Acordei na manhã da segunda feira com bolsas em baixo dos olhos. Depois do incidente com a fotografia, além da raiva de mim mesma, eu sentia a culpa por ter me metido no quarto de Gray sem a sua permissão. E eu era a pessoa de quem deveria se esperar menos isso, uma vez que tinha um passado não muito agradável, e, sem dúvidas, polêmico.
Não conseguira falar com Gray durante o resto da tarde e muito menos no jantar: não sabia exatamente o que dizer. Desculpas provavelmente não iriam diminuir a revolta dele. Eu sabia por que eu mesma agiria assim, caso alguém bisbilhotasse em meu quarto. Era muito fácil uma pessoa pedir desculpas depois de agir por pura vontade e tendo tido consciência havia feito. Cada vez que eu o olhava tentava imaginar um jeito de me redimir de outro modo.
E com essa preocupação que eu fiquei a noite toda envolvida. Eu não queria que ele me odiasse. Mas não deu em nada. Talvez eu tivesse de deixar o momento passar, simplesmente.
Não estava lá muito animada para o treino, mas me arrumei e fui tomar café. Na mesa, tentava evitar olhar Gray, e ele não fazia questão de falar comigo também. Acho que apenas Ultear percebeu que algo estava estranho.
- O que foi dessa vez? – ela perguntou enquanto eu lavava meu prato.
- Longa história. – preferi não dar detalhes. – A culpa é minha.
Ela meneou com a cabeça, compreendendo, e foi embora, dizendo que iria sair com alguns amigos. Chelia, que recolhia a mesa, me esperou até eu terminar e fomos para a piscina. Eu estava contente com o fato dela ter voltado a falar comigo, mesmo que superficialmente.
Já de maiô, me lembrei que aquele seria o último dia em que Gray me ajudaria. Que ótimo. Eu passaria meu último dia brigada com ele. Pelo menos, eu daria o meu máximo durante o treino.
E dei mesmo. O esforço me ajudava a liberar a tensão e esquecer um pouco os problemas, então nem reclamei quando ele gritava para eu acelerar. Me animei até. Pelo menos durante o treinamento ele não parecia ter mudado, não deixando ser afetado pelo que ocorrera.
Tendo já terminado, Gray pediu que eu esperasse antes de me trocar. Ele pegou a prancheta com os treinos, fez algumas anotações e a entregou para mim.
- Dê isso para a Ur. Tem os seus tempos, qualidades e pontos que precisa melhorar.
Eu baixei a cabeça.
- Obrigada. Gray-sama... – eu tentei dizer, mas ele já tinha pulado de volta na piscina.
E esse foi o meu último treino com o Gray. Silencioso, rígido, e com uma clara despedida.
Antes de passar a prancheta para Ur, li as anotações do Fullbuster. Sua letra era grossa e marcada, e ele não havia escrito muito.
Tempos:
1º circuito: 3 min
2º circuito: 5 min
3º circuito: 7 min
Pontos a melhorar:
Resistência
Reclamações frequentes
Força
Confiança em si mesma
Pontos positivos:
Dedicação
Velocidade
Teimosia
Apertei a prancheta contra o peito. Não conseguira não dar risada de alguns dos itens, mas Gray se mostrara bastante perceptivo em relação a mim. Talvez eu ainda tivesse alguma chance de fazê-lo voltar a não me odiar.
...
O resto do dia não fora lá muito movimentado. Depois do banho eu lera um pouco, conversara com Chelia (propositalmente eu tentava ficar o máximo possível ao seu lado), e descansara. Gray ficara a maioria da manhã e o início da tarde em seu quarto, e eu não ousara interrompê-lo para tentar conversar com ele. O almoço Cana fizera.
Quando eram cerca de quatro horas da tarde, comecei a me arrumar. Seria o primeiro dia no meu emprego e eu queria causar uma boa impressão. Além do mais, eu tinha falado com a gerente e ele me dissera para eu chegar um pouco mais cedo, para receber um tour da lanchonete. Ela, por sinal, era bastante simpática.
Ao descer as escadas esbarrei com Gray, que parecia estar de saída também.
- Desculpe a Juvia. – disse, enquanto me dirigia à cozinha.
Ur estava lá, e quando avisei que estava indo trabalhar, perguntou:
- Mas você sabe o caminho?
