Felipe gosta de tocar violino. O som sempre o acalma, e o faz esquecer do mundo ao seu redor. É uma das melhores sensações do mundo. A música flui a partir do encontro de seus dedos com as delicadas cordas. O arco possui algumas cerdas quebradas, e ainda assim aquele seu velho amigo de madeira não o decepciona. O violino estava consigo desde seus 14 anos. É seu único amigo, seu companheiro, aquele que o entende e o ajuda a expressar como ninguém seus sentimentos.
As pessoas andavam agitadas nos últimos dias, uma espécie de alegria pairava no ar e Felipe não saberia dizer o por quê. Não conseguia entender o motivo de tamanha felicidade. Preferia permanecer em seu prédio, em sua quitinete na companhia do violino. O instrumento sempre preenchia sua casa com algo único, algo maravilhoso. E somente nesses momentos, ele conseguia esquecer de seus problemas, esquecer-se de tudo.
Faltando cerca de uma hora para meia noite, seus pais ligaram.
"Feliz ano novo, Sofia." Sua mãe disse.
Para eles, ele sempre seria Sofia, a garotinha deles. Lhe doía que seus pais não o aceitassem como era. Ele não era ela. Nunca fora. Sabia disso desde que percebeu o quanto lhe incomodava aquelas frases "comporte-se como uma dama.", "Você não pode correr, você não é um menino", "brincar de bola? (risos) isso é coisa de menino, Sofia.", "parabéns, mamãe trouxe uma boneca para você. Você será uma ótima mãe."
Aquela garotinha nunca fora ele. Nunca seria. E apenas desejava que os pais aceitassem esse seu lado, quem ele realmente era. As lágrimas começavam a acumular em seus olhos, o choro contido em sua garganta. Para que toda aquela felicidade se todo ano era a mesma coisa?
Não podia, no final das contas, esperar algo diferente de seus pais se nem mesmo seus amigos mais próximos o haviam aceitado. Apenas o violino o recebera como realmente era.
O prédio estava silencioso, e atribui isso aos moradores que deveriam estar nas festas da cidade, com familiares ou viajando. Não se importou. O silêncio era mais acolhedor do que as pessoas.
Faltava cerca de dez minutos para a meia noite.
Pegou o velho violino. Não sabia o que iria tocar, nunca sabia. Mas de alguma forma, o velho amigo sempre sabia qual era a melodia de sua alma. E sem perceber, como sempre acontecia, as notas fluíram. Era algo diferente das outras vezes. Não era triste, apesar de conter sua dose de melancolia. Porém, de alguma forma sentia que havia esperança. Esperança de que algo realmente fosse diferente neste novo ano. E sem que notasse, a música aos poucos ficou animada, violenta. Como se fosse um grito frustrado de sua garganta. O suor se acumulando em seu rosto, a mão e os dedos doendo dos movimentos constantes. Mas não parou. Não podia parar. Precisava ser ouvido. Precisava que tudo aquilo tivesse fim, e ele realmente ganhasse um lugar. Que realmente algo novo acontecesse.
Quando parou, os dedos sangravam, e estava ofegante.
Meia noite.
Observou da sacada os fogos começando na Esplanada. Eles salpicavam nos céus como verdadeiras flores gigantes. Tinham cores diferentes, tamanhos e simbolizavam a esperança de todas as pessoas daquela cidade. Algo novo iria vir. Tinha que vir.
E pela primeira vez se sentiu pertencente a algo. Se sentiu incluindo na esperança de que todos aqueles que sofriam como ele, sofriam pela ignorância alheia, pela falta de amor, de que tudo aquilo teria um fim. Que a luta pela igualdade iria continuar e seria vitoriosa. Que o amor no fim iria prevalecer. Era isso que sua música lhe dizia, era isso que o violino quisera lhe dizer.