O som tamborilante no telhado a acordou. Lucy gemeu sonolenta abrindo os olhos devagar. Após se espreguiçar piscou algumas vezes encarando o teto branco e inclinado. Onde estava? O quarto do dormitório não tinha um teto assim. Foi quando uma dor latejante nas costas explodiu atordoando-a e lembrou frustrada. Gemendo outra vez se sentou o mais devagar possível. Estava em missão, numa vila onde um monstro magro e negro sequestrava pessoas e por acaso, esse monstro lhe deu um bom golpe nas costas.
Suspirou tirando umas mechas do rosto e olhou ao redor. No quarto pequeno, outra cama jazia ao lado da sua e nela estava a servente mal humorada. Os cabelos castanhos emaranhados no travesseiro. Deu uma espiada na janela e gemeu de desgosto. Escuro. Ah, droga... Devia ser de madrugada. Jogou a coberta pro lado. Pela chama fraca da vela no castiçal conseguiu enxergar sua mochila e se esticando pegou a escova num bolso e penteou os cabelos. Logo trançando e pondo num ombro.
Sua boca estava seca e a chuva não havia parado. Pelo ao menos os trovões não soavam mais. Demorou um bom tempo para dormir além de tentar esquecer o que houve mais cedo. Suspirando, guardou a escova e vasculhou a mochila procurando uma roupa mais seca. Achou um short preto e folgado. Pelo tecido fino estava frio, mas teria que bastar. Vestiu ainda sentada, depois com toda calma se levantou. Mordeu o lábio. Droga. Não eram só as costas. Suas coxas e um dos braços doíam também. Contusões do acidente quando chegaram.
Tinha achado um milagre não estar doendo tanto, mas pelo visto as horas de sono distenderam seus machucados. Com certeza os hematomas ficariam visíveis mais tarde, se não é que estejam agora.
Praticamente se arrastando caminhou até a porta e destrancou, saindo no máximo de cuidado para não acordar a tal Daisy. Diferente do comum, os quartos dos empregados ficavam no ultimo andar. Junto com a sala de banho e onde Magdalena a acomodou era um “cômodo” no sótão. Nada contra, apenas o barulho do vento uivando pelas paredes contribuiu para sua noite mal dormida.
Foi atravessando o corredor, mal reparando na decoração enquanto caminhava. Tudo o que queria era um copo d’água e um remédio para seus machucados. Talvez encontrasse isso na cozinha. Desceu as escadas até o lance que dava para o salão do primeiro andar. Foi se apoiando na parede, o corrimão estava quebrado da confusão com o monstro. Sentiu um involuntário arrepio ao lembrar.
Duhb... Ainda não acreditava nisso. Quer dizer, era apenas uma lenda. Uma história boba para assustar crianças, mas então lembrou do que Magdalena disse mais cedo.
“Sleep Hollow é uma vila pequena, mas muito boa. Há dez anos as pessoas vinham aqui por causa dos nossos pomares e nosso folclore local... Meu marido vivia orgulhoso de contar a todo viajante que se hospedava aqui.”
Folclore... Piscou seguindo até uma porta no final do salão. Será que seria sobre o monstro? Bem provável e pelo visto havia mais coisas que esconderam quando fizeram o pedido. Suspirando desceu a pequena rampa de pedra entrando na cozinha. O ar aromático lhe deu uma sensação de nostalgia. Quando pequena, vivia brincando e assistindo as empregadas da mansão cozinharem. Era divertido já que... Não havia mais ninguém com quem brincar. Seus ombros murcharam e seguiu direto para um dos armários de madeira, abarrotados de louças. Havia uma mesa comprida no centro do cômodo e em cima jazia um jarro d’água. Pegou um copo e colocou um pouco para ela. Emborcava o copo quando ouviu atrás de si.
- Sem sono loirinha?
Cuspiu de susto e se virou tossindo para a pessoa. Sentado numa cadeira, apoiando o encosto na parede, Natsu a equilibrava nos dois pés enquanto a encarava com um ar despreocupado. Como se fosse normal pregar susto nas pessoas. Além disso, ele vestia apenas uma calça folgada, negra como seu short. Um rubor incomodo subiu do seu pescoço apesar de ainda estar tossindo.
- Qual é – tossiu mais um pouco – o seu problema?
Ele franziu as sobrancelhas.
- Nani?
Controlando a crise de tosse bateu o copo na mesa.
- Você aparece assim do nada. Eu quase me engasguei.
Soltando um risinho ele se balançou na cadeira, os braços largados aos lados. Lucy sentiu seu rosto esquentar mais. Lembrando da pintura que as meninas lhe mostraram. Definido era pouco para descrever o físico dele. Natsu era magro, mas musculoso. O peito forte e os braços dele a fizeram imaginar como seria estar ali... Aninhada e apertada num abraço. Piscou atordoada e vendo ele soltou mais um risinho, estreitando o olhar.
