Acordou de noite. O quarto estava mergulhado na penumbra. Sobre a pequena mesa ao lado da porta brilhava a luz de uma vela já pela metade, indicando que havia passado muitas horas acesa. Devia ser tarde àquela hora.
Sentia-se melhor, menos cansada pelo menos embora ainda estivesse meio fraca. O rapaz tinha razão, precisava de descanso para recuperar-se.
Sentada na cama começou a colocar os pensamentos em ordem...
Há alguns meses morava na vila numa região gelada de difícil acesso e próxima das montanhas do norte. Vivia sozinha e não tinha ninguém, já estava acostumada com isolamento e não teve problemas com o fato de estar entregue à própria sorte. Mas não era só isso, além de sozinha ela era uma fugitiva! Cometera um crime que amaldiçoara sua alma e a desonrara para sempre. Jamais voltaria a ser a pessoa que fora.
Ações têm conseqüências, e as suas não escapavam à regra. Havia pessoas a sua procura para fazê-la pagar pelo crime, era caçada! Fugira para aquela vila pensando que estaria a salvo, mas em pouco tempo descobrira que seus perseguidores a seguiram, estava para ser descoberta...
Precisara sair no meio da noite escondida de todos, durante uma tempestade que encobriria seus rastros na neve, mas o frio vindo das montanhas era maior do que previra. Acabara sucumbindo em meio ao gelo. Pensara que havia chegado seu fim antes de tudo tornar-se apenas escuridão diante de seus olhos. Mas agora estava ali, viva, em uma cabana na floresta sendo cuidada por um rapaz chamado Hyoga.
- Hyoga... ? falou para si mesma como se considerasse o som da palavra ? Um nome interessante...
?...e olhos mais interessantes ainda...? completou em pensamento. A lembrança da calma naqueles olhos tanto a intrigando quanto a agradando. ?Pare de pensar em coisas inúteis!? recriminou-se mentalmente. E daí que os olhos azuis do rapaz eram calmos ou bonitos? Estava viva! E enquanto vivesse precisava pensar somente numa coisa: fugir! Não importando para onde, precisava fugir até o fim do mundo onde não pudesse ser encontrada!
Cobriu o rosto com as mãos, desiludida com sua situação. Que tipo de vida escolhera para viver? O que fizera com seu futuro? Teria um futuro? Eram perguntas que tanto a entristeciam quanto a confundiam, já nem lembrava-se mais porque tivera que ser assim, não lembrava-se mais dos motivos pelos quais complicara tanto sua vida em tão pouco tempo. ?O que será de mim?? foi o último pensamento que lhe ocorreu antes de ouvi-lo.
- Sente-se bem?
Levantou o rosto imediatamente ao escutar a voz suave. Quando ele entrara? Como não percebera? Desde quando ele... Mas em vez de fazer esse tipo de pergunta limitou-se a respondê-lo. Aliviou a expressão em seu rosto e sorriu de leve para o rapaz.
- Estou bem.
- Que bom...
Só então ela percebeu que ele trazia algo entre as mãos. Caminhou até a cama e estendeu-lhe uma xícara fumegante.
- Tome, vai ajudá-la a recuperar suas forças.
- Obrigada. ? agradeceu timidamente pegando a xícara e fazendo como ele dissera. O que quer que aquela bebida fosse, tinha um gosto muito bom!
- É um chá de raízes, dá energia e aquece o sangue no frio. ? falou ele como se respondesse aos seus pensamentos.
- É muito bom! ? elogiou ela.
- Seu corpo entrou em choque por causa do frio e passou a noite toda em febre depois que eu trouxe você para cá.
- Há quanto tempo estou aqui?
Ele olhou-a de um jeito estranho e depois respondeu:
- Passou quase dois dias desacordada. ? e completou calmamente tentando tranqüilizá-la ? Não se preocupe com o tempo agora, você precisa se recuperar.
Baixou os olhos para a xícara que tinha entre suas mãos, sentia-se incomodada. ?Dois dias desacordada? Então eles já poderiam ter...?
- Já falei, não se preocupe com nada. Cuidarei de você. ? falou ele pegando-a de surpresa, vira a expressão triste no rosto da moça e quis ajudá-la.
