Uma hora e vinte minutos de atraso foi o bastante para deixar Joyce furiosa, e , num ato de extrema benevolência, ela optou por me exilar nos confins da sala mais temida em todos os nove andares do prédio da B&L Cosméticos. A única sala sem janelas nem ar-condicionado: a sala treze, no sexto andar. Onde ficava a copiadora. Foi difícil me concentrar no que fazia. A ressaca não havia melhorado então fiquei longe do refeitório incapaz de suportar sequer olhar para algo comestível, mas bebi muita água. Tirei cópias suficientes para compor a lista telefônica da China e terminei tarde, no final de expediente. Uma crosta marrom já havia se formado em meu cotovelo. Doía um pouco quando eu dobrava o braço, coisa que precisei fazer repetidas vezes, já que a máquina emperrava a cada dez minutos.
- Pronto, Joyce. Tá aqui – estendi a ela as quatro mil e quinhentas páginas.
- Sem sua bunda dessa vez? – ela perguntou desconfiada.
- Pode confiar.
Ela não pareceu convencida mais deixou passar.
- Pode descer até o RH para pegar seu contracheque, e não se atrase amanhã. Tem mais coisas a serem copiadas, então, se não quiser passar mais uma tarde trancada naquela...
- Tá bom. Não vou me atrasar
Mais que feliz por saber que teria grana para pegar um taxi caso Mari ficasse presa na clinica e não pudesse me dar carona, desci para o RH, lotado de funcionários retirando seus holerites. Aguardei pacientemente na fila.
- Oi – chamou um voz profunda bem perto da minha orelha. Um arrepio percorrei o meu corpo. Virei-me e dei de cara com um sorridente Natsu . – Animada com seu primeiro contracheque?
- Muito! E você não está mais com cara de quem está morrendo.
- É não estou... eu acho. Como este seu braço? – ele perguntou solícito.
- Está bem, obrigado por perguntar. Eu te devolvo o lenço depois de mandar lavar.
- Não se preocupa. Escuta, eu andei pensando se você não...
-Lucy Heartfilia – chamou a secretária baixinha de nariz achatado.
- Sou eu – falei para Natsu e me dirigi até o balcão para retirar meu envelope.
- Sorri para a moça, me sentindo vitoriosa. Era meu primeiro pagamento. Pagamento de verdade, já que o antiquário não era bem um trabalho. Ralei muito naquela empresa. Merecia cada centavo.
Mal dei dois passos antes de abrir o envelope e ver um canhoto estranho cheio de números e letras. Fitei o papel, pensando oque aquilo poderia significar.
Desisti de tentar adivinhar e voltei ao balcão.
- Hã... Desculpa mas... o que é isso? – Enfiei o papel na cara da secretária.
- É o seu pagamento – ela disse lentamente, como se eu fosse um débil mental. Olhou para a fila e chamou: - Natsu .
- Onde? – perguntei, examinando meu contracheque mais uma vez.
- Bem aqui – ela respondeu, apontando para os números no pé da página.
- Isso não é o meu número de registro na empresa ou algo assim?
- Não. É o seu pagamento
- Deve ter sido um engano. – Só podia ser um engano. Tinha que ser!
- Deixe-me ver – ela pegou o papel analisou por meio segundo e depois me devolveu. – está certo. É o valor que as assistentes recebem pelo serviço. Normalmente não tem tantos descontos por atraso, mais o valor integral é o mesmo.
- Mais isso é uma merreca! Como você espera que eu sobreviva com isso aqui? Eu gastei o dobro disso na noite passada.
- Ninguém duvida – Natsu comentou já ao meu lado. – Pela foto no jornal você se divertiu muito.
- Cala a boca Natsu – eu disse sem pensar.
Ele sorriu irônico, e cruzou os braços entre o peito.
- Não é tão pouco assim – argumento.
- Não é? – esfreguei os números em sua cara. – como eu vou viver com esta gorjeta? Não paga nem as despesas do meu carro.
- Livre-se dele – ele deu de ombros, mas franziu o cenho quando analisou o valor no rodapé do meu estrato.
