Quase me tornei indiferente ao que tem acontecido comigo. Desde a primeira parte desta história, tanta coisa aconteceu e foi descoberta que meio que fiquei anestesiado a um ponto que quase nem ligo mais. Junte essa atitude com o fato de que nada aconteceu (até ontem) com a gente desde que Rose invadiu nosso quarto, e você tem um cara que ligou o modo foda-se. Acho todos chegamos a esse ponto um momento de nossas. Provavelmente é um mecanismo de defesa.
Então, ontem (quarta-feira), tive uma folga do trabalho. Minha namorada decidiu que queria dar um tempo de tudo. Foi para a casa de uma amiga em uma cidade vizinha por alguns dias. Eu gosto de aliviar meu estresse malhando. Como estava de folga, queria fazer mais do que só levantar uns pesos, então decidi dar uma longa pedalada de bike. 80 Km até a próxima cidade. Era uma manhã bem nublada, então decidi não levar mais nada além de alguns dólares para a viagem de volta de ônibus (eu até consegui ganhar um Iphone 5 em uma promoção, e definitivamente não queria estragá-lo caso chovesse). Então fui para a viagem de bike com nada mais do que minha Trek (Nota da Tradutora: Trek é uma marca famosa que confecciona bicicletas esportivas) e alguns dólares no bolso.
Por volta do quilometro 45 da viagem, entrei nessa trilha que me direcionava para o meu destino final. Era de 35 quilômetros. Já tinha feito essa trilha em julho e sei a estrada está sempre cheia. Centenas de malditos ciclistas em todo o caminho, daquela vez quase não conseguia me mexer. Mas agora parecia estar deserta. Ninguém lá. E o tempo só ia ficando pior. Neblina densa. Me sentia como se estivesse dentro de uma nuvem, me sentia úmido, mas sem chuva de verdade. Minha camiseta estava pingando e a visibilidade estava uma bosta, mas decidi continuar. Depois de alguns quilômetros pedalando ali, percebi que haviam alguns bancos ocasionais no acostamento, algo que não percebi da primeira vez. Uma ideia legal, pois as vezes você precisa de um descanso quando faz uma viagem tão longa. Mas continuei. A visibilidade estava de 5 metros à frente, se não menos. Quando já estava no quilometro 10 ou 11 da trilha, achei ter ouvido uma risada. Pisei nos freios e deslizei por alguns metros. Parei e ouvi. Nada. Bem, sei o que você deve estar pensado e você está certo. Sou um grande idiota. Fazer uma viagem enorme de bicicleta com pouco tempo enquanto sei que estou sendo perseguido por uma louca psicopata. Roteiro clichê de filme de terror. Eu sei. E me arrependo muito de ter feito o que fiz. Mas a minha razão era que nunca ninguém tinha me atacado fisicamente e no pior dos casos alguém ia só me oferecer a porra de uma laranja.
Subi novamente na bicicleta, dei duas ou três pedaladas e ouvi novamente a risada. O som vinha de um ponto mais à frente na trilha. Pensei “foda-se, vou continuar”. A neblina cedeu um pouco e deixou a visibilidade para uns 8 metros. Foi quando enxerguei alguém sentado em um dos bancos mais a frente. Eu mentiria para mim mesmo se falasse que seria normal um ciclista estar sentado ali para descansar com aquele tempo. Provavelmente era isso, certo? Eu e você sabemos que não, não era um ciclista sentado ali. Era um homem. Ela trajava um terno preto. Sem chapéu nem bengala, então me senti um pouco melhor. Mudei para marcha mais pesada e comecei a pedalar a todo vapor. Enquanto eu passava por ele, ele começou a rir novamente. Não havia ninguém perto dele. Sem um jornal, livro, celular ou bicicleta. Apenas sentado com as mãos sobre os joelhos, nem olhando para mim estava. Apenas olhando para frente. E bem quando estou passando esse louco
começa a rir histericamente. Fiquei apavorado. Foi quando notei que havia uma laranja ao seu lado no banco. Então ele olhou diretamente para mim. Os encontros com Rose tinham sido assustadores, mas esse homem, bem, era outro nível de assustador. Apenas continuei a pedalar. Ouvi a risada mais uma vez enquanto me afastava dele. Os próximos 20 Km levaram mais ou menos 45 minutos, ou em outras palavras, não diminui a velocidade de jeito nenhum. Cheguei na cidade onde iria pegar o ônibus e outra surpresa me aguardava. Cheguei na estação as 16:10. O último ônibus partiria as 16:30. Este ônibus ia me deixar em outra cidade (na mesma que eu tinha pegado aquela trilha), onde eu pegaria outro ônibus para casa. Bem, cheguei na estação e vi que o os únicos dois suportes de bicicletas já estavam ocupados. Ou seja, o motorista me falou que era contra as regras bicicletas dentro do ônibus e se eu quisesse ir para casa naquela noite, teria que ir pedalando até a outra cidade antes das 19:00, que era o horário que o último ônibus iria para minha casa. Tinha mais ou menos duas horas para fazer 30 km. Ou isso ou passar a noite ali. E infelizmente só tinha 10 dólares comigo, então... É. Pedale de volta, seu idiota. E boa sorte com o cara gargalhando no meio do caminho.