- No que estava pensando loirinha? De repente ficou vermelha...
Apertou os punhos se emburrando.
- Não te interessa.
- Ah sei.
A malícia aumentou com o tom debochado. Então do mesmo modo que isso surgiu, Natsu piscou surpreso em seguida desviando o olhar, suspirando. Parando de se balançar na cadeira encostou-a na parede e espantada ela viu um leve rubor subir no seu rosto enquanto o mago estreitava os olhos para o vazio.
- O que foi?
- Não te interessa.
Pestanejou com o tom emburrado. Espere um pouco. Foi ele que começou! E agora agia como se fosse culpa dela? Cara esquisito. Se apoiou na mesa atrás de si, observando o rubor dele aumentar enquanto pensava longe, a deixando curiosa. Pigarreou pra quebrar o silêncio.
- Por que veio pra cá?
- Não conseguia dormir.
- Hum...
Até que esse ar envergonhado é fofo. Pensou enquanto via o rosto do mago ruborizando mais.
- Porque não conseguia dormir?
Suspirando forte ele virou o rosto, a encarando exasperado.
- Já disse que não interessa Lucy!
Arregalou os olhos, ofegando.
- Você disse.
- Disse o quê?
Engoliu em seco, alheia ao olhar irritado dele.
- O..o meu nome.
Cruzando os braços, Natsu quase riu inclinando o rosto. Isso fazia as mechas caírem nos seus olhos.
- E daí? É chato ficar te chamando de “loirinha” o tempo todo, garota.
Suspirou irritada. Garota... Natsu disse isso porque não queria dizer seu nome outra vez, deu pra ver. E lá estava o deboche de novo. Pensou que tinha passado, mas pelo o modo como ele se comportava ainda vai demorar muito para esse mago irritante mudar.
Contudo, resolveu engolir a raiva. Não seria infantil como ele.
- Natsu, como era na guerra?
Ele piscou surpreso.
- O que?
Dando os ombros Lucy continuou, encarando o piso de pedra.
- Li muito a respeito e maioria dos autores dizem que era um caos. Quer dizer, a maioria das cidades e vilas estavam destruídas e os reinos eram independentes. Mas mesmo assim... como tudo isso começou?
Ouviu um suspiro e levantou o rosto. Ele encarava o vazio, os olhos focados num passado agora distante. Lucy se arrepiou com aquela expressão séria em seu rosto. Era como se tivesse ficado muitos anos mais velho.
- Tinham razão. Era um inferno.
Engoliu em seco com a sinceridade. Piscando ele continuou, sem precisar que o incentivasse.
- Tudo o que sei era o que os mais velhos contavam. Um dia todos viviam normalmente até um vento quente, vindo do oeste, soprou assustando todos que moravam no reino de Aingord. O vento tinha cheiro de enxofre e ferrugem. Depois as muralhas estremeceram e as arvores nos bosques quebraram como trovões.
A encarou sorrindo minimamente do seu rosto pálido.
- Cem dragões irromperam dos céus destruindo o reino em horas.
Empalideceu ainda mais.
- Quan..quando foi isso?
Suspirando Natsu virou o rosto.
- Há mais ou menos cem anos – piscou confuso – quer dizer, quinhentos.
Meu Deus! Estremecia de medo apenas imaginando a cena que descreveu. Imagine na vida real?
- Devia ser horrível.
- Era.
Silêncio. Havia tantas coisas que queria perguntar, mas pelo jeito abatido dele tentaria em outro momento. Então lembrou de uma coisa, com certeza Natsu responderia.
- Como eram suas campanhas com a unidade?
Ele a encarou sério e perdeu um pouco da coragem.
- Quer dizer, vocês deviam se arranjar na hora das batalhas, não é?
Soltando os braços ele puxou um fio solto da calça, abaixando a cabeça enquanto enrolava num dedo. Teve a impressão que não queria encará-la.
- Não lutávamos juntos. Não o tempo inteiro. Eu só participei algumas vezes com a unidade toda. Matadores de dragões são temperamentais e é difícil cooperar em lutas.
Soltou um risinho amargurado.
- Então...
- Eu travava as batalhas com Lucy. Havia mais dois Dragon Slayers e ela era nossa maga de suporte, mas...
Mas era muito forte, mesmo não usando magias mortais como às dele. Ela percebeu que o tom da sua voz ficou mais leve ao falar de sua ancestral. Para amenizar mais o clima tenso puxou a conversa para outro assunto.
