Rabiscos

  • Finalizada
  • Kiia
  • Capitulos 1
  • Gêneros Drama

Tempo estimado de leitura: 4 minutos

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    Capítulos:

    Capítulo 1

    Rabiscos

    Essa história foi inspirada em um retrato de Léo Ferrari (1976) em uma exposição do MASP.

    A paisagem que surgiu perante seus olhos, era quase como um sonho, ou uma miragem. Era no mínimo algo inacreditável. Jamais se imaginara diante daquela imensidão.

    Sem pestanejar, ele colocou o cavalo em movimento. Sua história ficava para trás a medida que avançava, e não se arrependia. Não havia do que se arrepender. Sua história ficaria no passado, nada mais do que simples lembranças, mas era algo valioso, por isso, elas estariam sempre consigo. Sempre carregaria para qualquer lugar que fosse, porém, jamais retornaria.

    O deserto era um lugar selvagem, frio durante as noites e solitário. Terrível para viajantes, e perfeito para bandidos. Era o que todos lhe diziam, e por muito tempo acreditou nisso. Acreditou em cada uma das fofocas que lhe chegavam aos ouvidos. Mas agora que via tudo com seus próprios olhos, ele podia ver que não estavam errados. Entretanto, também não estavam certos.

    O deserto era vivo. Seus animais e paisagens eram fascinantes, e cada dia se sentia mais apaixonado por aquele mundo novo. Adorava quando o vento batia mais forte nas dunas e fazia tudo dançar, uma dança solitária que formava novas dunas. Era lindo.

    O cavalo árabe era seu único companheiro naquela longa jornada sem previsão para o fim. Com o tempo, aprendeu a se guiar pelas estrelas e conheceu vilarejos, culturas, pessoas, animais, e muito mais do que podia imaginar. Era tudo... Inacreditavelmente único. Um sorriso sempre lhe escapava com facilidade quando revivia cada um desses momentos, principalmente agora que estava com os dias contados.

    Estava velho. Tudo parecia ter se passado a luas, séculos, encarnações... Tudo tão distante... E ainda assim, se fechasse seus olhos, ainda poderia se ver naquela aventura louca, apenas o amigo equino ao lado, o sol quente que lhes roubava a força, e a felicidade espontânea ao se deparar com uma fonte de água fresca.

    Sua vida, no fim, havia sido exatamente como sonhara. Não mudaria nada, nada. Os olhos fechados mergulhados naquela imensidão que era só dele, e isso ninguém poderia lhe tirar. Nunca.

    “Não seja tola, Kawo. Eu tenho que ir.”

    A jovem a sua frente, lhe lançou um sorriso tímido, confuso, e então o velho notou. Havia feito novamente.

    “Desculpe?”

    Ela lhe questionou, e ele abaixou o olhar.

    Não conhecia a moça, mas por um segundo, um instante que fosse, ela era Kawo. Estivera de volta a sua juventude, e tudo se embaralhara novamente. Passado, presente... Tudo as vezes parecia ser uma coisa só. Às vezes, esquecia-se de coisas mais recentes, de lugares, de rostos, de palavras... Tudo se esvaindo como areia entre os dedos.

    Era o velho maluco da aldeia. Aquele que falava sozinho, que se perdia e se esquecia da localização de sua casa. Normalmente era encontrado pelos familiares zanzando pelo vilarejo, mas as vezes isso demorava dias, e em seus momentos de lucidez, sentava-se em um canto e chorava. Era um estorvo.

    Chorava por ser sentir um inútil, mas principalmente por perder aquilo que tinha de mais precioso. Não ligava para o dinheiro que havia juntado, ou para suas propriedades. Apenas queria lembrar-se para sempre do que vivera. Do que um dia havia feito sozinho, apenas ele e um cavalo – que em sua ingratidão infantil, jamais lhe nomeara.

    Tudo continuava indo embora, tais quais as lágrimas que não cessavam. O rosto sereno de sua mãe, a primeira que vez montara um cavalo, a primeira vez que presenciou o nascer do sol entre as dunas... – o choro que lhe escorria era como uma despedida forçada, um adeus inesperado, mas inevitável. – a primeira vez que segurou seus filhos, o momento em que percebeu que queria ficar para sempre ao lado da mesma mulher. Tudo, tudo estava sendo roubado dele.

    A sua frente, agora, não havia mais deserto. Não havia mais vilarejo. Eram apenas rabiscos confusos que jamais seriam decifrados, nem por ele, nem por ninguém. Quem ele era, ou o que fora, a muito já havia se perdido. Apenas uma casca vazia restara parada em frente ao nada, as lágrimas salgadas secas em seu rosto. A expressão alheia, sem entender absolutamente nada. Sem reconhecer sequer o nascer do sol sobre a dunas que tanto amara.

    No fim, ele havia se tornado apenas uma coisa.

    Apenas linhas de tinta trêmulas e pouco decifráveis em um papel gasto.


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