Carinho, o mais puro e doce carinho. Era isso que sentia estando nos braços dele, os braços de um anjo. Olhos azuis como o mar e cabelos dourados como o Sol, ele era um anjo sim. Um anjo pelo qual não pedira, mas recebera sua proteção.
?Meu anjo?
As palavras ecoaram solitárias em sua mente, até chegar ao coração. Algo se rebelou contra aquilo, não estava certo, ela não podia... Aquele anjo não era seu, nem tão pouco ficaria ali com ele para sempre como gostaria. Ia embora tão logo a tempestade permitisse...
?A tempestade!?
Levantou subitamente a cabeça em alerta, olhos e ouvidos atentos a qualquer coisa.
- O que foi? ? perguntou ele suavemente mantendo-a entre seus braços.
- Escute.
- Escutar o que? ? não ouvia absolutamente nada além dos estalidos do fogo queimando com intensidade na lareira.
Ela afastou a cabeça para encará-lo com um sorriso radiante nos lábios.
- Nada. ? respondeu suavemente ainda sorrindo ? Nem um ruído da tempestade...
Apurou então seus ouvidos e constatou que realmente o som dos fortes ventos da nevasca haviam cessado por completo. Olhou para ela e sorriu de leve.
- Sim, parece que ela acabou.
Diante de seus olhos observou as duas negras pupilas da moça adquirirem pouco a pouco um brilho, assim como seu sorriso foi alargando-se de felicidade.
- Ela acabou! ? exclamou se afastando e libertando do abraço do rapaz.
- O que foi? ? perguntou ele não entendendo a reação dela.
Já de pé, Aska deu-lhe as costas e correu para o quarto sem uma palavra.
?O que aconteceu com ela?? pensou enquanto levantava-se também e dirigia-se até o quarto seguindo-a. Encontrou a moça mexendo nas gavetas da cômoda onde ele guardava suas roupas. Procurava algo.
- Onde estão minhas roupas? ? perguntou com uma urgência na voz.
- Você vai sair?
- Eu... preciso ir. ? disse simplesmente enquanto continuava a mexer nas roupas.
- Ir? Mas ir para onde?
- Eu preciso ir embora!
Não, ela não podia estar pensando nisso, não agora. Ele não podia deixá-la escapar.
- Por que?
- Porque preciso, não posso explicar, mas eu preciso ir embora o mais rápido possível. ? parou de mexer nas roupas e fechou a gaveta. Ainda de costas ela ficou um pouco em silêncio, não ousava encará-lo, pois acabaria perdendo a vontade de ir, e ela precisava ir! Continuou com a voz suave ? Sinto muito, Hyoga, mas eu não posso ficar.
- Mas você ainda não está totalmente recuperada, não pode sair assim, seu corpo não agüentará. ? argumentou o rapaz.
- Eu estou bem, não se preocupe. Eu só... preciso de minhas roupas.
Diante da insistência dela, teve que ser mais duro.
- Não deixarei que saia. Você não está bem!
Com as mãos sobre a cômoda, ela fechou os punhos. Estava quase se traindo diante dele. Precisava sair dali o quanto antes, poderia acabar colocando-o em perigo se a encontrassem. Virou-se para ele com os olhos suplicantes.
- Hyoga, eu estou bem, já me recuperei. E isso graças somente a você. Mas é necessário que eu continue a viagem que estava fazendo antes de me encontrar. Por favor, não me peça para ficar, eu... isso só traria problemas.
- Não quer ficar?
- Sim... quer dizer, não, bem... não é isso, é que... ? atrapalhou-se com as palavras. Como responder aquela pergunta? Ela queria muito ficar, gostava dele. Mas por gostar dele não poderia colocá-lo em perigo por sua causa. ? Eu preciso ir.
- Por que? Por que precisa ir agora? ? fitou bem dentro dos olhos dela de forma inquiridora.
- Eu... eu não posso te dizer.
Ela parecia angustiada. ?Por que essa necessidade de partir assim tão de repente?? Não podia deixar que partisse, tinha dois bons motivos para isso. E o mais forte deles é que sentia-se muito ligado à moça.
Havia observado-a, estudado-a em detalhes e aprendido a conhecê-la. Quando a resgatara da neve dias atrás, seu instinto foi cuidar dela, salvá-la custe o que custasse. Estreitara o corpo macio entre seus braços queimando seu cosmo até o máximo para devolver o calor da vida a cada célula. Claro que sentira-se atraído por ela desde o primeiro instante, mas conforme o tempo foi passando acabara transformando atração em carinho, em ternura.