- Soube que ela podia abrir vários portões de uma vez. Devia ser incrível.
Bem atenta as reações dele, esperando que talvez se irritava se surpreendeu quando se recostou na cadeira, fechando os olhos ao suspirar.
- Areia. Água. Luz do Rei e Força bruta.
Entreabriu os olhos a encarando sereno.
- Sabe o que é isso loirinha?
Piscou confusa até ofegar.
- Quatro portões. Esses são atributos de..
- ... Scorpio, Aquarius, Leo e Taurus – quase riu lembrando – Era o combo preferido dela.
Engoliu em seco. Espantada.
- Três dos espíritos são os mais fortes. Consume muita magia.
Natsu deu os ombros.
- Isso não era problema.
Seu queixo caiu. De repente, ele pousou as quatro pernas da cadeira.
- Falando nisso...
Se levantou, andando até ela enquanto enfiava a mão no bolso. Lucy apesar do nervosismo com essa aproximação conseguiu ouviu um tilintar. Olhou para baixo e viu a argola com as nove chaves do zodíaco. Ele as carregava o tempo todo?
- Quero tratar algo com você.
Levantou o olhar, sentindo as bochechas queimarem. Natsu estava bem do seu lado, mas não a olhava. Ele colocou a argola na mesa e espalhou as chaves, de modo que ficassem como ralos dourados no anel de metal.
- Esse monstro que leva as pessoas...
- Duhb.
Corrigiu e ele revirou os olhos.
- Que seja, ele me parece muito difícil de se pegar. É muito rápido, ágil e ainda entrou na casa sem arrombar uma janela.
- O que?
Ele levantou o rosto.
- Vasculhei cada canto mais cedo e não achei nada. Nem o resquício do cheiro dele.
- E o meu quarto?
O cômodo estava interditado depois do ataque. Natsu encarou as chaves outra vez.
- Nada também.
Isso era estranho. Ela percebeu que a tensão pairava sobre os dois.
- Talvez quando a gente for conversar com o cidadão-chefe ele explique mais.
- Quem sabe.
Natsu também duvidava. Suspirando ele mexeu na argola, separando algumas chaves das outras.
- Quando esse monstro aparecer, vamos lutar e quero que você use elas.
Lucy olhou para a argola e pestanejou.
- Do..dois portões?
- Quatro.
- VOCÊ TÁ LOUCO? EU NÃO POSSO ABRIR MAIS DE UM PORTÃO AO MESMO TEMPO!
- Quieta loirinha.
O mago sibilou irritado e se xingou pela mancada. Olharam para a porta, checando se alguém vinha por causa do seu grito e depois se encararam. Natsu assumiu uma expressão séria, a fazendo engolir em seco.
- Não será ao mesmo tempo. Vai abrir cada um simultaneamente. Me perguntou qual era o meu estilo de lutar com Lucy e era assim. (olhou para as chaves na mesa) Ela atacava com seus combos de espíritos e eu com minhas chamas. Claro que não vai ser a mesma coisa, a qualidade dos ataques será menor...
Se entalou. Como ele planejava a próxima luta deles e ainda a ofendia?! E ela não perguntou nada disso! Suspirando, ele continuou.
- ... Mas pelo ao menos não precisarei ficar gritando tudo o que tem de fazer.
Piscou. Do que estava falando agora?
- Como assim?
A olhando de viés, ele explicou.
- O sequestro de ontem à noite. Quando aquele monstro nos jogou no salão você agiu invocando Taurus. Conseguimos atacar juntos mesmo que por pouco tempo.
O calor no seu rosto voltou a deixando encabulada. Lucy baixou o olhar, fingindo que encarava as chaves.
- Que bom que não te atrapalhei.
Sua voz apesar de tremula foi cheia de sarcasmo. Isso fez ele rir.
- Sarcasmo e vergonha não combinam loirinha. Está toda vermelha.
Arregalou os olhos e levantou o rosto, se arrependendo em seguida. Sorrindo para ela Natsu a olhava através das mechas que sempre caiam em seus olhos. O ar divertido dele amoleceu seus joelhos e o mais assustador, era notar que não foi de proposito. Simplesmente era o seu jeito de ser. De repente, ele parou de sorrir e estreitou olhar virando o rosto para a porta.
- O..o..que foi?
Piscando, o olhar sério ficou mais estreitado.
- Vem vindo alguém. Depois conversamos.
Lucy assentiu. Pegando a argola de cima da mesa, Natsu a colocou no bolso e saíram da cozinha. Ao entrarem no salão não havia ninguém e isso a deixou mais desconfiada. Ela entendeu o que o mago quis dizer. Até que resolvessem o problema, não confiariam em ninguém.