De Volta Ao Passado

  • Lu San
  • Capitulos 8
  • Gêneros Família

Tempo estimado de leitura: 59 minutos

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    Capítulos:

    Capítulo 1

    Pode Me Chamar de Ray

    Spoiler

    - Muito bom dia, Raymond! ? saudou o homem com um sorriso largo e braços abertos, assim que me viu descer os degraus do ônibus.

    Como ele me conhecia? Aquele cara, com certeza, não tinha nada a ver com as pessoas daquele lugar. Não apenas pela pele clara e pelos quilinhos a mais, mas suas roupas eram tão chamativas que se destacaria em qualquer lugar.

    Ele usava um terno vermelho ? que combinava com o chapeuzinho ? e o bigode com os sapatos pretos completavam o visual... Diferente.

    Foram vinte minutos de avião e cinco horas de ônibus para chegar ali. Um pensamento inevitável em minha cabeça pesava como tonelada assim que observei melhor o cenário: será que eu fiz a escolha certa?

    Mal tinha descido o último degrau quando ele veio me dando um abraço sufocante.

    - É um prazer conhecer você, Raymond!

    - Ray... ? tentei corrigi-lo, mas minha voz era tão baixa que ele não deve ter ouvido.

    - Seja muito bem vindo! ? continuou, ainda me abraçando esmagadoramente.

    Não demorou para que os olhares curiosos começassem a disparar em nossa direção, o que me fez encolher no meio de seus braços.

    Tudo ali era diferente: as ruas, as pessoas, até mesmo a arquitetura. Em quê eu havia me enfiado dessa vez?

    O homem me libertou, sem graça, assim que algumas pessoas que ainda estavam atrás de mim reclamaram.

    - Vamos! ? disse ele com a expressão animada, se oferecendo para me ajudar com as malas. ? Se sairmos agora, podemos chegar para o almoço!

    - Almoço?! ? exclamei. Ainda não havíamos chegado? Em que fim de mundo ficava essa maldita fazenda?!

    O homem ignorou meu espanto e, segurando uma das minhas bagagens de mão, começou a andar. Eu não sabia para onde estávamos indo, mas apenas o segui.

    - Oh meu Deus! Eu já havia me esquecido! ? exclamou ele de repente no meio do caminho, olhando com uma expressão completamente diferente para mim. ? Sinto muito pelo seu avô.

    Me encolhi mais uma vez. Desde que soube da notícia eu tentava o máximo não pensar no assunto. Mesmo que tivesse o visto tão poucas vezes, a morte de meu avô foi um peso para mim. Em maior parte por causa de arrependimento ? afinal, tantas vezes ele me chamava para visitar sua fazenda, mas depois que entrei na adolescência eu sempre achava uma desculpa. São tão poucas lembranças que eu tenho dele, mas ainda assim tão boas! Mas mesmo assim ele deixou sua fazenda para mim? Era tudo o que ele tinha! Tudo de mais precioso! Por que ele tinha deixado para mim, seu neto ingrato que nunca queria vê-lo?

    - Obrigado... ? respondi como um sussurro, com o olhar vazio, fitando o chão em que caminhava.

    - Ele era um homem muito bom, sabia? Todos da vila gostavam dele. Sempre prestativo, atencioso... As crianças adoravam brincar com a velha Nana! Lembra-se dela? É claro que já morreu, mas ela deu cria, sabia? Bom, a maior parte dos filhotes seu avô conseguiu doar, mas ficou um para você. Se quiser, é claro.

    Sua voz diminuía cada vez mais ao perceber minha falta de atenção. Não era proposital, é claro, mas eu não tinha paciência para ouvir sua tagarelice.

    - Sinto muito pelo seu avô... ? repetiu ele, de volta com a expressão triste, concluindo suas palavras. ? Tenho certeza que se orgulha muito dele.

    - Me orgulho sim, com certeza! ? tentei forçar um sorriso, mas não era muito bom nisso.

    Continuamos nosso caminho em silêncio. Assim que chegamos ao estacionamento (que mais parecia um jardim cimentado), não pude disfarçar minha surpresa. A maior parte das vagas estava lotada de bicicletas.

    Bicicletas? ? eu pensei. Da onde eu vim, as bicicletas eram raras.

    Isso me fez lembrar a minha velha bicicleta vermelha que ganhei de meu avô quando criança, que ficou encostada na dispensa de casa.

    Isso me fez encolher de novo. Meu avô não era muito rico, e tudo o que tinha ele conseguiu graças a essa fazenda. Imagino como deve ter sido cara essa bicicleta para ele, e eu a desprezei simplesmente porque meus pais podiam me dar coisa melhor.

    - Aqui estamos! ? exclamou o homem de repente, o que me fez pular de susto. ? Não seja acanhado, por favor, mas eu não vivo sem algumas coisas de luxo... Você entende, não é? ? disse ele piscando um dos olhos para mim.

