O Livro Destinado

Tempo estimado de leitura: 13 minutos

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    Capítulos:

    Capítulo 1

    Tem alguma coisa acontecendo...

    ?Tem alguma coisa acontecendo...? Touya pensou enquanto enchia o balde de peixes.

    Estava trabalhando no aquario municipal aquela tarde. O trabalho era temporário, apenas um bico após a aula. Queria comprar uma moto, mas não queria pedir o dinheiro para seu pai, que já trabalhava duro para poder sustentar a família. Então, os trabalhos temporários eram principalmente para juntar dinheiro, mas esse não era o único motivo.

    Mas naquele momento, Touya só conseguia pensar em uma coisa: o livro. Aquele estranho livro que há anos estava guardado na biblioteca que ficava no porão de sua casa. Desde pequeno aquele livro o intrigava. Mais do que isso, aquele livro o assustava. Pois aquele não era nem de longe um livro comum.

    Quando pequeno, Touya podia sentir e ver coisas que pessoas comuns não podiam. Com 5 anos, viu pela primeira vez um fantasma, fato que o fez correr aos prantos para o colo da mãe. Ela sempre o abraçava e consolava dizendo que ele era um menino muito especial, por isso via coisas especiais. Mas no colégio, Touya não se sentia nada especial. Como as outras crianças não viam os espíritos, nem percebiam seres mágicos, Touya tinha sempre que fingir que nada estava acontecendo. E aos poucos foi se acostumando com as visões e com as sensações, e se tornou um garoto fechado. Raramente contava a alguém sobre esse seu dom.

    Mas certo dia, percebeu uma presença muito estranha no porão de sua casa. Já estava com 7 anos, tinha se acostumado com espíritos e seres mágicos. Mas aquela presença era muito estranha. Por alguns dias, Touya apenas olhava a porta fechada do porão, sem ter coragem de entrar. Até que certa vez resolveu que iria ver. Aproximou-se devagar da porta, respirou bem fundo e prendeu a respiração, antes de virar a maçaneta.

    A porta do porão abriu rangendo um pouco. A claridade vinda da porta permitia que visse pouca coisa além do fim da escada. Touya desceu devagar, cada parte do seu corpo em estado de alerta, pronto para sair correndo a qualquer momento. Ao chegar ao fim da escada, tateou apressadamente pelo interruptor. A luz acendeu, revelando uma série de estantes dispostas paralelamente, cobertas de livros de arqueologia, história natura, literatura e outros que seus pais colecionavam. Touya não via nada de anormal. Mas aquela presença estranha agora estava mais forte. E ele percebia de onde vinha: da última série de estantes, no fundo da biblioteca. Touya foi andando entre as estantes, desta vez determinado a descobrir o que estava escondido ali. Pouco antes de chegar às duas últimas estantes, Touya parou. Por um segundo, teve vontade de sair correndo escada acima e bater a porta do porão, e nunca mais voltar. Mas sabia que se tinha ido até alí, não podia voltar. Então respirou fundo mais uma vez e subtamente sentiu encher-se de coragem. Com um passo rápido e determinado, avançou em direção às prateleiras.

    Não havia nada ali. Apenas livros gastos de tanto uso, e a escrivaninha com algumas folhas que seu pai provavelmente estava estudando no dia anterior.

    Por um instante, Touya se sentiu ao mesmo tempo contente e frustrado. Mas então algo chamou sua atenção. Um livro da estante parecia brilhar fracamente. Touya se aproximou. Podia ler o título: The Clow. Touya estava assutado, mas também curioso. Estendeu a mão para pega-lo, mas o movimento parou na metade.

    Como uma onda, pôde sentir a presença estranha tomando conta de toda a sala. E agora podia perceber, não era apenas uma presença, mas várias presenças. Era como se várias vidas estivessem ali. Mas não eram como espíritos, era algo diferente, algo que Touya nunca tinha sentido antes. E sobrepondo-se a tudo aquilo, Touya sentiu a forte impressão de que ele não deveria tocar aquele livro. Aquele livro estava destinado a alguém, alguém que não era ele.