Queria poder que consegui persuadir o motorista a me levar. Queria ter ficado lá naquela noite. Podia ter tentado pagar um hotel dando o número do meu cartão de crédito, talvez? Podia ter tentando. Mas não, decidi pedalar, e recebi o que merecia.
Três quilômetros adentro da trilha, vi algo no chão a uns 10 metros à frente. Lembro de pensar na vinda como achei a trilha limpinha e bem organizada, então era estranho ver lixo jogando no chão. Diminui a velocidade. Era um GI Joe de brinquedo. Parecia novinho em folha. Bem, alguma criança deve ter deixado cair enquanto antava de bike com sua família. Continuei. Um pouco mais a frente, outro objeto. Uma bola de basquete. Parei. Peguei. Meus olhos encheram de lágrimas. Quando eu estava na oitava série, haviam competições de basquete no meu colégio. Fiquei tão animado para aquilo! Montei o melhor time que pude. Se ganhássemos, poderíamos entrar em um torneio estadual e ganhar até dinheiro. Chegamos na competição e descobrimos que só tinha mais um time inscrito na nossa categoria de idade. Ficamos muito felizes, pois significava que, mesmo perdendo, ficaríamos em segundo lugar e ganharíamos algum prêmio. Perdemos, quer dizer, fomos massacrados pelas outras crianças. Mas, como acabamos em segundo lugar, cada um de nós ganhamos um vale-presente de 50 dólares em uma loja famosa de artigos esportivos da nossa cidade. Fomos imediatamente para lá. Meus amigos escolheram alguns tênis e camisetas de times de basquete, mas eu escolhi uma bola de basquete. Era tão única: Era pintada como um tabuleiro de xadrez de 64 quadrados, 32 brancos e 32 pretos. Me chamaram de louco por gastar meu vale-presente naquilo, mas eu amei. Até que, alguns dias depois, descobri que o design me dava dor de cabeça quando a bola quicava e girava e quem desenvolveu aquilo era um grandessíssimo desgraçado. Então joguei a bola de cima de uma ponte perto da minha casa, diretamente no rio. E agora eu estava cara a cara com a mesma bola, 8000 Km de distância daquela ponte, no meio de uma floresta, em uma trilha de ciclismo na qual ninguém sabia que eu estaria. Congelei, soltei a bola e só queria gritar. Você fica puto da cara uma hora, sabe? Com raiva que sua vida não é normal como das outras pessoas. Porque não posso me preocupar com coisas normais tipo se meu time vai se qualificar para a final do torneio ou não? Ou se vou ganhar um aumento esse ano? Porque tenho que passar por isso? O que eu fiz? Podia ficar ali contemplando sobre a vida ou podia dar o for a daquela floresta e tentar pegar meu ônibus. Escolhi a segunda opção. Então continuei a pedalar, cuidadosamente. Depois de alguns quilômetros, outra coisa no chão. Uma página de jornal. Estava um pouco úmida por conta de uma garoa. Peguei. Era um artigo sobre mim. Quando vim para o Estados Unidos, o colégio do qual eu fazia parte publicou um artigo sobre minha vida no jornal escolar. E lá estava, em minhas mãos. Joguei no chão e decidi que não pararia mais. Passei por outros objetos no caminho: uma bicicleta que tinha quando ainda morava na Bósnia, por uma antiga camisa do Iron Man e também uma foto da minha família em um porta retrato quebrado. Passei até por um gato morto que era idêntico a um que tive com 15 anos de idade. Quanto mais rápido eu ia, os objetos da minha vida apareciam com mais frequência na trilha.
Nesse ponto você deve estar achando minha história inacreditável e tão clichê quanto um filme de produção alternativa. Fique à vontade para não acreditar, para me chamar de mentiroso. Charlatão. Eu faria isso também. Eu teria falado que era uma mentira lavada já na segunda parte. Queria estar zoando com vocês. Queria estar escrevendo isso por diversão. Estou escrevendo para obter ajuda, conselhos, para liberar minha mente, pelo menos por um minuto que seja.
Então eu estava lá, voando com a bike pela trilha. Mais uns três quilômetros e estaria fora daquela floresta infernal. Estava escurecendo. Escurecendo e ficando com mais neblina. E daí, porra, daí eu ouço a risada. Mas desta vez é de uma criança. Ou não. Diminuo a velocidade, com medo do que está por vir. Vejo uma silhueta sentada em um banco mais a frente. O mesmo banco em que o homem estava. Rindo novamente. Não era uma risada maligna de um psicopata que acabou de matar uma vitima mas sim um roso brincalhão. Uma risadinha descontraída. Só que não era uma criança. Era uma mulher que estava sentada ali. Com um vestido branco. Era Rose.