- Errrr, eu me viro, né? – até eu mesma não me convencera com a minha fala.
Para dizer a verdade, eu era terrível com orientações. Ok, de metrô eu sabia andar, mas quando eu chegava às ruas não era lá muito improvável eu me perder.
- Deixe disso, o Gray te leva.
- O que?! – gritou ele da sala de estar.
- É isso mesmo. – ela se abaixou e falou no meu ouvido. – Eu percebi algo de estranho entre vocês dois. Ele fica assim emburrado, mas é um ótimo garoto.
Ela deu um sorriso, e eu percebi o quanto ele se importava com Gray. Acho que por ter cuidado dele faz muito tempo, talvez fosse coisa de mãe. Eu não sabia muito bem, tendo perdido meus pais muito cedo.
Gray apareceu na cozinha imediatamente, com uma cara de poucos amigos. Apesar de parecer revoltado, sabia que ele faria o que Ur pedia. Já começara a entender como ele funcionava com a mãe. Apesar de tudo, ele mostrava ter um grande respeito por Ur, e parecia seguir as regras dela.
- Você já ia sair mesmo, não é? E a Juvia não sabe como chegar no trabalho dela. Onde é mesmo, Juvia?
Eu dei nome do bairro.
- É até perto de onde você vai. – disse Ur.
Gray parecia não saber que desculpa dar, então acenou para Ur e me chamou para ir embora. Minha vontade era de agradecer a Ur um milhão de vezes. Eu me virei para ela com um sorriso enorme.
- Eu sei. Agora vai lá. – falou enquanto ria, e eu corri antes que Gray me largasse e fosse embora.
...
Ficamos a maior parte do percurso em silêncio, excluindo os momentos em que comprávamos as passagens do metrô, quando ele me impedia de entrar por alguma rua errada, etc.
Eu não sabia o melhor momento para começar a falar, mas se ficasse esperando talvez eu nunca dissesse nada.
- Gray-sama, sobre ontem... – ele se voltou para mim com o olhar levemente irritado. -Eu sei que eu já pedi desculpas, mas... Eu sei que o que eu fiz foi uma total falta de respeito e você tem todo o direito de estar chateado, mas você poderia perdoar a Juvia?
E eu tinha voltado ao estágio das desculpas. Talvez não houvesse outro jeito de quebrar o gelo.
O silêncio se fez presente por alguns momentos. Quando olhei para cima para observar Gray, ele parecia concentrado em alguma outra coisa. Melhor, ele parecia querer fugir de alguma coisa. Ele olhava para frente com o olhar arregalado.
Quando me virei para ver o que ele olhava, levantei as sobrancelhas em surpresa. Um garoto de cabelos cor de rosa corria em nossa direção, afobado, enquanto acenava loucamente. Ele usava uma blusa vermelha com um cachecol branco por cima, e estes estavam todos bagunçados. Mais atrás, uma garota loura corria com um sorriso no rosto, e sem conseguir acompanhar o adolescente, parava de vez em quando para respirar. Ela, diferente de mim, não tinha só peitos grandes. Eles eram enormes. Enquanto ela corria eu só pensava como deveria ser difícil se locomover na situação dela.
Ao irem se aproximando, o garoto, que, eu percebi, estava vindo literalmente em nossa direção, começou a gritar:
- Gray! E aí, olhos caídos?
A vergonha alheia era tamanha que Gray colocou uma das mãos na testa enquanto parecia pensar.
- Eu não acredito que eu vou ter de fazer isso...
E não muito depois, ele agarrou minha mão e começou a correr. De novo.
- Gray-sama, isso é realmente necessário? – gritei, cansada.
Ele não respondeu. Como se não bastasse o ocorrido no mercado, mais uma vez nós corríamos pelas ruas procurando um lugar para nos esconder. Mas toda essa insatisfação acabou quando eu vi que, apesar de determinado a fugir, Gray parecia estar, acima de tudo, se divertindo.
Quando achamos um beco para nos escondermos, ele me puxou para dentro. A questão era que o beco era, na verdade, um cubículo, então tivemos de ficar abraçados para cabermos os dois ali. Melhor dizendo, ele me abraçou. Eu só fiquei apreciando o momento. Enquanto eu sentia suas mãos na minha cintura e seu batimento cardíaco pesado, discretamente cheirei a área do seu ombro. Isso me acalmou imediatamente. Ele não demonstrou ter percebido.