Agora a iminência de perdê-la era inaceitável para ele tanto como cavaleiro de Athena, quanto como homem. Quando vira o sorriso no rosto dela ao retornar para a cabana mais cedo, percebera que não tinha mais volta. Não conseguiria fazer o que tinha que fazer, nem tão pouco poderia deixá-la ir embora. Não queria que fosse desse jeito, queria ter ao menos uma chance com ela...
- No baú aos pés da cama. ? falou ele simplesmente, dizendo onde ela encontraria suas roupas.
Virou-se e saiu do quarto fechando a porta atrás de si. ?Queria que não tivesse que ser assim...? pensou Hyoga tristemente.
Ainda fitando a porta fechada, ela sentia lágrimas nos olhos. Mas não as derramou, já havia aprendido que não deveria chorar pela escolhas que precisava fazer, mesmo as mais dolorosas, isso desonraria suas decisões.
?Sinto muito, anjo. Mas não suportaria envolvê-lo nisso...?
Foi até o baú onde pegou suas roupas e vestiu-as apressadamente. Não sabia quanto tempo tinha, mas não podia deixar nem mais um minuto passar sem estar fugindo. Ele correria um grande perigo enquanto ela estivesse naquele lugar.
Sentiu um frio arrepiar sua pele enquanto trocava de roupa. Ao terminar de abotoar seu último casaco, abraçou-se e fechou os olhos, aos poucos sentiu as vestes tornarem-se agradavelmente quentes.
Com cuidado, pegou a roupa que havia tirado e dobrou-a. Não acreditava, mas sentia seu coração apertado. Será que voltaria a encontrá-lo algum dia?
Trazendo a veste dobrada nos braços, foi até a cama, e ao lado dela, olhou uma última vez para a janela do quarto. Já tinha se acostumado com aquele quarto. ?Queria que não tivesse que ser assim?
Inclinou-se sobre a cama depositando o tecido sobre ela.
Foi quando sentiu!
A visão turvou-se e uma dormência invadiu-lhe o corpo, as pernas amoleceram e as pálpebras ficaram pesadas.
- O que...? ? balbuciou ? Meu corpo... ? caiu sobre a cama incapaz de mover um músculo sequer. Sua mente estava como que congelando-se, sentia que perdia a consciência aos poucos.
?O que...é esse...frio?? foi o último pensamento que teve antes de ter sua mente engolida pelas trevas.
Do lado de fora do quarto, o rapaz achava-se com as duas mãos espalmadas sobre a porta e de olhos fechados. Assim que percebeu que ela havia desmaiado, suspirou aliviado.
Encostando a testa na madeira fria, ele murmurou:
- Queria que não tivesse que ser assim....Aska.
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Nunca sentira tamanho esgotamento desde a última batalha. Aquilo exigira o máximo de seu cosmo, estava acabado, mas conseguira. Olhou para o rosto da moça que dormia profundamente sobre a cama. Estava bem acomodada e coberta para proteger do frio que reinava.
?Ela fica ainda mais linda dormindo? pensou com um leve sorriso nos lábios, estava satisfeito.
Sentado no chão frio ao lado da porta do quarto, Hyoga mantinha as costas apoiadas na parede. Isso impedia que seu corpo desabasse e permitia que pudesse apreciar a garota deitada em sua cama.
Lembrava-se com nitidez do dia em que Saori havia chamado-o para uma conversa no salão do templo do Mestre do Santuário...
? Destruída?! ? perguntava incrédulo o cavaleiro de cisne ? Mas essa não é uma das armaduras mais resistentes?
- Sim. ? respondeu calmamente a reencarnação da deusa Athena sentada no trono do grande salão ? Mesmo assim existe uma forma de destruí-la, como pode ver.
Ele não podia acreditar, uma armadura de prata destruída em poucos segundos! Isso era inaceitável.
- Foi por isso, Hyoga, que eu te chamei. Preciso que você vá até aquele lugar. Como é o cavaleiro que mais conhece a região, é o mais indicado para essa missão.
- E o que eu devo fazer?
- Aqueles guerreiros ficaram muito afastados do Santuário, eu não conheço os detalhes então não posso dar uma sentença sobre isso. Preciso que você seja os meus olhos e o meu coração nesse caso.
- Mas Athena, eu...
