Durante aquela longa semana eu tinha frequentado aulas de ballet extra com a madame Blanche, todos os dias. Cada aula demorava cerca de quatro horas mas, como é óbvio, haviam alguns intervalos de dez minutos. Como sempre, madame Blanche mostrava-se muito rigorosa contra os passos.
- Fille Chevalier, esse seu último passé ficou muito torto. De novo. - dizia madame Blanche toda vez que eu tentava fazer um passé.
Este passo não era um dos mais difíceis do bailado, mas ainda assim requeria alguma flexibilidade e bastante persistência.
Finalmente, após várias tentativas, atingi a perfeição e permaneci em passé durante alguns segundos até reparar no pequeno sorriso satisfatório que a senhora me esboçava.
- Muito melhor, querida. Vá, de novo. - ela ordenou, batendo duas palmas.
Eram dias cansativos, mas ainda assim, eu voltava para o pub a fim de ajudar minha mãe com as refeições, minhas irmãs com as limpezas e meu pai com o atendimento às mesas.
Certo dia, ums dois dias antes do grande dia, Valentin aparecera lá no pub, envergando uma pesada gabardina preta e com um chapéu da mesma cor. Ele pediu para os meus pais que eu pudesse falar com ele em privado e, como é óbvio, eles não lhe negaram o pedido. Me chamaram e levaram a gente a sós na despensa. Eu estava tremendo de medo. Sozinha com um homem na despensa, sem ninguém para me socorrer caso ele tentasse alguma coisa... Era uma sensação horrível mas eu o tinha de enfrentar seriamente.
- Valentina, - começou ele, fechando a porta da cozinha atrás dele enquanto eu me afastava o mais possível dele - eu preciso de contar uma coisa que você não pode falar para ninguém.
- Claro, mon seigneur. Por favor, diga.
Então, ele se aproximou de mim até eu me encontrar encostada à parede e ele a milímetros de mim.
- Você conhece uma garota que deve ter a sua idade chamada Chlóe Villot?
- Oui, mon seigneur. É uma jovem que, de vez em quando, frequenta aulas de ballet comigo. - respondi, sem resistir em sorrir - Mas porquê, seigneur Valentin?
Valentin suspirou e olhou para os lados, como que para ter a certeza que ninguém nos via ou ouvia, e acabou por baixar o tom de voz.
- Pelo que eu soube, você e ela vão actuar ao Château de Versailles.
- Oui, vou dançar ballet lá para uns quantos capitães e generais alemães. E agora que você fala na Chlóe, não fazia a menor ideia que ela também ia ao Château dançar. - respondi, puxando uma madeixa de cabelo para trás da orelha direita - Mas porque pergunta, seigneur Valentin?
- Essa tal garota, a Chlóe é... ela é judia.
E assim, uma vez mais, meu coração pareceu parar de bater. "Isso é impossível! Aliás ela tem sempre um terço com ela. Como é que a Chlóe pode ser judia?" pensei comigo mesma. Olhei para ele nos olhos e tentei manter o ritmo respiratório com que respirava até há uns segundos atrás.
- Não pode ser, mon seigneur. - eu lhe disse, colocando a mão esquerda à frente da boca - A Chlóe não é judia. Aliás, ela sempre se mostrou bastante cristã.
- E como você tem tanta certeza? - ele me perguntou, aproximando seu rosto um pouco mais do meu até eu poder sentir a sua respiração sobre a minha pele - Você não está com ela vinte e quatro horas por dia, pois não?
- N-Não, mas...
- Então você não a conhece bem. Eu vi ela sair de casa ontem à noite para ir para uma casa participar em orações com outros judeus, lá para a uma da manhã.
- E como você a viu? - eu lhe perguntei, sem ter sequer a ideia que aquela pergunta me podia ter levado para a prisão por "duvidar" de um soldado alemão.
- Valentina, eu sou... - ele se calou por uns momentos e respirou fundo - Eu sou um agente da Geheime Staatspolizei. É por isso que eu a segui ontem à noite. Sua amiga Chlóe é suspeita de praticar o Judaísmo.
Nesse momento meus olhos foram preenchidos por pesadas lágrimas transparentes. Eu não fazia a menor ideia do que os alemães eram capazes de fazer aos judeus mas tinha a pequena ideia que, o que quer que lhes fizessem, não podia ser algo de bom.
- Monsieur, por favor, não faça mal à Chlóe. Ela é uma boa menina. É bem-educada e nunca fez nada de mal a ninguém. Seja a religião que ela siga, não lhe faça mal porque ela não merece. - eu lhe pedi, passando as mãos pelos olhos a fim de enxugar minhas lágrimas - Eu faço qualquer coisa e nunca direi a ninguém que você é um agente da... Ge... Geheime...
- Gestapo. - ele me disse - Também somos conhecidos por esse nome.
- Oui, da Gestapo. - me corrigi - Eu faço qualquer coisa, monsieur.
Ele fechou os olhos, acabando por me segurar a cintura e me encostar à parede com força.
- Seigneur Val... - eu fui interrompida logo a seguir.
Lentamente, ele me beijou os lábios, acariciando meu rosto com um pouco de pó de arroz com a sua mão esquerda. Eu não soube como reagir. Tinha medo que se me movesse ou o tentasse afastar de mim, ele me batesse ou girtasse comigo, pelo que me deixei ficar imóvel. Sua mão direita segurou minha cintura com força, pressionando-a contra a parede com força. Então, ele me soltou e susssurrou ao meu ouvido "Eu gostaria que... isso ficasse só entre nós". Eu baixiei minha cabeça e assenei com a cabeça.
- Claro, monsieur. - disse eu, corada e meio que constrangida.
- Ótimo. - ele disse, ajeitando o casaco do uniforme - Até daqui a dois dias, chérrie.
Assim, ele saiu da despensa, me deixando ali sozinha, encostada à parede, entre os sacos de trigo e de cevada. Uns minutos depois, minha irmã Anne apareceu à porta e me olhou de cima a baixo.
- Soeur, está tudo bem? - ela me perguntou.
- Oui, Anne, está tudo bem. Não se preocupe... - suspirei, fazendo-lhe um sinal para me deixar a sós.
Um beijo. Não me importei que ele me tivesse segurado a cintura. Mas o beijo... Eu estava assustada... e claro, eu estava nada mais nada menos do que... perdidamente apaixonada por aquele alemão.