- Eu... obrigada mais uma vez. ? sorriu para o rapaz.
?Não sinto perigo, apenas tranqüilidade. Acho que não preciso mesmo me preocupar... pelo menos não agora.?
- Ainda não sei como devo chamá-la. ? interrompeu os pensamentos dela ? Qual é seu nome?
- Eu... ? seria seguro dizer o seu nome? - ...meu nome é Aska. ? revelou por fim. Sentia-se segura com ele, talvez não houvesse problema em dizer seu nome, além do mais, estava cuidando dela, pelo menos devia isso a ele!
- Aska... existe alguém que você queira avisar? Alguém na vila que esteja preocupado com você?
O rosto dela tornou-se sombrio.
- Não, não tem ninguém. Eu sou sozinha... ? falou baixinho.
- Entendo... ? sabia como era sentir-se desse jeito por isso resolveu mudar de assunto ? O que fazia na floresta no meio de uma tempestade como aquela? Você poderia ter morrido, sabia?
- Creio que ainda não há lugar para mim no mundo dos mortos. ? disse como para si mesma e continuou mais claramente ? Eu deixava a vila, a tempestade me pegou no caminho. ? mentiu respondendo à pergunta dele. Não podia dizer que era uma fugitiva!
- Sei... ? disse enigmático e completou em tom normal ? De qualquer forma era muito perigoso, deveria ter voltado para a vila assim que viu a tempestade começar!
- É... Mas você também estava lá. O que fazia no meio da tempestade? Como me encontrou e sobreviveu àquilo? ? estava intrigada, e queria mudar de assunto ao mesmo tempo. Como ele não sucumbira à tempestade também?
- Eu estava voltando para cá, encontrei você no caminho e a trouxe. Além do mais, estou acostumado com essas tempestades e temperaturas muito baixas. ? respondeu simplesmente como se fosse a coisa mais comum do mundo ajudar pessoas no meio de uma tempestade de neve com temperaturas abaixo de 30 graus negativos!
- Então você é dessa região?
- Não. Sou de um lugar mais ao norte, próximo ao mar congelado do Ártico. Venho para cá de vez em quando.
- Sua família mora aqui?
Balançou a cabeça negativamente.
- Sou sozinho também.
- Então por que...
- Venho para cá, pois esta é a vila mais próxima que possui algo de que preciso. ? disse sem esperar que ela terminasse a pergunta do por que vinha para aquela região.
- Comida?
- Não... Rosas.
- Rosas?! ? surpreendeu-se ela. ?Por que alguém precisaria de rosas em uma região tão fria?? Olhou-o de cima a baixo analisando-o e tentando ver se descobria porque um rapaz bonito e forte daqueles precisaria de rosas. Resolveu que perguntar isso seria muita ousadia de sua parte e ficou calada.
- Durma mais essa noite. ? delicadamente tomou a xícara das mãos dela ? Amanhã cedo já irá sentir-se recuperada por completo.
- Nem sei como te agradecer por tudo. Você salvou minha vida! ? disse fitando-o sinceramente agradecida de todo o coração pelo que ele fez e vem fazendo cuidando dela.
- Ficar boa já é agradecimento suficiente. ? disse sorrindo com aqueles mesmos olhos calmos que davam-lhe tanta tranqüilidade.
Hyoga deu-lhe as costas e dirigiu-se para a porta. Antes de sair virou-se com um último sorriso e falou:
- Se precisar de qualquer coisa é só chamar meu nome, virei imediatamente. ? fitou diretamente os olhos dela ? Boa noite...Aska. ? e saiu fechando a porta atrás de si.
O jeito como ele disse seu nome arrepiou-a. Como ele era encantador!
O que os deuses pretendiam permitindo que um anjo desses cuidasse dela? Acreditava não ser mais digna desse tipo de privilégio, o privilégio da vida e da tranqüilidade que experimentava na presença dele. ?Loiro, olhos azuis e pura bondade. Parece um anjo mesmo!?
Adormeceu pouco depois para seu primeiro sono repleto de sonhos, o primeiro em muito tempo! Sonhou com um adorável anjo de cabelos dourados e os olhos azuis mais calmos que jamais vira transmitindo-lhe uma grande tranqüilidade.