- O que? – perguntei indignada. – Me livrar do meu cupê, lindo, vermelho e potente? Não mesmo! De jeito nenhum! Hoje de manhã eu peguei um ônibus, sabe o que é aquilo Natsu? Você tem ideia de quantas encoxadas eu levei e de como eu estava fedendo quando desci no ponto, porque um engraçadinho que aparentemente não toma banho há uma semana se aproveitou da ocasião para ficar me apalpando? Aquilo é o inferno!
Ele não pareceu se assustar com minha ira. Na verdade, parecia estar se divertindo.
- A maior parte da população não tem problemas em usar o transporte coletivo – apontou.
- A maior parte da população não tem um cupê com o meu!
Ele riu.
- Nisso você tem razão.
Fechei os olhos e pressionei as têmporas com os punhos. Virei-me para a secretária do RH.
- Eu preciso de mais dinheiro – pedi. – Cadê a Espanador?
- Quem? – ela perguntou confusa.
- A Lucy deve estar se referindo à Janine, Marcia – Natsu interveio, lutando para não sorrir e falhando vergonhosamente.
- Ah. A Janine esta num congresso. Reestruturação de RH – Marcia disse a ele.
- Eu preciso de mais dinheiro – repeti.
- Sinto muito – mais ela não parecia sentir coisa nenhuma. – Tente não chegar atrasada e não haverá tantos descontos.
Olhei para a folha de pagamento, havia muitos abatimentos, um deles enorme.
- Porque este desconto tão grande?
- É o INSS, a previdência social – ela explicou um tanto impaciente.
Eu não preciso de previdência social – passei o papel para ela. – Pode devolver meu dinheiro.
Natsu suspirou ao meu lado.
- Lucy, não é opcional – ele começou. – Você é uma funcionária registrada. A empresa tem o dever de pagar os seus direitos. É para o seu futuro.
- Não tenho tempo para pensar no futuro. Quero minha grana agora – retruquei.
- Para de se comportar como uma menina mimada – disse ele sem rodeios
- Pare de se intrometer na minha vida! – me empertiguei.
- Porque você não liga para o Dr. Clóvis? – Marcia sugeriu obviamente querendo que eu sumisse dali e acabasse com o tumulto. – Ele pode explicar melhor.
- Com certeza vou fazer isso. E o INSS vai devolver todo o meu dinheiro amanhã! Nem um dia mais! – E, passando a bolsa por sobre o ombro, deixei a sala com a dignidade que havia me sobrado.
Ligue para Clóvis ainda no elevador. Repeti as mesmas frases indignadas, salientando o roubo do INSS tudo o mais, mas ele apenas suspirou, nada comovido. Na verdade, parecia bastante irritado, mas indignada como eu estava, não dei muita atenção. Ele disse que aquela era a remuneração que meu avô havia estipulado e que não poderia fazer nada a respeito. Eu tinha certeza de que ele podia fazer alguma coisa. Só não queria, o que me deixou ainda mais puta da vida.
Mari me encontrou bufando na calçada. Contei a ela o que acabara de acontecer e, para minha total consternação ela gargalhou.
- Só você para ir contra uma lei trabalhista
- Não é justa Mari – cruzei os braços sobre o peito. – O dinheiro é meu. Eu trabalhei. Eu passei meus dias enterrada naquela empresa. O governo não fez nada!
- A maioria das pessoas preza muito o INSS e seus benefícios, Lucy. O governo vai fazer a parte dele no devido tempo. – Ela franziu a testa e acrescentou: - Ou pelo menos deveria.
- Eu tenho que fazer alguma coisa. Tenho que dar um jeito nisso. Não posso continuar assim, vivendo de trocados. Eu preciso de roupas mais profissionais, preciso pagar o estacionamento onde deixei o Porsche e colocar gasolina naquele tanque infinito, e sabe quanto eu tenho de dinheiro? Essa merreca, mais só amanhã porque o dinheiro ainda não compensou! – mostrei a ela o meu holerite.
Sua testa franziu.
- A coisa tá feia pro seu lado amiga. Posso te emprestar até...
