Rosae vermillus - O clã das rosas vermelhas

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    14
    Capítulos:

    Capítulo 11

    Alter ego: Um outro eu

    Violência

    A noite estava fria e silenciosa, e nada disso me afetava como deveria. Não sentia frio, mas se saísse de camiseta no meio da noite seria como pedir por atenção. Já eram onze e meia quando caminhando, cheguei a rodovia Raposo Tavares, e peguei o que talvez fosse o último ônibus da noite para me levar até meu antigo bairro. Não precisava pegar um ônibus, a não ser para me sentir um pouco normal novamente. E voltar a pisar ali era loucura, eu sabia disso mas...

    Foi então que notei que alguém me encarava constantemente. Uma garota, sentada mais à frente, passou a viagem toda me observando. Usava uma touca e um cachecol e demorei a reconhecer, tanto quanto ela devia ter demorado também, para ter certeza de que era eu. Quando me levantei e desci no meu ponto, ela me acompanhou, começou a me seguir. Era a garota da festa de aniversário em que Rose tinha ido antes de ser levada por Charles. O nome dela era Luana, a idiota que havia visto que Rose seria drogada e mesmo assim não tinha feito nada para impedir.

    A gola da jaqueta estava erguida e minha touca abaixada até os olhos mas aquela menina parecia estar determinada a acabar com a dúvida. Ela acelerava o passo, me acompanhando mesmo quando tentei despistá-la. Comecei a me preocupar, não era bom que alguém assim soubesse de mim. ''Que ideia eu tive...'' pensei, mas quando alguém chamou a garota e ela se virou em resposta, usei minha aceleração e desapareci numa esquina.

    - Onde você está indo, sua doida? - pude ouvir alguém dizer de longe, talvez o novo namorado que vinha buscá-la do trabalho. Estava salvo, por hora, pelo menos daquela garota.

    Não me contentando com aquilo, resolvi ir até em casa. Não me agradava a ideia de meus pais sofrendo, sem saber se eu estava vivo ou morto. Faria eles pensarem que eu apenas não queria ser encontrado, ou que revoltado por tudo, buscava vingança e que nunca mais voltaria pra casa. Era melhor que pensar num filho morto. Então subi como um gato até o sobrado onde tinha uma porta para o meu quarto. Ainda tinha as chaves, pois Lucius não tinha se livrado delas quando tirou tudo de meus bolsos.

    Nostalgia, ou algo parecido era o que eu esperava. Nada assim pode me alcançar, sentimento algum. ''Pois bem...'' , pensei, e sai de lá com uma mochila cheia de coisas minhas e outra com roupas que me fariam falta. Tentei deixar claro que não havia sido um assalto, pois tranquei a porta e joguei a chave por de baixo da porta. Tinham o direito de saber que o filho deles estava ''vivo'', e que por escolha própria não apareceria em público novamente.

    Ainda era relativamente cedo pra voltar quando tive outra ideia perigosa. Fui ver Tiago, que estava em seu quarto, pois notei a luz acesa de longe. Quando éramos criança, ganhei um presente dele de aniversário. Éramos tão jovens, e aquilo certamente marcou a época. Tiago havia me dado de presente um boneco do Batman que ele gostava muito por sinal, mas sabia o quanto eu queria aquele boneco, e em meu aniversário de nove anos me deu como prova de amizade. Eu dizia constantemente que um dia o devolveria, pois sabia o quanto ele sentia falta do Batman. Havia chegado o dia de devolver.

    Atirei contra a parede de sua casa enrolado em um pedaço de pano e vi de longe quando ele saiu pra fora e desenrolou o boneco. Agora ele saberia que eu estava vivo também, se é que era mesmo um boa ideia. Mas eram as pessoas que me importavam - ou que se importavam comigo, já que não sentia realmente o mesmo de antes por ninguém de fato, embora sentisse que era o certo agir assim -, e não queria que fosse diferente.