    Rapidamente, Touya correu escada acima e fechou a porta da biblioteca. A porta bateu com estrondo, e ele se sentia como se tivesse feito algo errado. Pretendia correr para seu quarto e se fechar lá, mas ao se virar, deu de cara com sua mãe, em pé no corredor, olhando-o com aquele olhar sereno de sempre.

    Touya conteve a vontade de correr para seus braços, pois na sua cabeça confusa achava que sua mãe poderia estar brava com ele. Mas ao perceber a insegurança do filho, Nadeshiko sorriu e abriu os braços. Touya correu em sua direção. Abraçada a ele, Nadeshiko acariciava seus cabelos castanhos. Touya olhou para cima, e viu que sua mãe sorria. ?Não se preocupe, Touya? disse ela. Apenas isso. Mas foi o suficiente.

    Porém desde aquele dia, Touya não quis mais olhar aquele livro. Algumas vezes descia à biblioteca, mas nunca ia até as prateleiras do fundo. Podia sentir a presença do livro, mas resolveu ignorar. Ele sabia que aquele livro tinha um destino, e que podia ser perigoso. E sabia também que ele não deveria se envolver.

    Mas recentemente algo tinha acontecido. A presença que ele tinha até se acostumado a sentir tinha sumido. Não sumido exatamente. Parecia que tinha se diluido. Como se todas aquelas presenças que existiam no livro tivessem se espalhado. E, o que mais o preocupava era que achava que sua irmã mais nova estava envolvida com isso.

    Sakura nasceu quando Touya tinha 6 anos. Depois que a mãe faleceu, Touya passou a cuidar dela enquanto seu pai trabalhava para sustentar a todos. Logo ele percebeu que sua irmã também tinha um dom especial. E agora, temia que Sakura tivesse encontrado o livro.

    Touya terminou de encher o segundo balde com os peixes e foi alimentar os pinguins. Ao entrar no tanque onde estaria acontecendo uma apresentação, Touya viu que algo estava errado. A tratadora dos pinguins estava debruçada sobre a beirada do tanque, com as pernas dentro da água, e parecia que não conseguia sair, enquanto a platéia do outro lado do vidro se agitava e os pinguins gritavam desesperados.

    Touya ? O que está acontecendo?

    Tratadora ? O pinguim ficou preso no redemoinho, mas eu não tenho como ajudá-lo!

    A água do tanque formava um redemoinho em volta da perna da tratadora. Touya largou os baldes e pulou na água. Pôde ver que algo estava segurando a perna da tratadora e o pinguim embaixo da água. Touya estendeu as mãos e agarrou o redemoinho que segurava o pinguim, e puxou. Após alguma resistência, o redemoinho cedeu, e o pinguim foi solto. Touya subiu à superficie, e viu que tudo estranhamente voltava ao normal. Olhou o pinguim ao seu lado, enquanto tentava entender o que tinha acontecido.

    Quando saíu do trabalho mais tarde, foi encontrar-se com Yukito. O amigo estava esperando em uma lanchonete. ?Como come!? pensou.

    Touya e Yukito tinham um trabalho do colégio para fazer. Yukito era seu melhor amigo, os dois estudavam na mesma sala, e viviam juntos. E Yukito era uma das poucas pessoas com quem Touya se sentia a vontade para falar de suas habilidades. Talvez fosse porque Touya sabia que Yukito não era uma pessoa normal.

    Desde a primeira vez que Touya viu Yukito, percebeu que ele não era um ser humano comum. Touya não conseguia descrever o que havia sentido quando viu o amigo pela primeira vez. Era como se Yukito emanasse uma aura diferente. Touya sentiu-se até desconcertado, não conseguia entender por que seu coração batia tão acelerado ao ver aquele garoto de cabelos cinzas e olhar doce. Mas não demorou muito para que percebesse que Yukito era na verdade um ser mágico. Mas aparentemente o próprio Yukito não sabia disso. Então Touya não falou nada a ele. Mas se sentia a vontade para falar de suas visões e sensações. Na verdade Yukito parecia adivinhar o que se passava com o amigo.

    No caminho para sua casa, Touya contou a Yukito o que tinha acontecido no aquário.

    Yukito: Puxa, que estranho. Mas ainda bem que ninguém se machucou.

    Touya: O tanque vai ficar fechado até descobrirem o que aconteceu.