- Não! Pegar dinheiro emprestado é o mesmo que admitir que sou a garota imatura que meu avô disse que sou naquele maldito testamento. Eu tenho que me virar, Mari sozinha. Sou adulta, inteligente e responsável. Preciso encontrar uma solução. O ideal seria anular aquele maldito testamento, só não sei como. Não sem denegrir a imagem do meu avô. Eu nem posso pagar um advogado para me ajudar a encontrar outra saída, caramba!
- Porque você não anuncia o seu carro? Ele vale uma fortuna – ela sugeriu.
- Você também! Eu não vou anunciar e nem adiar... – foi então que eu soube o que deveria fazer. Naquele instante, eu soube como sairia daquele pesadelo. – É isso! Mariana, você é um gênio. Para na primeira banca que encontrar. Preciso de um jornal.
- Mais você acabou de dizer que não vai vender o carro! – Ela apontou, sem entender ainda o plano genial que se formava em minha mente.
- Não vou vender o carro – sorri. – Vou alugar um marido.
Eu devia ter percebido que algo estava errado logo que entrei na mansão e vi Clóvis em pé, no centro da sala de estar. Eu devia ter percebido.
-Pode me explicar o que significa isso? – ele disse num tom nada cordial, me mostrando o jornal do dia. Lá estava eu completamente bêbada sobre o balcão da danceteria
Grunhi.
- Olha só, Clóvis. Eu bebi um pouco a mais ontem e alguém deve ter tirado essa foto e entreg...
- Então é isso que você anda fazendo quando passa as noites fora de casa?! – ele interrompeu, colérico – É a isso que você tem se dedicado, Lucy? Se sujeitando ao papel de uma... de uma garota de programa?
Ei! Peraí! Quem você pensa que é pra falar assim comigo?
- Sou seu tutor! - Ele urrou, jogando o jornal no sofá de couro branco. – Como você pôde fazer isso, Lucy? Não percebe o que a mídia fez? Eles vincularam o seu comportamento ao nome do seu avô, as empresas do seu avô! Você acha que é essa a imagem que o Conglomerado Lima espera passar para os clientes? Acha que é para essa bêbada que os funcionários querem trabalhar? Acha mesmo que algum dia você vai ser capaz de cuidar de tudo que o seu avô deixou? Eu tenho sérias dúvidas.
Retraí-me ligeiramente.
- A culpa não é minha. A imprensa é livre para escolher o que quiser, você sabe disso.
- Se você não der motivos, eles não terão o que escrever. Eu proíbo você de se comportar dessa maneira. Proíbo você de sair desta casa.
- Você não é meu avô! – retruquei. - Sou maior de idade, dona do meu nariz. Faço da minha vida o que eu quiser.
- Não enquanto estiver sob a minha custódia, morando debaixo do meu teto.
- Foi então que tudo ficou vermelho à minha frente. Eu me aproximei dele até que nosso nariz quase se tocou.
- É você quem mora debaixo do meu teto, não o contrário. Não estou sob a sua custódia. Os bens do meu avô estão, eu não. Meu avô pode ter deixado tudo nas suas mãos capazes, Clóvis, mas você não pode me controlar. Nem tente!
- Se for preciso, vou alertar os seguranças para que não deixem você sair dessa casa. Pelo menos assim vou saber que você não está se metendo em encrenca.
- Você realmente acha que pode me trancar aqui?
Ele empinou o queixo duplo, me confrontando com os olhos obstinados.
Farei o que for preciso.
- Tudo bem – estreitei os olhos e o encarei por mais um minuto antes de me virar e subir as escadas calmamente. Assim que fechei a porta do quarto, peguei meu celular. – Mari, preciso de ajuda. – Relatei a ela o que tinha acabado de acontecer.
- Que absurdo! Quem esse idiota pensa que é? – ela resmungou. – Pega tudo que achar necessário e vem pra minha casa. Você vai ficar aqui por uns tempos. Mais da metade das suas roupas já está aqui mesmo.
Respirei aliviada.