Depois do casal de perseguidores ter passado, ele me soltou e nós saímos do beco. Ele notou que eu estava totalmente confusa no meio de tudo aquilo.
- Quem eram eles?
- O Natsu e a Lucy.
- Quem?
- As pessoas com quem eu estava indo me encontrar.
Não entendi.
- Peraí, você quer dizer que nós estávamos fugindo dos seus amigos? Por que?!
- O Natsu é... Meio escandaloso, acho que você notou. Se ele nos visse juntos ele iria começar a fazer muitas perguntas. Não seria legal para nenhum de nós. Ele iria querer uma mini biografia sua. – ele parecia querer simplificar as coisas para mim.
Não duvidei de nada. Gray não parecia ser do tipo de gostar de interrogatórios, eu percebera desde o meu primeiro dia. Eu acenei e continuei a observá-lo. Ele pareceu perceber que eu ainda queria uma resposta para a pergunta de antes. Ele colocou um dos braços atrás da cabeça.
- Acho que tudo que se tem para refletir você já refletiu. Eu definitivamente não gosto de intrometidos. Eu só... ainda estou um pouco irritado, mas ok.
Uma rajada de felicidade me atingiu e minha vontade era de pular em cima dele naquele momento, mas fiquei quieta. Eu tinha de dar tempo ao tempo, para que tudo voltasse ao normal.
Ele sugeriu que nós nos separássemos, para que ele encontrasse Natsu logo, e para que eu não me atrasasse. Ele perguntou se eu ficaria bem por mim mesma, e eu confirmei, apesar de não ter certeza.
Ainda bem, no final eu consegui chegar ao local. E o meu espanto não foi pequeno.
...
O nome do estabelecimento era “L'heure du Thé”, do francês. A decoração por fora era de orquídeas em vasos, e havia um quadro negro com o prato especial do dia. Ok, até aí eu sabia.
O problema era que por dentro da lanchonete circulavam garotas vestidas de maid e garotos vestidos de mordomos. As garçonetes e os garçons. O que explicava completamente o fato da gerente ter me oferecido quase o dobro que os outros cafés para eu trabalhar ali cinco dias na semana (segunda à sexta). Minha vontade era desistir, mas eu precisava daquele dinheiro. A menos que eu preferisse trabalhar em dois lugares ao mesmo tempo.
Com esse pensamento, entrei no local, e, buscando não me imaginar em um daqueles trajes, fui até o balcão de pedidos, onde uma garota da minha idade arrumava alguns papéis.
- Olá, eu vim aqui para trabalhar meio período...
A garota levantou o olhar animada. Seus olhos eram de um tom azul claro, e combinavam com os seus cabelos brancos.
- Ah, você deve ser a Juvia. Prazer, eu sou a gerente, Mirajane.
Me espantei. Talvez por antes minha imagem do local não ser um maid café, eu imaginara a gerente... velha. E Mirajane parecia ter a minha idade.
Apertei sua mão e ela se levantou para me mostrar o local. A roupa de maid combinava com ela, que não parecia ter nem um pouco de vergonha de andar daquele jeito. Eu a segui enquanto ela me mostrava a cozinha, me introduzia ao cardápio e a como eu deveria tratar os clientes. Mirajane era extremamente simpática.
- Bom, agora vamos para o vestiário.
Ela começou a me puxar para uma área atrás da cozinha. Ao chegar lá, havia um armário para cada pessoa, e dentro do meu estava o meu bendito uniforme. Ela me empurrou para o trocador no banheiro feminino.
- Como vocês conseguiram minhas medidas? – perguntei.
- Na verdade esse era para mim. Se tiver alguma coisa errada eu conserto agora.
Depois de me vestir e me encarar de vários ângulos no espelho do trocador, disse:
- Não é que esteja errado, mas...
De súbito, ela puxou a cortina do provador e me examinou de cima à baixo. Parecia em êxtase.
- Isso está p-e-r-f-e-i-t-o! – ela dava pulinhos de alegria. – Eu não tinha noção de que você iria combinar tanto com a roupa.
Achei que ela tinha algum problema. O vestido tinha um espartilho preto na cintura, acabava no meio das minhas coxas, cheio de babados. Para finalizar, eu usava uma meia 7/8, um saltinho, a passadeira e duas pulseiras.
