Prólogo
-- Os relatórios que solicitou já estão a caminho Doutor Cerulle, e tomei a liberdade de providenciar um café, sem açúcar para o senhor. ? ao procurar agradecer o atencioso gesto, deparo-me só em meu improvisado escritório, em meio a caixas de madeira talhada abarrotadas de livros desgastados decorrentes do uso contínuo, amontoados aos equipamentos de mergulho corroídos pela névoa fina, úmida e salgada.
O ranger das tábuas da escada indicavam movimentação por ali. Havia realmente alguém a pouco, contudo o carpete vermelho carmesim abafava o som da sala, silenciando os passos de quem adentrasse o local.
A cabine rústica, fora propositalmente emudecida a permitir, única e exclusivamente, o som das ondas de encontro ao casco. As cortinas aveludadas pesadas, mal se moviam sob a janela de alumínio. Entornada para o exterior, permitia a luz do luar e o vento úmido, gelado e salso adentrarem o local dando a sensação de proximidade com a enseada.
Um divã em couro bordado a mão fabricado artesanalmente repousava próximo ao toalete, atraindo-me para seu leito. Apesar da extenuação física e mental, contive meus impulsos focalizando os renques de tinta preta aderidos ao papel amarelado procurando descobrir algo que auxiliasse a localizar certo artefato.
A chama amarelo-ouro da vela sob o castiçal de cobre trepidava ao sabor do vento dificultando a leitura, em acréscimo, o formigamento em minhas pálpebras de noites a fio, não ajudava. As lentes embaçavam a todo instante, apesar disso, no canto superior esquerdo da página sessenta e dois, um brasão chamou minha atenção.
Esmalte em prata, entornado em um escudo lanceolado com partição em asna, de tonalidade sable. Suporte projetando imponentes silhuetas negras de duas morsas com linhas esféricas prateadas no busto, dorso e na cauda, dotadas de presas poderosas, envolvidas em contornos prateados com detalhes acompanhando a coloração da asna nos cantões, esquerdo e direito do chefe, e em destaque, dois ramos prateados simetricamente cravados, em alto relevo, retorcidos ao centro do escudo.
Frequente em minhas pesquisas, alguns aspectos da heráldica foram necessários para compreender a origem do emblema. As cores e as representações utilizadas revelavam dados importantes para caracterizar a personalidade de seu detentor. A prata demonstrava a pureza, firmeza, obediência e integridade, enquanto o preto, prudência, rigor, honestidade, tristeza e astúcia. A figura presente no centro evidenciava a natureza e a riqueza e os suportes nas laterais do escudo, demonstravam a força, proteção e a grandeza.
Contudo, essas raras informações ainda não se conectavam. Em sete anos, investigando e buscando documentos, dados, relatos ou pistas, pouco foi descoberto. Permanecia o enigma. A quem ou a quê se destinava tão ornamento? Quem o criou? Quando? Onde? Por quê?
Questões a serem respondidas, mas sem previsão. Meus devaneios em torno de questionamentos e hipóteses afastaram minha mente, distante, até aqueles que me são caros. Num estalo, o relatório já se encontrava a mesa, acompanhado de um gélido líquido escuro e amargo.
-- Peeeliper. ? raios claros e brilhantes da alvorada inundaram meus olhos, refletindo por entre as lentes. Rondando o navio, revoadas de aves brancas de olhos negros profundos, coloração azul celeste na extremidade das asas achatadas e delgadas, nos pés pequenos e no topo da cabeça, com bico amarelo em meia lua compondo a maior parte de seu corpo, caçavam vorazmente o primeiro lanche do dia, abocanhando enormes quantidades de pescado em um único rasante.
-- Guuuuuulll. ? Entre eles, alguns miúdos pássaros de enormes asas com mesma coloração, mas de bicos finos, longos e de ponta negra, olhos pequenos mirando as águas, tentavam competir pela comida.
Meu corpo rígido pesava na cadeira, a claridade incomodava a vista cansada de uma noite mal dormida após dias de insônia. Os óculos na altura do queixo roçavam na barba azul meia noite, apertando a maça do rosto. Os cabelos disciplinadamente lisos voltados para trás, contrastavam com os olhos castanhos, fortuitos e revolucionários, marejados e sujos do recém acordar.
A calça de linho branco aderiu-se as pernas, impedindo-me de movimentá-las adequadamente. Ajeitei a gola da camisa pólo bordô, alisando o tecido procurando remover os amassados.
Aqueci os membros, alongando-os ainda sentado. Levantei-me zonzo, nauseado, com a boca seca sentindo os lábios rachados. Lavei o rosto, massageando suavemente as têmporas, respirando profundamente pelas narinas. Fitei o espelho. Contornos pálidos, olheiras profundas enegrecidas, cenho trajado por marcas de expressão à pele ensopada. Ao enxugar o rosto com uma toalha verde limão, a aparência ainda era desagradável.
Decidi tirar o dia de folga. Em breve voltaria para casa, rever a família. Ainda que fosse por pouco tempo, menos de uma semana, era o que dava ânimo para continuar. Devia aparentar estar bem, ao menos.
Mirei a baía, admirando a bela paisagem proporcionada pela natureza exuberante de Hoenn. O céu límpido com poucas nuvens. Cerrei os olhos, concentrando-me nos sons emitidos pelo mar. O chiar produzido pelas ondas, à vida em movimento, no ar, na água, na terra, a vegetação esvoaçante dançando aos passos do vento, sempre me encantavam. Respirei o calor úmido e aconchegante, relaxando cada músculo de meu corpo, liberando a tensão e preenchendo-me de tranquilidade.
Percebo um ronco incomum para uma região tão inóspita. Em alta velocidade, cerca de quinze jet skis castanho avermelhado entoando rugidos metálicos em meio as engrenagens, rodearam a embarcação, espantando os pássaros para longe. Muita movimentação nas cabines e nos corredores, a sensação térmica, antes agradável, aumentava exponencialmente.
Revistem tudo. ? ordenou uma voz masculina, rouca, grave entre dentes. ? Tragam todos que encontrarem.
Calculei minhas opções, observando os arredores. Diversos indivíduos permaneciam aos jet skis em uniformes padronizados com um capuz carmim, luvas e botas como acessórios e espécies de chifres e calças negras. Em destaque, um M estilizado no peitoral.
Em minhas expedições não costumava levar meus pokémons, permanecíamos incomunicáveis há dias e nesse momento meus colaboradores corriam perigo. Enfrentá-los não seria viável. Procurar ajuda. Improvável. Última alternativa. Improvisar e contar com a sorte.
Saltei pela janela de encontro ao mar. O choque com as águas foi intenso. Uma queda de três metros comprimiu-me pela dor excruciante, sugando-me até a superfície. Procurei me recuperar, forçando a musculatura a agir, afundando no denso oceano em direção a praia.