- Sabia que você ia me dizer isso. Obrigada! Mas sua mãe não vai se importar? – resmunguei
- Lucy, eu tenho 25 anos! A casa também é minha. – Porém ela hesitou. – Mas não custa avisar, né?
Assenti, ainda que ela não pudesse me ver.
Enquanto ouvia Mari berrar para a mãe, me obriguei a entrar em meu closet e pegar o máximo de roupas e sapatos que pudesse. Limpei também o banheiro, enfiando tudo na mochila.
- Tudo em ordem. Vamos ser colegas de quarto! – Ela disse ao telefone, animada.
- Que ótimo – respondi, menos animada. Eu sabia que seria um incomodo, mas não tinha alternativa naquele momento. – Obrigada, Mari.
- Vou poder cuidar de você agora. Vai ser o Máximo! Você nunca mais vai se atrasar pra nada, Lucy!
- Ah, que maravilha – revirei os olhos. – Chego ai em 20 minutos.
Clóvis ainda estava na sala de estar quando desci com a mochila nos ombros, porém fiz o melhor que pude para ignorá-lo.
- Aonde você pensa que vai? – ele esbravejou.
- Não é da sua conta.
- Você não vai sair dessa casa!
Apesar da raiva que eu sentia, virei-me para admirar pela ultima vez o meu lar nos últimos vinte anos, ignorando o homem rechonchudo e seu rosto arroxeado de raiva. Dirigi-me ao aparador no hall de entrada e peguei o porta-retratos.
- Vocês vão comigo – murmurei para o rosto sorridente de meus pais, vovô, eu ainda pequena em seu colo e Chantecle, meu gatinho siamês que fugira de casa depois que eu havia tentado dar banho nele. – E nem adianta sorrir, Sr. Narciso porque ainda estou furiosa com você.
- Lucy, você não vai sair dessa casa hoje! – Clóvis vociferou. – Volte aqui, menina teimosa!
Mas eu já estava do lado de fora, seguindo para a garagem, sentindo a brisa do início da noite acariciar meu rosto, e, pela primeira vez desde que meu avô se fora, me senti feliz.
Admirei meu lindo Porsche vermelho e suspirei. Eu amava aquele carro. Mari havia me deixado no estacionamento perto da balada pouco depois de pararmos na banca de jornal. Ela voltara para casa e eu esvaziara os bolsos para resgatar meu cupê.
Fui obrigada a parar no posto de gasolina para abastecer antes de seguir para a casa de minha amiga. Ainda estava remoendo a conversa com Clóvis, me perguntando se tinha excedido, mas cheguei à conclusão de que eu agira corretamente. Nem meu avô tentara se impor a mim daquela maneira. Na tentativa de cumprir sua função de tutor, Clóvis havia extrapolado, não eu. Bom... não muito.
Entreguei o cartão de crédito ao frentista e esperei um pouco impaciente que ele concluísse a transação.
- Recusado – falou o rapaz, me devolvendo o cartão com um sorriso complacente no rosto.
Franzi o cenho. Eu tinha certeza de que não havia excedido do meu Amex. Entreguei o Visa e esperei, mas, quando seus olhos se voltaram para mim rápidos e desconfiados e seu sorriso desapareceu, percebi que eu estava com problemas.
Não sei o que esta acontecendo – expliquei. – Deve ser um erro no sistema ou alguma coisa assim. Eu tenho limite nesses cartões.
- Que tal usar outra forma de pagamento?
Qual? eu quis perguntar.
- Hã... Eu estava exatamente indo até o banco sacar dinheiro. Quer tentar o Mastercad?
- Escuta, moça. Se você não pagar o que deve, vai ser do meu salário que vão descontar o valor, então não tenta me enrolar, tá?
- Ei! Olha pro meu carro! Tá na cara que é um erro do banco. Eu tenho cara de quem dá calote?
- Pra falar a verdade, tem sim – disse ele, cada vez mais impaciente. – E esse carro é seu mesmo?
Era só o que me faltava.
- Você está sugerindo que peguei emprestado por aí? Isso aqui é um Porsche! Quem emprestaria um Porsche?
