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Quando o isqueiro tocou o chão molhado pelo álcool derramado, o fogo subiu relativamente alto por um breve instante antes de começar a se apagar. Olhei para trás e vi o casal indo embora, um apoiando o outro em um caminhar apressado e aparentemente doloroso. Não tinha percebido até então, mas com a claridade do fogo ou não, naquele instante pude notar os rostos ao meu redor.
O casal de negros, de idade avançada se afastava lentamente, e tinham razão em estar tão assustados diante daqueles branquelos de cabeça raspada. O grupo com certeza fazia parte do lado ruim dos ''skinheads''. Sim, claro. Haviam os skinheads originais da década de sessenta; que não tinham preconceitos. Como também muitos nos dias de hoje com boas maneiras que só querem curtir suas roupas legais, e sair por ai exibindo seus coturnos e seu estilo de vida. Mas ficou bem claro pelos olhares, e principalmente pelos socos ingleses e canivetes que sacaram das jaquetas; que coisa boa não devia sair dali.
- O quê... quem é esse cara? - disse um deles, se atrapalhando um pouco. - De onde você veio seu moleque?
Senti o cheiro doce do sangue no chão, mas ainda não estava tão sedento a ponto de me ajoelhar ali mesmo. Já que um deles estava nocauteado, resolvi dar atenção aos outros, tinha que ser justo. Aqueles rapazes pelo visto gostavam de fogo, pois tentaram jogar o álcool em mim também. Embora o chão fosse tudo o que eles conseguiram molhar e o frasco estava vazio após duas esquivas modestas de minha parte.
- Desgraçado! Eu vou te matar! - disse um deles; mais esquentado. Se é que havia diferença significativa no humor ou temperamento deles.
Deixei uma faca passar ao lado de minha cabeça e então soquei o rosto do rapaz, apenas pra ver no que dava. Era estranho e perfeito. A maneira como meus movimentos fluíam, velocidade controlada - nem sequer usava tudo o que tinha -, e a força. Mesmo que fizesse boxe e academia por dez anos, não teria aquela força. O idiota caiu em cima do carro, um Golf vermelho, e escorregou por ele até cair no chão um tanto grogue. O terceiro veio pra cima de mim com muita raiva. Devia ser mesmo um desrespeito pra eles levarem desvantagem em qualquer coisa relacionada a combate corporal. Até pelo fator do ''número'', em que estavam.
Não me pareceu certo poupá-lo, sendo que os outros tinham ganhado seus merecidos hematomas. Antes mesmo de ser tocado pelo homem, agarrei seu pescoço, tirando-o do chão e erguendo seu corpo como um filhote de cão. Ele sacudia as pernas enquanto pressionava de leve sua garganta. O rosto vermelho me encarando numa mescla de ódio e desespero. Me veio o pensamento de que Natan havia resistido muito mais, embora aquele ali teria o pescoço quebrado a qualquer momento se eu quisesse.
- Miserável... - disse uma voz atrás de mim, logo após um som de disparo. Soltei o homem assim que senti que a bala havia entrado em minhas costas. Não podendo se conter, o homem perto do carro, disparou mais dois tiros quando me virei. Em meu peito agora haviam mais duas balas. Tentei calcular os danos, mas apesar de um formigamento irritante, parecia estar tudo bem. Claro, isso não sairia de graça. O homem já se preparava para o quarto disparo quando saltei e chutei seu rosto com violência, fazendo com que disparasse contra o muro. Eram quatro deles no total, e por mais um minuto ou dois me diverti ali. Seus rostos estavam irreconhecíveis devido aos golpes, mas tenho que admitir; não tinha me segurado muito depois de me aquecer. Talvez pelo porte físico dos skins, brutamontes apesar da pouca idade aparente. Era difícil associar a imagem rude e agressiva deles a ''fragilidade'' que representavam para um vampiro.
Quando percebi, estavam no chão. O casal de velhos, moradores de rua, haviam aproveitado a bagunça e já estavam longe dali à tempos. Resolvi ir embora, pois o sangue do primeiro rapaz ainda testava minha força de vontade, e não estava pronto para beber o sangue de um humano, ainda que fosse daqueles vermes. As balas que antes me incomodavam, pude expelir com um pouco de concentração, e quando usei meu sangue para me curar, senti a sede um pouco mais forte que antes.
Caminhei pela calçada novamente por alguns minutos, deixando eles para trás. Estava mais calmo embora algo me incomodasse e não soubesse por que. A lua brilhava à cima, majestosa como sempre e estava enorme. Senti uma presença perto demais de mim, e não pude detectar de onde vinha aquela sensação. Decidi ir embora o quanto antes pois Lucius iria querer arrancar minha cabeça.
Foi então que o Golf vermelho veio em minha direção com todos os homenzinhos carecas quase-destruídos que eu havia acabado de surrar. Parei e observei enquanto eles vinham a toda velocidade pra cima de mim. ''Sem noção...'' , pensei, mas meus instintos me disseram pra não sair do lugar. Eu parecia mesmo atrair carros na minha direção, já que da última vez, não fosse por Lucios teria realmente partido desta pra melhor.
Quando o carro subiu a calçada saltei com uma mão no capô e girei no alto, passando por cima deles e caindo em pé do outro lado em segurança enquanto eles caíam no córrego. Olhei por um instante o estrago que fiz. Não me sentindo nada culpado, finalmente fui embora dali.
Olhei o celular. Pagaria caro por deixar no silencioso. Haviam cinco chamadas perdidas mas não tinha percebido antes. Eram quase duas e meia da manhã, nada de ônibus novamente e também não queria atender as ligações de Sara ou Vinicius. Só queria ir pra casa e parecia que iria demorar, mesmo se me valesse do velho hábito de ignorar o bom senso, e corresse até lá.
- Noite longa... - disse comigo mesmo, e voltei a caminhar.