Medo. O que queria dizer essa tão mal-afamada palavra? "Medo"? Eu nunca tive medo de nada, nem de ninguém. Nem mesmo quando meu pai me ameaçava de me castigar se eu não tratasse os clientes do pub com o devido respeito que todos eles merciam.
Estávamos no mês de Maio de 1940. Era Primavera. Não me lembro ao certo em que dia é que foi, mas lembro-me de ouvir tiros e gritos nas ruas.
Nós, os parisienses, já haviamos sido avisados que as tropas Nazis iriam tomar a cidade... Apenas nunca pensámos que fosse tão "de repente". Aliás, que mal tinhamos nós feito aos alemães? Nunca lhes quisémos nenhum mal... Pelo menos EU nunca lhes quis nenhum mal. Mas seja como for, eles vieram aos milhares. Muitos milhares. Dezenas de milhares... Centenas de milhares! E os seus rostos eram tão frios, curéis e ríspidos.
Eu tinha apenas 16 anos quando eles apareceram à porta do café. Abriram a porta com tamanho estrondo que assustaram toda a gente ali presente. Eu e minhas quatro irmãs mais novas (Anne, Bélle, Marrie e Nicole), que apontávamos os pedidos dos clientes e corríamos para a cozinha para os apresentar à nossa mãe, voltámos-nos de imediato para a entrada, surpresas, pois não era habitual abrir-se a porta com tamanha força.
- Heil Hitler!- bradou um dos homens de sotaque alemão cerrado que entrou pela porta, esticando o seu braço direito para cima - A partir de agora, a cidade francesa de Paris está em posse do homem mais poderoso à face da Terra que, como já devem saber, é o Fuhrer. A partir de agora toda a gente fará e dirá tudo o que nós, a Gestapo, aprovarmos. Fiz-me entender, gente parisiense?
Eu tremi ao ouvir tais palavras. Ali estava eu, atrás do balcão, abraçada à minha pequena irmãzinha, Nicole. Ela era apenas uma criança, como todas nós a meu ver. Quero dizer, era mesmo uma criança. Ela tinha apenas seis aninhos de idade.
- Ma soeur, - sussurrou ela, em voz baixa - o que é que eles estão aqui a fazer?
- Oh, irmãzinha, não te preocupes. - sussurrei-lhe eu, por minha vez - Eles vieram apenas... dizer "Olá!" à gente.
- Mas não têm cara de serem muito amigáveis. - pude ouvir a sua voz tão aguda desafinar um pouquinho ao dizer aquelas palavras, sentindos as suas mãozinhas apertarem a saia do meu vestido.
Pude ver um outro homem loiro de olhos verdes, já dos seus vinte anos, caminhar na nossa direcção, pelo que apertei minha irmã ainda mais contra mim, para protegê-la caso fosse necessário.
- Bonjour, mon cher. - cumprimentou-nos ele, com um sorriso nada verdadeiro nos lábios - Me parecem um tanto assustadas. O que se passa com vocês? Assustámos vocês, foi?
- Nada disso, senhor. - respondi-lhe, abraçando Nicole, apertando fortemente contra mim - Minha irmã e eu é que não estamos lá muito habituadas a que as pessoas entrem no café tão... repentinamente.
- Bom, então você e sua irmã terão de se habituar rapidamente pois em breve... - ele acariciou minha face esquerda com a sua mão enluvada, sem deixar de me sorrir com aqueles seus dentes tão brancos - ... passaremos aqui a maior parte do nosso tempo.
Não lhe respondi. Aquele seu sorriso dáva-me nojo! E quem era ele para me acariciar o rosto daquela maneira? Foi bastante rude da sua parte... Mas o que mais me irritou foi o facto desse cara ter olhado para minha irmã mais nova e ter passado a língua pelos lábios. Apeteceu-me dar-lhe um tapa naquele rosto limpinho e branco... mas sei que o que se seguisse não seria bom para mim, para ela... nem para as pessoas que ali estavam (incluindo o resto da minha família).
- Sim, senhor. - respondi-lhe, tentando esconder a raiva e o medo que estava a sentir.
- E partir de agora, mon cher, eu não terei que pagar nada. Nem bebidas, nem comida, nem alojamento... Nada. A partir de agora, tudo o que eu pedir você terá o prazer de mo oferecer. - ele me disse, passando os seus dedos pela pele de meu pescoço.
Pude olhar pela pequena janela que ligava o salão à cozinha e ver meu pai cerrar os punhos com força por ver o soldado me acariciar o pescoço.
- Fiz-me entender, garota? - me perguntou o soldado alemão, enquanto aqueles seus olhos azuis e frios me olhavam de cima a baixo.
- Sim, senhor, perfeitamente. - disse-lhe, deixando de sentir sua mão em mim, vendo-o afastar-se do balcão.
- Ainda bem. Já agora... Qual é o seu nome, meu amor?
Fez-se um silêncio bastante desconfortável. Os clientes olhavam-nos, ali, especados, sem sequer intervirem.
- Valentina, senhor.
- Valentina. - ele repetiu, com aquele seu sorrisinho trocista na boca - Ouviu isso, Valentin? Deixou de ser "a garotinha da tropa". Agora que temos a Valentina, que tem um nome semelhante ao seu, podemos parar de nos divertirmos com vocês.
Então, olhei para a entrada e pude ver um outro soldado alemão. Ele era magro, loirinho, de olhos azuis e devia ter mais dois anos do que eu. Segurava uma arma nas mãos, presa ao ombro por uma alça de cabedal escuro, que combinava com a bóina, com as botas castanhas escuras. Ele estava vestido como o primeiro homem que entrou no pub, menos os seus emblemas, que eram quase todos diferentes.
- Ya Vol. - respondeu o tal de Valentin, fazendo continência ao homem, mesmo este não estando a olhar para ele.
Pude ouvir o "alemão grandalhão" rir-se e virar-me costas. "Parece que nos vamos divertir muito durante nossa estadia em Paris, mademoiselle." ouviu-o dizer, enquanto se afastava de mim, indo na direcção do rapaz que os esperava à porta. Ao vê-lo passar por si, Valentin olhou-me com pena e e ainda pude ver os seus lábios gesticularem "Escusez-moi, mon cher". Nessa altura, senti um aperto no coração. A porta fechou-se... e eu estava cheia de medo.