Ele deu de ombros
- Como você vai pagar, moça?
Vasculhei a bolsa em busca de algo que sabia que não encontraria. Só havia trocados.
Merda. Merda. Merda.
- Tenta esse aqui, por favor – dei a ele o cartão-salário aberta pela empresa em meu nome, embora soubesse que estaria sem saldo até a meia-noite. Oh, Deus, como eu ia pagar a gasolina?
- Muito bem, moça. Recusado também. Saia do carro.
Suspirei, mas saí.
- Tudo bem. Você pode chamar o gerente para eu explicar o que está acontecendo? – pedi.
- Com certeza. Mas vou ficar com a chave do carro como garantia – ele sacudiu meu chaveiro de porquinho de pelúcia.
- Mas não vai mesmo! – tentei pegá-lo de volta.
- O que está acontecendo? – perguntou outro frentista.
- A moça aqui encheu o tanque e não tem grana pra pagar – ele se contorceu, me impedindo de arrancar o chaveiro de sua mão. – E vai fugir se eu entregar a chave. Chama o Fernandes antes que ela escape!
- Parem com isso agora! – O outro frentista ordenou. – Vocês estão assustando os clientes.
- Não vou fugir – objetei, irritada. – Ele é que vai sair por aí no meu cupê – eu disse ao rapaz mais baixo que assistia a tudo, incrédulo. Tentei novamente pegar a chave, mas o garoto se esquivou outra vez. Parei. – Me devolve minha chave e não me obrigue a te machucar.
- Pague o que deve e eu devolvo.
Avancei sobre ele. Mas uma voz profunda e grave me fez parar.
- Problemas, Lucy?
Oh, Deus, anjos, querubins, fadas, qualquer um com poderes aí em cima, permitam que não seja ele. Permita que não seja Natsu!
Quando levantei os olhos por sobre o braço do frentista, vi que minhas preces não foram atendidas.
- Precisa de ajuda? – uma sobrancelha se arqueou. Ele tentava esconder o sorriso, mas estava lá, em suas palavras, em seus lábios e naqueles olhos castanhos irritantes.
Endireitei-me, alisando minha blusa, com o máximo de dignidade que conseguir reunir.
- Não. Está tudo sob controle.
- A moça encheu o tanque e não tem dinheiro pra pagar – disse o frentista. – Ela quer...Ai! – Meu cotovelo acidentalmente acertou as costelas do rapaz.
- Ah – exclamou Natsu, e o sorriso se tornou mais largo.
- Não é nada disso – comecei, constrangida, encarando seus sapatos negros. – Tem alguma coisa errada com os meus cartões. Deve ser um problema na central ou algo assim. É só isso. Vou falar com o gerente e explicar tudo.
- Quanto ela deve? – Natsu quis saber, se dirigindo ao frentista e me ignorando propositalmente.
Ergui a cabeça num estalo.
- Você não vai fazer isso, Natsu. É assunto meu! – reclamei, enquanto o frentista dizia o valor.
Ele sacou a carteira do bolso.
- Agora entendo seu desespero hoje à tarde, quando você viu seu contracheque. Um terço do salário só para abastecer o carro? – Antes que eu pudesse detê-lo, ele entregou o dinheiro ao rapaz.
O frentista me lançou um último olhar acusador antes de devolver minha chave e se afastar.
- Quanto tempo esse combustível vai durar? –Natsu perguntou.
- Uns quatro dias, mais ou menos, se eu andar na manha
Ele assobiou.
Encarando o chão, mortificada, me forcei a dizer:
- Obrigada, Natsu. Não precisava ter interferido. Eu ia dar um jeito.
- Que jeito?
Dei de ombros.
- Eu ainda não tinha chegado a essa parte do plano.
Ele riu, e isso me fez erguer a cabeça e encará-lo.
- Não foi engraçado! – objetei.
- Ah, foi sim. Ver você pulando em cima do garoto foi muito engraçado – ele cutucou meu braço com o indicador de maneira amigável. Uma descarga elétrica perpassou meu corpo. – Estaciona o carro e vem tomar um café comigo.