    Yukito: Ainda bem que você estava lá, né Touya! Senão aquele pinguim podia ter até morrido.

    Touya: Qualquer um que estivesse ali teria feito a mesma coisa.

    Yukito: Mas se vão fechar o tanque dos pinguins, o que você vai fazer agora?

    Touya: Vou ficar trabalhando na lanchonete do aquário.

    Yukito: Que sorte, hein Touya! Vai poder comer bastante

    Touya: Eu não posso comer enquanto trabalho. E você só pensa em comida.

    Yukito: Ah, eu não posso evitar... comer é muito bom!

    Ao chegar em casa, Touya encontrou Sakura ao pé da escada. A irmã comprimentou-o daquela forma que ela fazia quando queria esconder alguma coisa, mas Touya ignorou. Sakura perguntou-lhe sobre seu trabalho no aquário. Touya lembrou-se que ela estava presente no momento do incidente do pinguim, provavelmente em excursão da escola. Enquanto a irmã se encantava com o fato de ele trabalhar em meio àqueles peixes fedorentos, Touya aproveitou para roubar um pouco de suas panquecas, e se divertiu ao ver que tinha deixado Sakura zangada. Sakura estava fazendo um escândalo no momento em que Yukito entrou, e isso só divertiu mais ainda Touya. Ele sabia que a irmã era apaixonada pelo seu amigo. Na verdade desconfiava que isso tinha a ver com o fato de que Yukito era um ser mágico, e que Sakura de certa forma percebia isso, talves apenas não tivesse consciência. Mas independente disso, Sakura ficava toda envergonhada na frente de Yukito, e provocá-la nestes momentos só para deixá-la sem-graça era passatempo de Touya. Só que provocá-la na frente do Yukito geralmente resultava em um pisão no seu pé. Mesmo assim, ele não conseguia evitar.

    Touya e Yukito subiram para o quarto, para estudarem. Sakura tinha se oferecido para levar panquecas a eles mais tarde. Era incrível como ela mudava só porque Yukito estava junto.

    Yukito: Touya, você acha que o que aconteceu hoje no aquário tem a ver com o livro que tem na sua biblioteca?

    Touya se espantou com a pergunta. Não tinha ocorrido a ele que pudesse ter relação, mas agora que Yukito estava comentando, Touya achou que tinha sentido algo estranho no aquário. Talvez uma sensação um pouco parecida com a que sentia quando se aproximava da porta da biblioteca de sua casa.

    Touya: Talvez...

    Yukito: E você não pensa em ir no porão ver se o livro ainda está lá?

    Touya não respondeu. Não tinha ido na biblioteca desde então, mas tinha quase certeza de que o livro não estava lá. Não na biblioteca, mas talves ainda na casa.

    Neste momento, Touya pôde notar que sua irmã se aproximava do quarto. Sempre teve a capacidade de perceber quando alguém se aproximava, especialmente se esta pessoa tivesse algum poder mágico, como no caso de Sakura. E viu que Yukito também percebeu.

    Yukito: Já está aí, Sakura?

    Yukito se levantou e abriu a porta. Sakura estava do outro lado, segurando uma bandeja com panquecas e chá gelado para ambos. Os olhos verdes arregalados, e o rosto corando um pouco, Sakura ficou olhando Yukito que sorria para ela.

    Touya: Sakura, por que está aí parada? ? Falou aquilo só para desconcertar a irmã.

    Yukito pegou a bandeja para trazer para dentro quando Sakura interrompeu:

    Sakura: ahm.. escuta.. com sabia que eu estava aqui se eu não bati na porta?

    Yukito: Bom, é que... eu tive a impressão de que já estava tudo pronto.

    Sakura deu um largo sorriso, e timidamente desejou boa noite, bons estudos e ainda complementou que se precisassem de mais alguma coisa era só pedir para ela. Touya mais uma vez pensou em como a irmã mudava quando Yukito estava presente.

    No dia seguinte, Touya foi trabalhar na lanchonete do aquário municipal. Ainda não tinham descoberto o que tinha acontecido no tanque dos pinguins, mas Touya tinha certeza de que não encontrariam uma explicação lógica para aquilo. Pois o que tinha causado aquele redemoinho não era algo normal.