    Cobri meu rosto um pouco mais com a touca e continuei a caminhar. As poucas árvores jovens, recentemente plantadas pela prefeitura oportunista, balançavam com o vento. Segui pela calçada paralela ao córrego. Um caminho feito centenas de vezes por mim e que agora era como se um novo ser, um ''estranho'' o fizesse. Não era o mesmo Leandro, não o rapaz que costumava ser. Muito havia mudado além do estranho corpo que ganhara. Podia ouvir melhor, sentir odores e distingui-los de um modo diferente de antes - embora não fosse como um cão ou algo assim - Não precisava mais respirar, e isso era até mesmo doloroso se tentasse. O sol queimava-me a pele ao expor meu corpo, e meu sangue não corria pelo meu corpo se eu não deixasse. As vezes, na casa de Pedro, sem nada para fazer isso era meu passa-tempo; controlar o fluxo sanguíneo de meu corpo da maneira que quisesse.

    Meu corpo estava ''morto''. Mal podia resistir à radiação emitida pelo sol, e minha cor pálida me tornava menos atraente do que gostaria. Mas não era só fisicamente que havia mudado tanto, e a prova disso estava ali, naquele momento.

    Do outro lado do estreito córrego, enquanto eu caminhava mergulhado em pensamentos cada vez mais sombrios, um grupo de jovens arruaceiros insistia em perturbar a paz de um casal de moradores de rua. Desajeitados e enrolados em seus cobertores, tentavam se desvenciliar dos agressores. Uma pessoa normal nunca poderia enxergar tão bem no escuro como eu estava fazendo naquele momento. A iluminação no local era fraca e falha. Do outro lado, não deveria ser possível saber o que se passava, talvez a isso se devia a estranha calma daqueles idiotas. Sem contar que por sua agressividade, poucos tentariam se opor.

    O que o antigo Leandro faria numa situação destas, seria continuar caminhando até que pudesse pedir ajuda para o pobre casal. O que o ''antigo'' Leandro faria. Às vezes sentimos tanta raiva, tanto rancor do mundo ou das pessoas, que procuramos motivos, desculpas, para sairmos por aí, fazendo coisas no mínimo improváveis. Como se gritasse-mos ao mundo; ''Me provoque para ver!''. É claro que quase sempre isso não dá em nada. Nossa virtude supera esse tipo de coisa antes que tudo fique sério. No entanto, meu ódio não era algo que desapareceria após desabafar com alguém ou dar uma volta e respirar ar fresco. ''Sou um vampiro afinal...'', pensei comigo. E fazia sentido que as trevas nos corações daqueles rapazes me atraíssem tanto. Eles estavam me provocando, claramente me pedindo pra ir até eles e me juntar a festa. Minha língua moveu-se lentamente por meus lábios e no caminho, passou pelas presas afiadas que se projetavam por instinto. Eu estava lá, parado do outro lado do córrego. Ouvindo toda aquela injustiça, decidindo o que faria e se poderia me controlar após dar o primeiro passo.

    - Seu vermezinho... - disse um deles, após um tapa no rosto do velho que abraçava sua companheira e não revidava, fosse por medo ou apenas pela fraqueza de alguém que não tem uma refeição decente desde muito tempo.

    - Eu vou esquentar você, velho! - disse outro, em meio a gargalhadas, tirando de seu carro um vidro de álcool e jogando-o quase todo no homem.

    - Não se preocupe mais com o frio! - disse outro, acendendo fósforos e ameaçando jogar no velho em tentativas frustradas pelo vento, que os apagavam assim que eram acesos.

    - Aqui seu babaca, usa isso aqui, olhe! Anda logo, ou eu faço! - disse outro deles em tom de ameaça. Estava claramente com pressa de tostar o velho e sua companheira, pois ofereceu ao amigo um isqueiro muito legal, do tipo que faz você querer começar a fumar só pra exibir por aí o isqueiro maneiro.

    O rapaz que havia jogado o álcool finalmente apanha o isqueiro e abrindo a tampa do objeto prateado, a chama brilhou forte em meus olhos naquele momento. Foi como um chamado, e eles não puderam me ver ou ouvir enquanto dei três passos e um salto por cima do córrego. Mal puderam me notar quando me aproximei deles e empurrei o sujeito do isqueiro contra o muro. Não percebi quanta força havia usado até então, mas o fato é que aquele já não acordaria tão logo. Sua cabeça havia se chocado forte contra o muro e começava a sangrar.


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