidato a meu marido. Dei dois passos para trás, me afastando da vidraça, o coração quase saindo pela boca. O sr. N. tinha a pele levemente bronzeada, cabelos cor de rosa e incríveis olhos avela. E eu sabia que, de perto, aquelas íris, já não tão hostis, tinham pequenas manchas amarelas que as deixavam hipnotizantes como um caleidoscópio.

    - Ah, não! - exclamei em pânico. - Ele não!


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