- Não vou a lugar nenhum com você.
- Eu enchi seu tanque, Lucy. O mínimo que você pode fazer é me acompanhar num café.
Envergonhada e amaldiçoando o meu avô por todos os problemas que havia me deixado, entrei em meu cupê e o estacionei em frente à loja de conveniência. Natsu me esperava na entrada.
- Não vai doer nada, prometo – ele zombou ao notar meu embaraço.
- Quer apostar? – resmunguei.
Ele sorriu e por alguma razão aquilo me perturbou profundamente. Era um sorriso cínico, ferino e, de certo modo, cheio de segredos. Fiquei inquieta, me remexendo no banco alto ao lado de Natsu, esperando impaciente a porcaria do café para poder me mandar dali.
- Assim que o meu pagamento cair na conta, te devolvo o dinheiro – avisei.
- Não precisa. Considere isso como um pedido de desculpas formal.
- Natsu ....
- Estou falando sério. Fiquei feliz em poder te ajudar – seus olhos castanhos eram límpidos, sinceros.
- E posso saber por quê?
Finalmente nossos expressos foram colocados à nossa frente.
Ele deu de ombros. Enquanto adicionava dois sachês de açúcar à bebida.
- Pode chamar de peso na consciência. Não fui legal com você quando nos conhecemos. Estou tentando compensar minha falta de tato.
- É o que parece. E isso me apavora um pouco.
Ele sorriu sacudindo a cabeça e experimentou o café. Fiz o mesmo, apenas para ter o que fazer além de admirar seu perfil. Por mais que eu não gostasse dele – e não gostava - , tinha que admitir que Natsu era um homem... apresentável e hã... meio que interessante. Havia algo de inquietante em seus olhos.
O silencio entre nós também era inquietante. Não entendi porque ele insistiu em me convidar para um café se permaneceria calado. Engoli apressada a bebida escaldante, queimando a língua no processo, e saltei da banqueta.
- Bom, obrigada pelo café e pela gasolina, mas preciso ir. Minha amiga está me esperando.
- Para mais uma noitada sobre o balcão, suponho.
Estreitei os olhos. Porque Natsu sempre dizia a coisa errada?
- Você é um imbecil, sabia?
- Foi bom te ver também, Lucy– ele deixou o dinheiro sobre o balcão e me acompanhou calado até o carro.
Natsu era muito alto, e todo aquele tamanho me intimidava um pouco. Eu me senti uma idiota ali, parada em frente ao carro, sem saber o que fazer ou onde colocar as mãos. Foi ele quem decidiu pôr fim aquela agonia.
- Te vejo amanhã. - Colocou as mãos nos bolsos da calça e começou a se afastar.
Fiquei observando seu andar seguro, determinado, até que ele entrou em um SUV escuro e deu partida. Só então me obriguei a entrar no carro e afastar da cabeça Natsu e seus olhos irritantemente hipnóticos, e me dirigi até minha nova casa.
Ana foi muito compreensiva e me recebeu com entusiasmo. Mari estava um pouco preocupada.
- Por que demorou tanto, Lucy?
- Problemas no posto de gasolina, mas já resolvi tudo.
Ela me levou até seu quarto depois de me obrigar a comer alguma coisa e ajudou a acomodar minhas tralhas num canto. Conversamos um pouco sobre como Clóvis ultrapassara todos os limites e depois caímos na enorme cama de casal. No escuro, tentei não pensar em quanto eu incomodaria Mari e Ana. Em vez disso, concentrei-me no plano para reaver meus direitos de herdeira; com sorte, esperava me livrar daquele pesadelo e recuperar não só minha fortuna, mas um pouco de dignidade. Mal podia esperar o dia amanhecer para saber se tudo sairia conforme o planejado.
No entanto, isso foi tudo que pude conjeturar antes que uma imagem insistente se infiltrasse em minha cabeça e, aos poucos, dominasse minha mente por completo. A última coisa que pensei antes de cair num sono pacifico foi em um belo par de olhos castanho, cabelo rosado estilo moicano, que já não me pareciam tão hostis assim