- Confio em você! ? interrompeu a deusa ? Sei que fará a coisa certa quando chegar o momento. ? fez uma pausa e acrescentou angustiada ? Hyoga, uma armadura de prata foi destruída sem explicação, e a amazona de prata à qual ela pertencia, foi morta! Como deusa da justiça, e principalmente como sua protetora, é meu dever não deixar que tal ato saia impune dessa forma. Você entende?
- Sim, Athena. ? com uma mesura respeitosa acrescentou ? Farei tudo que estiver ao meu alcance para garantir que a justiça seja feita!
Em seguida o cavaleiro partiu para cumprir as ordens que sua deusa havia lhe dado.
Era sua missão, estava em suas mãos a decisão de Athena. Não podia decepcioná-la!
Apesar de toda a certeza que Saori havia demonstrado escolhendo-o para essa missão, no momento em que seu olhar pousou sobre aquela moça, perdera a confiança em si mesmo. Não se achava mais capaz de uma decisão imparcial como deveria ser.
Mesmo assim, ainda conservava um pouco de bom senso e a impedira de ir embora.
?Eu preciso fazer o que tenho que fazer!? pensou um pouco antes de se entregar ao esgotamento completo de seu corpo devido ao grande esforço que fizera para impedi-la.
O cavaleiro dera o seu máximo. Se seu mestre estivesse vendo-o agora, ficaria orgulhoso do aprendiz. Realmente, ele dera o seu máximo...
Lá fora, outra tempestade de neve caía, com uma fúria jamais antes vista.
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Gemeu baixinho ao acordar, sentia o corpo todo dormente. Aos poucos abriu os olhos, descobrindo-se ainda no quarto. Estava deitada na cama e confortavelmente coberta. Tentou lembrar o que acontecera, mas a única coisa que vinha à mente era uma roupa dobrada em seus braços e depois a sensação de um frio que parecia capaz de congelar até sua alma.
Sentou-se na cama e notou que estava com suas roupas. Recordava que as vestira, mas não sabia o que tinha acontecido depois. De repente ela percebeu o som, olhou assustada para a janela e viu a claridade fraca que entrava.
A tempestade voltara!
Mas como? Lembrava-se que ela tinha acabado. Será que dormira tanto a ponto de uma outra haver começado? Pelo barulho que os ventos faziam dava pra ver que era uma das mais fortes.
Então seu olhar foi atraído para algo no chão, ao lado da porta.
? Hyoga! ? exclamou ao reconhecer o rapaz sentado no chão. Saiu da cama e num instante estava em frente a ele chamando-o sem obter resposta.
Chamou-o mais algumas vezes, mas ele continuava desacordado. Estaria mesmo dormindo?
Ela desesperou-se.
Segurou o rosto do rapaz com ambas as mãos e tentou levantá-lo, mas um choque elétrico forte fez com que soltasse imediatamente.
? Ele está muito frio!
E novamente com as mãos, voltou a segurar o rosto dele, ignorando o choque que sentia invadir seu corpo. Fechou os olhos e concentrou-se em passar o calor delicadamente para ele. Queimando seu cosmo desesperadamente, ela tentava devolver a temperatura natural para cada célula de Hyoga.
?Por favor, acorde anjo!? pensou enquanto aos poucos fazia o calor retornar ao corpo do rapaz.
Então duas mãos geladas cobriram as suas carinhosamente, apertando-as mais de encontro ao rosto. No mesmo instante, ela abriu os olhos assustada.
? Você tem mãos de fada, Aska. ? murmurou ele sorrindo ainda de olhos fechados.
Com os olhos enchendo-se de lágrimas ela abraçou-o de repente.
? Graças aos deuses! ? disse suspirando aliviada e abraçando-se mais a ele.
Hyoga abriu finalmente os olhos e observou-a junto de si. Assim estava melhor... era assim que ela sempre devia ficar, junto dele. Retribuiu o abraço com todo carinho.
?Espero que um dia me perdoe, minha fada. Espero que me perdoe por fazer isso com você...? pensou ele sucumbindo ao sono que tomava conta de seu corpo e sua mente.
Sentindo o peso do corpo dele sobre si, constatou que havia caído no sono. Ela sabia que estava bem, apenas cansado, mas agora tinha certeza de que ele não corria nenhum perigo, apenas dormia.
?Eu não sei o que você fez, mas quase acabou com sua vida! Nada vale tanto assim, anjo?