- Eu tenho mesmo que usar isso?
Mirajane começou a ajeitar meu cabelo.
- Você está linda. E você vai ver, é divertido trabalhar aqui.
Ela me deu um tapinha nas costas e me conduziu para o meu primeiro dia de trabalho.
...
Depois de algumas horas eu já havia pegado o ritmo e estava começando a gostar do que estava fazendo. Os outros que lá trabalhavam eram tão legais quanto Mirajane, e os clientes eram muito gentis. Eu já estava me esquecendo da roupa.
- Juvia, mesa sete! – gritou Mirajane do balcão.
Com um sorriso, me dirigi ao grupo que lá se encontrava.
- Boa noite, patrõezinhos... – travei.
O grupo ali sentado não passava de Natsu, Lucy, uma garota de cabelos vermelhos e Gray. O último me encarava perplexo.
- Juvia?! – ele exclamou, vermelho como um tomate.
Meu sorriso se desfez, e eu quase derrubei a bandeja. A coincidência não poderia ter sido pior. Fiquei igualmente constrangida.
- Gray-sama...
- Ah, você é a garota de mais cedo! – exclamou Natsu se metendo no meio de nós dois. – Quem é você? E por que você chama esse bundão de “Gray-sama”?
Eu não sabia exatamente o que responder. A situação chegava a ser cômica.
- Eu tô morando no Casarão... – respondi.
- Natsu?! – chamou Mirajane do outro lado do restaurante, e veio em nossa direção.
Eu acabei me perdendo no meio de toda aquela gente que se conhecia, mas acabei por entender que Mirajane também era da Fairy Tail, assim como todos ali, e que eles tinham vindo comer ali por que eram amigos da Mira. A garota de cabelos vermelhos se chamava Erza.
- Eu não sabia que você vai estudar lá também, Juvia. A propósito, o dono daqui é o diretor da escola.
Arregalei os olhos.
- Ele é um pouquinho tarado... – sussurrou Natsu.
Todos deram risada. Mirajane fez questão de me envergonhar ainda mais.
- Mas ela ficou linda, né...
Eu só observei a Gray. Durante todo aquele tempo ele ficara calado e me olhando. Quando ele me observara de maiô das outras vezes, e ao nos encontrarmos naquela noite, eu esperava que ele olhasse para meu rosto ou ainda os seios, mas eu acho que eu estava procurando na metade errada do corpo. O que Gray encarava eram as minhas pernas. E descaradamente.
Eu queria me esconder.
Depois de alguns segundos nessa situação, Lucy cutucou Gray.
- E você ainda foge com ela, né?
Ele desviou o olhar, deu um sorriso e afagou o cabelo dela. Ela deu um risinho. A raiva me tomou e eu não pude evitar uma careta.
- Então Juvia... O que foi?! – perguntou Natsu.
Balancei a cabeça.
- Nada.
Ah, mas se aquela garota achava que poderia roubar o meu Gray-sama...
...
Gray me esperara até eu terminar o serviço. Não faria muito sentido mesmo nós voltarmos separados. Me despedi de Mirajane e nós fomos embora andando. Depois de parar de encarar minhas pernas, dava para perceber pela expressão dele que a vontade do mesmo era de começar a dar risada. Tentei manter a expressão neutra para esconder a vergonha.
- Uma pergunta meio pessoal: por que você escolheu trabalhar aí? – ele indagou.
- Eu preciso do dinheiro. – ele concordou com a cabeça. – E não sabia de nada disso.
Ele deu uma gargalhada alta.
- Nada? Se você tivesse me contado eu te levava aí.
Voltamos ao silêncio.
- Gray-sama. – ela se voltou para mim. – Outra pergunta meio pessoal: por que você faz tudo o que a Ur manda?
Ele respirou fundo.
- Não tudo. Mas acho que eu tenho uma grande gratidão, além do amor, por tudo o que ela fez e faz para mim. Eu quero dar orgulho a ela. Por isso, faço tudo o que posso.
Eu sorri e concordei.
Talvez eu não precisasse ficar bisbilhotando para saber mais sobre ele. Poderia ser mais lento, mas seria imensamente mais prazeroso ouvir as coisas de pouco a pouco, de acordo com a sua vontade.
A calmaria veio mais cedo do que eu imaginava.