    Luxo? Aquele carro era exatamente a cara dele! Era um Rolls Royce 1953 vermelho, mas muito bem cuidado. Os pneus brilhavam e a lataria vermelha bem encerada podia servir como um espelho.

    Sorri um pouco com a excentricidade, mas me contive.

    - Meu Deus! ? exclamou ele de novo, me olhando com os olhos arregalados. ? Me desculpe! Eu esqueci totalmente de me apresentar! Eu sou Thomas, o prefeito da vila Mineral, muito prazer. ? disse ele vermelho de vergonha, esticando a mão para mim.

    Prefeito? Para que um buraco daqueles precisava de um prefeito? ? eu pensava, sorrindo ao apertar sua mão.

    - Muito prazer.

    - Desculpe, Raymond, mas minha memória falha as vezes. Eu...

    - Tudo bem, eu entendo. ? o interrompi com um sorriso, antes que ele voltasse a tagarelar.

    - Bom, vamos indo então! ? disse, abrindo as portas de trás para que eu colocasse minhas malas.

    Ele tagarelava alguma coisa sobre o carro, mas eu não fiz questão de ouvir.

    Entramos depois de alguns apertos aqui e ali para que todas as minhas malas coubessem.

    Apresar da extravagância, o carro era muito confortável. Os bancos de couro eram pretos e o painel de um tom caramelado, que combinava com tudo.

    O motor era barulhento e a velocidade era lastimável (tanto que até algumas bicicletas passaram por nós várias vezes), mas ainda assim era muito confortável.

    Entramos em uma estrada esburacada poucos minutos depois de deixar o estacionamento, o que fazia o carro pular tanto que tinha que me segurar no banco para não cair.

    - Espero que aceite almoçar em minha casa hoje, Raymond!

    - Ray. ? o corrigi de novo.

    - Como? ? perguntou o prefeito confuso, sem tirar os olhos da estrada de terra.

    - Ray, pode me chamar de Ray.

    - Ah sim, desculpe, Ray. Mas então, o que gosta de comer?

    - Bom, qualquer coisa...

    - Você não é vegetariano, é? ? interrompeu-me o prefeito. ? Porque meu filho sabe fazer um filé parmegiana incrível!

    - Não, eu adoro carne!

    - Que bom, que bom! ? exclamou o prefeito, com uma alegria um tanto exagerada. ? Você é bom cozinheiro? Porque ele pode te passar a receita, se quiser...

    - Eu adoro cozinhar...

    - Ótimo! ? interrompeu de novo. ? Existem ótimos cozinheiros na vila! Tem a Ann, que trabalha em um restaurante...

    E mais uma vez ele começou a tagarelar coisas que eu não fiz questão de ouvir.

    Durante toda a viagem ele me chamou de Raymond mais umas algumas vezes, mas eu desisti de corrigi-lo na terceira vez.

    - Aqui estamos! ? ele exclamou, assim que estacionou em frente a uma placa de madeira que dizia Bem Vindo à Vila Mineral! ? Sinto muito, mas não podemos continuar de carro daqui, já que a estrada é muito estreita.

    - Sem problemas. ? disse, enquanto abria a porta do carro.

    - Você vai adorar, tenho certeza! ? começou o prefeito a tagarelar de novo. ? As pessoas são muito simpáticas, o clima é super agradável... Temos até uma praia, sabia? É claro que não é como aquelas praias que você deve estar acostumado, mas é muito agradável...

    Por que ele me dizia isso? Eu já estive ali antes. Faz tempo, é claro, mas eu não tinha amnésia!

    Peguei minhas malas e fechei a porta do carro. Mais uma vez ele se ofereceu para ajudar, carregando minha bagagem de mão mais uma vez.

    Caminhamos uns 3 km por uma estrada de terra que ficava em meio às árvores dos dois lados. Se o prefeito não tagarelasse tanto, seria possível ouvir o barulho da cachoeira dali.

    Quanto mais andávamos mais o cenário se tornava familiar. Aquela estrada de terra tinha alguma coisa diferente que eu não sabia dizer o que era, mas durante toda nossa caminhada uma incômoda sensação de dejá-vú me dominava.

    - Chegamos! ? exclamou o prefeito mais uma vez assim que passamos por uma ponte, que cortava um rio fino, e entramos em uma fazenda que parecia abandonada.

    Apesar do cenário, me trazia muitas recordações.

    Caminhamos até a minúscula casinha de madeira, onde guardei minhas malas.

    - Então, o que acha? ? começou o prefeito, enquanto observávamos o estado da fazenda. ? Essa era a fazenda de seu avô. Ela foi abandonada por um tempo, então está uma bagunça...

    Andei alguns passos involuntariamente pelo campo. Meus olhos correram por todo o cenário, enquanto as lembranças começavam a encaixar em minha cabeça.

    - Você se lembra de quando você era criança e passou as férias de verão nessa fazenda?

    Assenti com a cabeça. Eram tantas lembranças que, aos poucos, meus ouvidos pareciam surdos e minha mente me levava de volta ao passado.


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