    No meio de seu expediente, viu Yukito junto com sua irmã. Eles olhavam os peixes em um grande aquário central, cilíndrico, que ocupava 4 andares. O aquário era rodeado por uma rampa que ligava cada um dos andares. A lanchonete ficava no térreo, com mesas que circundavam o aquário gigantesco.

    Da rampa no primeiro andar, Yukito acenou para ele. Os dois desceram e sentaram-se em uma das mesas. Touya foi atendê-los.

    Sakura: Não foi mais dar comida para os pinguinzinhos e veio trabalhar aqui?

    Touya: Tiraram toda a água do tanque, eles precisam fazer uma investigação.

    Yukito: Ainda bem que você saíu daquele congelador, era desagradável. - Voltando-se para Sakura - A comida dos pinguins fica no congelador, e o frio que faz lá dentro é simplesmente insuportável.

    Touya: É, mas não mudou nada. Meu trabalho aqui é fazer raspadinhas de todos os sabores.

    Yukito: Raspadinha de morango é uma delícia! Traga duas.

    Touya: É claro, Yukito. Por que não pede uma raspadinha dupla?

    Yukito: Aqui.. tem raspadinha dupla???

    Touya foi levar o pedido até o balcão. De repente, ouviu um barulho de vidro quebrando. O gigantesco aquário central se rompia, e a água despencava diretamente em cima das pessoas que estavam sentadas nas mesas. O salão começou a inundar rapidamente. As pessoas nos andares acima corriam para a beirada dos mesaninos para ver o que estava acontecendo.

    Touya tentou nadar até a área onde estavam Sakura e Yukito mas não conseguia vê-los. Começou a gritar por eles. A água parou de cair, mas o salão estava debaixo de alguns metros de água. De repente uma porta se abriu e a água começou a escoar. Touya agarrou-se a uma escada para não ser levado junto, e viu quando sua irmã emergiu próximo ao lugar onde estavam as mesas.

    Touya: Você está bem? - Perguntou enquanto se aproximava

    Touya pegou Sakura no colo e levou até a escada. No topo da escada, Tomoyo, a melhor amiga de Sakura (e que até então Touya não tinha visto que estava alí) esperava com ar preocupado.

    Tomoyo: Sakura!

    Sakura: Tomoyo, onde está o Yukito?

    Touya lembrou-se então do amigo. Colocou Sakura no chão e voltou-se em direção à água. Yukito estava em pé, com um machado nas mãos, sorrindo. Ele havia usado o machado para arrebendar a porta e deixar a água escoar.

    Touya: Ele está bem.

    Touya pensava agora que não precisava ter se preocupado assim com o amigo. Era óbvio que ele iria se sair bem. Ele não era um ser humano, afinal de contas.

    Touya desceu para ver se as outras pessoas estavam bem também, e Yukito foi ver como Sakura estava.

    Yukito: Tudo bem Sakura?

    A menina fez que sim com a cabeça

    Yukito: Eu acho que a nossa raspadinha foi por água abaixo... ? falou sorridente

    Sakura: Ah, é verdade...

    De repente Sakura arregalou os olhos, olhou para o Yukito, e agarrou na barra de seu casaco encharcado.

    Sakura: Aah obrigada Yukito! Obrigada mesmo!!! - Disse com os olhos brilhando

    Yukito: Como assim? O que eu disse?

    Touya não entendeu o que a irmã queria dizer, mas com certeza ela ia aprontar alguma coisa.

    A noite, Touya não conseguia dormir, pensando a respeito do que tinha acontecido. Sabia que o que tinha acontecido naquela tarde tinha a ver também com o incidente do pinguim. E depois que Yukito tinha comentado, começou a desconfiar que tinha a ver também com o livro na biblioteca de seu pai.

    Nos últimos 3 dias, quando percebeu que a presença do livro tinha se alterado, Touya percebeu também que algumas coisas estranhas estavam acontecendo. E sua irmã parecia estranha também. Touya tinha quase certeza que Sakura estava envolvida nesta história. E se estivesse, o que ele poderia fazer? Sabia que ele não podia interferir no destino daquele livro. Mas se o destino daquele livro envolvesse sua irmã mais nova, o que ele poderia fazer?

    Droga ? disse ele olhando para o teto escuro de seu quarto.


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