Pisei nos freios com tanta força e rapidez que me surpreendi de não ter voado por cima do guidão. Ela estava sentada lá, com as pernas cruzadas, olhando para frente e não para mim, e rindo. Então ela se virou em minha direção, dobrou a cabeça, sorriu aquele sorriso que tanto já descrevi, e disse:
"Sente-se"
Foi a primeira vez que fiquei com tanto medo que senti minhas pernas cederem por alguns segundos. Nos outros encontros com ela, eu estava em casa ou em outro lugar que me passava segurança. Aqui... Aqui era no meio de uma floresta. E enquanto escrevo isso percebo o quão idiota eu fui de embarcar nessa viagem sozinho em um momento como esse. Talvez, em meu consciente, eu queria encontrar ela novamente. Encontrá-la e dar um fim nisso. Reuni um pouco de coragem e desci da bicicleta. Coloquei-a no chão e vi uma foto minha com minha primeira namorada, no chão. Estava molhada e parecia um pouco queimada. Andei até ela. Ela sorria, sem se mover.
"Sente-se." Falou na minha língua nativa, com voz infantil.
"Não."
"Você tem sido um menino muito mimado, Milos."
"Não sou um menino. Não quero me envolver com vocês. Porque vocês não me deixam em paz? O que vocês querem de mim?"
Me senti livre por poder expressar minhas frustrações gritando na cara daquela vagabunda que andava causando tanto sofrimento para mim e minha namorada.
"Não precisa gritar, Milos."
"Não, eu QUERO gritar. Você está fodendo com a minha vida!"
"Só quero que você venha comigo."
"Primeiro me diga o que você quer. Daí eu decido se vou ou não."
Ela pegou a laranja que estava sobre o banco e me ofereceu.
"Não é uma decisão sua."
Sua voz mudou um pouco, mas ainda não era totalmente apropriada para uma mulher de sua idade.
"É a minha vida, sua desgraçada!"
Ela perdeu o sorriso.
"Sabe, Milos, isso aqui vem de muito tempo. Você não tem poder sobre isso. Você VIRÁ."
Ela gritou a palavra "virá". Tipo, gritou para mim. Dei um passo para trás, pronto para nocauteá-la. Ela se levantou.
"Eu lutarei com vocês. Eu chamarei a polícia. Eu..."
"Você não vai nem pode nada." Ela cortou minha fala. "Quem você acha que eu sou? Acha mesmo que a policia pode te ajudar? Acha que seus amigos podem ajudar?"
"Que merda vocês são? Um culto? Vocês querem me sacrificar?"
Ela começou a rir. Riu sem nunca fechar os olhos, sem parar de me olhar.
"Menino bobo." Sua voz mudou para de criança novamente. "Você ainda tem muito o que descobrir sobre nós." Deu um passo em minha direção.
Nesse ponto já estava convencido que estava lidando com algo que não era humano. Tenho que admitir, depois de chegar em casa e esfriar a cabeça, comecei a pensar mais logicamente e voltei a minha antiga teoria que faziam uma parte de um culto. Mas ali, naquele momento, eu acreditei estar na presença de algo a mais.
"Vou pedir ajuda para outros, então" Falei, sem nem entender o que eu queria dizer.
"Religião, talvez?" Falou de um jeito, tipo quando uma criança está te imitando só para te irritar. "Você acha que os Deuses podem te salvar? Pergunte para seu padre. Pergunte e decida."
Não fazia ideia do que ela estava falando, mas decidi que havia chegado ao meu limite. Era hora de correr. No mesmo momento, ela deu um passo para trás, voltou a se sentar, e começou a olhar para a laranja. Corri para a bicicleta, subi e comecei a pedalar como se o próprio Diabo estivesse atrás de mim. Quando passei por ela, começou a a rir incontrolavelmente, ainda olhando a laranja.
Cheguei no último minuto no ônibus. Estava destruído durante a viagem de volta e quando cheguei em casa. Liguei para o cara da policia, contei o que havia acontecido, e ele falou que entraria em contato com a guarda local para dar uma olhada na trilha. Não que eu esperasse algo disso. Passei o dia inteiro pensando nisso. Como ela/eles conseguiram acesso a pertences meus que eu tinha certeza que nem existiam mais? Aquele era mesmo o gato que eu tive 12 anos atrás? Como? E o que ela quis dizer com "pergunte para seu padre"? Tantas perguntas e nenhuma merda de resposta. Estou mentalmente exausto. Não contei para minha namorada sobre isso, ela com certeza entraria em surto. Talvez eu entre em surto. Sou um homem perdido, tormentado por algo que nem sei o que é. Estou perdido.